Friday, October 04, 2024

O dia de ontem

 


Naquela manhã, o pedreiro Estevão se dirigiu à padaria da Vila e pediu um pedaço de bolo.

Assim que o balconista o atendeu, Estevão recordou-se do dia anterior: desaforos que tinha dito ali mesmo no estabelecimento, na praça, em frente à subprefeitura e na porta da igreja. Na memória, fazia apenas um dia que ele tinha desmascarado os adúlteros do amor e do aguardente aguado, denunciado os maus patrões, escancarado a corrupção dos ricos e arrasado o mau comportamento dos religiosos e a hipocrisia geral. Embora seus brados tivessem estarrecido a comunidade, a princípio, logo as pessoas decidiram mudar e expressaram uma imensa gratidão pelo que ouviram.

Os empregados do comércio, que trabalhavam de domingo a domingo sem folga e sem salário, passaram a ter estatuto de direitos, os homens e mulheres estabeleceram relações mais sinceras, e até mesmo os comerciantes baixaram os preços, e a fartura foi partilhada. A coisa tinha evoluído para uma felicidade plena, e na noite houvera um grande banquete de todas as classes, que comemoraram uma harmonia sublime. Aquele dia ficou conhecido como o Dia da Revolução, em que a verdade rachou as pedras e fez brotar delas, que afinal não eram pedras, mas o rosto das pessoas, uma felicidade tremenda.

Isso é o que Estevão lembrava. Mas quando ele mordeu o bolo, o balconista reclamou do novo dia de rotina e negou todas as coisas que o cliente mencionava sobre um ontem glorioso.

— Nós nunca fomos felizes. As coisas são como sempre, eu com as mãos no vaso sanitário e depois na massa do pão, pingando suor. É disso que a vida é feita, e para sempre assim será — alegou o moço da padaria, com uma cara muito infeliz, de uma tristeza temível, como se houvesse escutado do outro o mais destampado absurdo.

Os dois teriam ficado naquele desentendimento por mais tempo, não houvesse passado ali um chofer de praça para um café requentado  e uma dona de casa que procurava broas dormidas. Aquelas pessoas se revoltaram quando Estevão falou de um dia único de alegria, pois parecia-lhes uma blasfêmia, uma prece pelo demônio. Então Estevão se resignou calado, acreditando que a sua memória estava embriagada de ilusão e loucura.

— É impossível sermos livres — disse a dona de casa. 

Já o chofer de praça acompanhou Estêvão numa volta a pé pelas redondezas, para que o homem testasse a sua hipótese com alguns transeuntes, e estes também se horrorizaram com a ideia de alguma mudança.

Mas o pedreiro ainda permaneceu desconfiado, porque eram evidentes os sinais da revolução havida, as cascas das frutas devoradas no banquete, a pilha de garrafas esvaziadas, os muros pintados com frases de amor e de fé, que um funcionário público se encarregava de caiar às pressas.

— Nesta vila, nosso padrão está assegurado por leis muito boas e rígidas e imutáveis! — Bradou o chofer. — Cada um conhece o seu papel, e aproveita uma vida eterna tão pacífica quanto essa praça, onde os únicos pássaros são pardais, e pardais não cantam.

Naquele momento, Estêvão, que era o mais pobre operário da localidade, viu-se novamente no anteontem (o dia de ontem estava definitivamente perdido), obrigado a procurar serviços por centavos. 

E entendeu que a cidade inteira, até o bolo que  tinha devorado no desjejum, era uma frágil nuvem de opinião.

Monday, September 30, 2024

Homens e galinhas


Publicado no Jornal A Tarde de 29/9/2024


No interior está jorrando gasolina.

Venho passar alguns dias no sertão e noto as filas de motos e carros serpenteando os postos de combustível, os condutores com tickets na mão.

Toda vez que há um comício nos povoados, os candidatos à próxima eleição abastecem os veículos dos correligionários. Também sobram cupons para penetras que vão em todas as festas eleitorais e para quem se finge de distraído.

Há anos vejo essas cenas, e também o efeito que tem, na zona rural, a chegada das caravanas com os motores rosnando, aparelhagens de som aos berros, buzinas, fogos trovejando e uma multidão de estranhos que viaja de graça. Nestes dias no interior fica mais claro o significado: Aí vem o candidato a rei, e ele pode ser rei porque tem dinheiro, tem amigos, mulheres e homens bem vestidos e alegres como ele.

O candidato a rei traz uma nova era de fartura, porque na eleição todos temos os privilégios de candidatos a rei. Todos somos o candidato a rei, felizes e abastecidos e abraçados e embriagados. Depois, não somos nada.

Também aqui, no interior, o mototáxi Ariel, que sempre me transporta pelas roças, me conta que no povoado da Barreira, onde o rio Itapicuru é mais caudaloso, pescaram um peixe de 40 quilos. Pescaram não, abateram a tiros, e depois comeram. “O bicho era do tamanho de um carneiro. Não tinha quem pegasse com tarrafa nem anzol”, relata o piloto, que se pela de medo de banho de rio ou de lagoa, apesar de ter nome de sereia. “Está vendo porque eu corro de água?” diz ele, fazendo troça.

No Rancho do Regalo, meu refúgio, tento escrever a história de um homem que afugenta fantasmas a tiros. A história é só isso, inspirada num ritual religioso de um povo distante, que vi numa enciclopédia. Escrevo que há um casarão e é noite. Um homem herda o imóvel, chega para habitá-lo e, impaciente com os ruídos, fuzila todos os cômodos. Dane-se as dívidas das almas penadas, que elas chorem em outro lugar.

De repente, paro de escrever e reparo nas galinhas que devastam o terreiro do rancho. Elas cavoucam o chão e retiram minhocas e raízes, detonam as plantas e trucidam gafanhotos e outros insetos. Vira tudo um grande areal. As formigas, que imperavam ali, agora só abrem furos tímidos na área ladrilhada.

Na hora da comida, é um Deus nos acuda. As galinhas furtam das suas parceiras e correm para papar escondidas. Outras vezes, quando a fome aperta, sugam os ovos de suas vizinhas e devoram até as cascas.

Gosto de observá-las porque parecem humanas, na rudez, na voracidade, na inconsequência, na melancolia. Imagino que em alguma época da história, no passado ou no futuro, as galinhas disputam com os homens o domínio do mundo.

Atualmente, os homens as almoçam. E fazem filas para o combustível, cheios de animação.

No interior dá para ver melhor o mundo, os predadores e suas presas.

Monday, September 23, 2024

As sombras no caminho



O caminhante que passa pelas estradas seguindo os rumos do sertão tem hoje a velocidade das motocicletas e carrega a cidade no telefone do bolso. No entanto, já houve tempos de imenso pavor, quando nossos avós andavam a pé e o caminho assustava quem ia só.
Meu compadre Lula, velho magro e desdentado, jura ter visto o diabo num galho de árvore, e foi na luz do meio-dia. “O que ele lhe disse, Lula?” Eu perguntei. “Nada. Piou, virou pássaro, voou”.
E sempre havia as almas nas trilhas das fontes, dos lagos, das águas, algumas delas já conhecidas das mulheres. Bastava uma dona se desgarrar e esquecer as orações e elas vinham atalhá-la. Nos caminhos das inúmeras capelas era também comum o cristão ser apelado, indo para a oração. Parecia sede o que as almas sentiam, pelo que o povo comentava, e também desejavam que lhes dedicassem uma prece.
Dia desses, era de tarde, eu vinha caminhando da barragem e me lembrei dessas histórias. Eu senti uma friagem, um medo de ser roubado ou de bicho aparecer e amarelei como um papel velho. Sim, eu vinha só e sem reza, e o sol sumia nublado. Porém, devoto do Mendigo Lázaro, confiei. Surgiu um cachorro enorme, que não sei de onde veio, e calado e manso me seguiu até a cidade, e quando adentrei as primeiras ruas o animal sumiu no mesmo mistério. Meia légua durou aquilo, eu crendo que o cão queria um osso, mas ele foi a minha guarda que o santo mandou.
E houve sustos piores. Uma moça que conheci, Vera, hoje falecida, contava que em hora escura, passando por casa antiga, viu a porta de duas folhas fechada e uma cabeça aparecendo onde as folhas se juntavam. Ela, muito corajosa, enfrentou a assombração, morto que em vida era dela aparentado: “Esconjuro, Adroaldo, deixe de patacoada!” E a alma riu uma boca sem dentes.
Já o avô de Ubirajara, no povoado do João Vieira, certa vez teve visagem de gelar. Seguia ele madrugada, pela estrada estreita que o levava a uma urgência, quando assomou à distância um homem todo de preto, de pé, abraçado a um caixão. O avô, me falou Ubirajara, orou o Credo dentro de si e, passando pelo danado, deu boa noite como se visse um vivo. Recebeu resposta assim igual educada, e ninguém morreu por causa daquilo.
Porém, o que mais assusta no sertão, a qualquer hora, é o silêncio e os estalos nas picadas da caatinga, o pio de ave agourenta, os leitos de cascalho seco sem vida. Não tanto as cruzes na estrada, nem os cemitérios de um só muro, nem os casebres em ruínas, nem as canecas e panelas amassadas ou as peças de roupas esquecidas por famílias que partiram, embora isso também.
Outras vezes, se foram assombrações nem saberemos de fato. Aquela baraúna, árvore imensa que nunca foi derrubada, mesmo com a estrada construída à volta dela, aquela em frente à fazenda Guarani, é à noite assustadora. Tudo por quê?
Sempre foi passagem de funerais, de saimentos, de irmãos que carregavam outros em redes para sepultamentos e ali paravam para repousar. Naquele instante, enrolados, os defuntos também se alongavam na grama. Por esse tanto a baraúna ficou falada, como toda árvore já é dita sombra de miasmas, mas aquela ainda mais.
Ali perto, uma vez o velho Nizo e o João Ferreira seu compadre passavam à noite e cruzaram com mulher toda de branco. Parecia ela viva, e levava um bebê embalado. Mais à frente, os camaradas comentaram:
— Você viu, compadre?
— Vi. Acho que o marido vem aí de frente.
Até hoje não apareceu marido, e se sabe que mulher não saía só àquela hora. Mulher era não.
Por último, o Oliveira irmão de Nizo, viveu outra presepada, pois da baraúna até a cidade lhe acompanhou o som de um pandeiro tum-tum-tum. Digam-me se não foi merecido, sabem quando ele andou desprevenido? Noite alta, Sexta-Feira da Paixão.
Por que não dorme a gente da nossa terra? Por que nunca se aquieta?

De como Romeu Raizeiro deixou de ser curador



Eu vi aqueles três elementos aparecerem ao meu lado, eu deitado no meu quarto, na cama. Pareciam cachorros, dois pretos e um vermelho. As presas eram como facas afiadas, as bocas compridas de jacaré.
Eles roeram o meu corpo do pescoço para baixo e levaram a cabeça pelo sertão adentro. Atravessaram a Bahia e o Rio São Francisco até chegar em Sergipe. Esse caminho demorou muito no mato de noite.
Lá em Sergipe, me jogaram no centro do terreiro de um curador que eu não conhecia, e já estava tudo pronto. No chão tinha velas e duas galinhas mortas. O curador mandou eu comer uma galinha, que assim eu ia ganhar todo o dinheiro aqui da vila e das roças por aí afora. Ia ficar rico pela vida toda, só cumpriria três dias de miséria nas vésperas de morrer.
Eu desconfiei daquela ideia. Disse ao curador que só a Deus eu obedeço, e não comeria galinha nenhuma.
O sujeito me chamou de teimoso e ordenou aos tais cachorros que me trouxessem para casa e, aqui chegando, acabassem de me matar.
Quando voltamos, atravessamos o rio e a mata e paramos perto, mas já não eram os mesmos dias que saímos. Era a época de anos atrás, velhas estradas de barro que nunca conheci, casas antigas de palha, plantas altas que já não existem e um velhinho no meio delas, um sujeito magro, de costas, com as mãos levantadas ao céu, como um santo. Os cachorros se diziam: “Vamos desviar do Atrapalha”, maldizendo aquela aparição.
O velho ordenou que o chão se abrisse e os cães descessem pela fenda. Falou isso outra vez e a fenda abriu ainda mais, mas os bichos quiseram voar, e voando mesmo estouraram como foguetes.
O santo, que era esse “Atrapalha”, me pediu que ao chegar em casa eu queimasse todas as minhas coisas de curador conforme fosse recolhendo, sem muita agonia. “O resto o dono virá buscar”, ele disse.
Assim aconteceu. Acordei na minha casa e, de duas vestes que encontrava, tirava só uma para queimar. De ferramentas e velas não foi tudo para o fogo, nem todas as folhas, nem todas as fitas. Dava-me pena, compreende?
Mas no dia seguinte recebi a visita de um homem a quem eu devia, curador ele também, e lhe entreguei o resto das coisas da casa, menos as imagens dos santos…
Na mesma hora esqueci tudo. Eu, que responsava e livrava as pessoas dos maus ventos, esqueci todo os preparos, esqueci os banhos, os fundamentos. De uma hora para a outra. Assim que eu parei, pararam também os meus filhos de santo. Larguei a Linha Branca das Almas, porque havia invejosos,  gente da mão esquerda, e eles estavam de olho em mim, querendo me dominar.
O que eu tenho hoje é isso: essas raízes, essas garrafadas curativas de folhas e de sementes, coisas que aprendi dos antigos, e esses litros de mel. E a simples devoção, simples reza.
Meu nome é só Romeu, não é mais “Pai”, não tem nada disso. E se precisar eu mudo de nome de novo, a qualquer hora, nem registro de nascimento vale. Porque sou antes um homem, só um homem. Basta olhar o meu rosto para confiar na minha palavra.

Monday, July 29, 2024

A terra, o homem, a luta

Publicado no Jornal A Tarde de 2.7.2023


Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de neblina quando ele viu o prefeito inaugurar a Casa do Vaqueiro nas terras do Tabuleiro do Itapucuru. Ó, grande amor; Ó alegria; Ó Luz Celeste no peito!

Logo ele, Sinhô da Chã, agricultor de unhas duras, marcado por espinhos da caatinga, que tinha construído casa semelhante, mas rústica, com seus companheiros de vaqueirar, anos antes, no mesmo lugar. 

O Tabuleiro é aquela imensidão entre o agreste e a caatinga, e, quando chegava a seca no sertão era para lá, para as terras frescas, que homens e gado do semiárido fugiam. Porém o Tabuleiro é friíssimo no inverno. Melhor que houvesse abrigo para os nômades, que chegavam com seu parco farnel de charque e farinha. A casa velha de taipa caía, mas o prefeito entregou a nova de alvenaria.

Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de sangue quando o arame farpado cercou as rotas do Tabuleiro. Nunca se viu tanta cerca, tantos donos novos com documentos antigos, e houve mesmo um projeto do maior banco da Bahia que, nem apresentou papéis, abocanhou milhares de hectares. Não havia mais lugar para pasto, e a Casa do Vaqueiro também ficou espremida entre os gigantes, esmagada. A história do pastoreio dos encourados, de mais de cem anos, desmaiava. O governador, na Capital, assim havia determinado.

Eram os anos 1970 e logo a seca voltou a lançar seu alarido tétrico. Os sertanejos, como de costume, levaram os bois magros ao Tabuleiro, mas os bichos morreram de surpresa e de fome. O gado não podia vaguear no ar nem voltar da migração, tão enfraquecido estava. Dentro da fazenda do banco, a comida se perdia. Os vaqueiros de unhas duras se destemperaram e derrubaram rios de cerca, mas logo, logo, eles próprios se viram cercados por policiais. 

Era um tempo medonho aquele, parecido com o nosso, mas pior que o nosso. Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de silêncio. O vaqueiro da casa de taipa morreu por aqueles dias, desgostoso.

Anos depois, o banco faliu e o Tabuleiro mudou de donos. Mas até hoje a terra é indomada: vastidão e descampado. Dias faz, um homem por lá se perdeu e só o acharam semanas depois, morto de andar sem ver comida, ou casa, ou alguém que o resgatasse.

Somente torres eólicas pontilham agora os morros e arrotam urros quando o vento corta o agreste. Muito triste o lamento das torres, lembra o gado que se perdia ao longe, nos muricizeiros. Nem ao antigo Cruzeiro do mais alto morro, nem na Semana Santa, se tem autorização para entrar.

Ouvi de Migdonio, neto de Sinhô, e de outros homens, estas histórias de vaqueiros. Quando eles as contam, salvam gado e homens do latifúndio do esquecimento. E quando eu as conto, salvo-me também do labiríntico descampado do silêncio.


A Caroba e o coração

Publicado no jornal A Tarde 

No povoado da Caroba, a 8 Km da cidade de Candeias, Recôncavo baiano, berço da música arrocha, o morador acorda com uma sucuri na calçada, há um jacaré coberto de piche e os caminhões de combustível desviam para não atropelar prostitutas que vagam pelo asfalto. Ali reverbera a canção de Márcio Moreno, cantor arrocheiro e candeiense, anunciando que no "brega da Caroba", “o prefeito aprovou” e “a polícia liberou” tudo ("Melô do Arrocha").

Mas deixem que eu avise logo: todas estas anotações são de 2006, de um sábado em que visitei o povoado, eu já jornalista formado, com dois estudantes de Comunicação, numa viagem de prospecção após o emergente sucesso do arrocha. Meus acompanhantes tremiam verdes e quase desertaram antes de tomarmos o ônibus em Salvador. O mais entrosado com fotografia nem concebeu carregar seu equipamento, e ficamos sem imagens da nossa andança. Voltando ao principal…

Conforme dizia o "Melô do Arrocha", lançado naquele ano, a Caroba era local onde o homem "aperta expreme [sic]" a parceria. E, realmente, havia ali casas especializadas em aliviar dores dos marmanjos cansados das cidades vizinhas e dos caminhoneiros que, talvez, em algum lugar, comentem até hoje desse bálsamo.

Durante nossa visita, porém, havia um clima pesado no ar. Dias antes haviam matado uma cearense já madura que mandava num dos bordéis. Na noite do crime, feita de festa, um motoqueiro invadiu o local e fulminou a mulher com tiros de pistola. Ciúmes? Tráfico de drogas? Dívidas? Nem adiantou a polícia comparecer, nem adiantou comparecerem repórteres, nada foi resolvido.

Julimar (nome fictício), morador da Caroba, nos relatou outro fato instigante, de ter encontrado uma sucuri enorme saindo da mata (“Liguei para o Ibama, liguei para o mundo inteiro. Um caminhoneiro sugeriu que eu fizesse ensopado. Eu disse: Leve esse diabo para você. Ele aceitou”). 

Ele lamentou de ninguém dar a mínima para o local (“Encontrei um jacaré cheio de piche no brejo, as indústrias jogam dejetos lá. Chamei o Centro de Recursos Ambientais, a gente tem que fazer a nossa parte. Ninguém veio. Ninguém vem aqui”).

Julimar gostava de ficar dentro de casa, na internet, no Orkut, ou brincando com as filhas. Quarentão remediado, dono de uma pequena lanchonete, fechava cedo o seu comércio e reclamava de o povoado ter ganho fama de prostíbulo. No entanto, parecia mais preocupado com a violência, que impedia as escolas locais de funcionar à noite (“Tem dez mil moradores nesse povoado. Custava instalar um módulo policial?”).

Na estrada de asfalto transitava a riqueza do petróleo. Parecia estratégico estar ali, recolhendo o que caía. A travesti Gil, por exemplo, comentou ter comprado dois Celtas com a sua casa, que engajava outras travestis e mulheres (“Vocês chegaram num dia fraco, hoje as mulheres foram para Candeias”). 

Julimar relatou que alguns clientes dos bordéis, empolgados, faziam grandes dívidas e prometiam voltar para saldá-las, deixando penduradas suas carteiras de Identidade (“Em qualquer lugar é assim. Se bem que é mais barato fazer outro documento do que retornar para pagar, você não acha?”). Gil confirmou a penhora de algumas RGs, e que algumas delas ficaram órfãs.

Uma garçonete de Gil disse ter crescido em Candeias, e elogiou os cantores de arrocha (“Todos esses artistas são muito simples, a Nara Costa, o Márcio Moreno, a Flor da Tailândia, o Latitude Dez... O Tyrone Cigano sempre aparece nos bares, distribui CDs…”).

A conversa seguia num ritmo muito agradável, mas o sol corria para o poente, e partimos. Escrevi um texto sobre a visita, mas ele ficou sem publicação e só agora o reencontrei no labirinto das gavetas. 

Soube que muita coisa mudou no povoado, que cresceu e se urbanizou, e o retrato aqui pintado está desbotado. No entanto, não quis jogar fora esse documento do que fomos, essa identidade que ficou guardada do lado de cá, nos meus olhos, pendente de resgate. E que espera um dia de retorno, lembrando das cores daquele crepúsculo.


Esconjuro!

Publicado no Jornal A Tarde 

Dizem que o Tinhoso, quando não vem, manda os secretários. E também se comenta que ele, o Sujo, é dono de imensas riquezas materiais, o que nos faz crer que possa contratar inúmeros prepostos. O cotidiano parece confirmar essa ideia.

Vinha eu caminhando em paz e discretamente pelo Centro de Salvador, carregando meus 50 anos nos ombros, quando uma vendedora ambulante me aborda e, com mil insistências, me exige experimentar a sua castanha caramelizada, que seria crocante, fresquinha e vitaminada. Tantas fez a dona, abusando da simpatia, que aceitei degustar uma porção pequena, até bem adoçada, mas que não valia o preço cobrado. Recusei comprar, e a vendedora ameaçou chamar a polícia.

— Pode chamar o Exército! — Respondi indignado, julgando-me em mais um golpe dos que se aplicam na avenida. Logo eu, que trabalhei em feira livre, no interior, e dava pedaços de frutas para os fregueses provarem! Fui embora resmungando, xingando até em braille, enquanto a moça ficou chorando as castanhas, nós dois engasgados com o caso.

Mas as insídias do Inimigo nos testam até nas horas de lazer. Numa manhã de sábado, eu cheguei cedo numa praia em Salvador, sentei-me numa barraca e passei a desfrutar do atendimento lento e errático. Como eu estava entregue à preguiça, deixei a paciência bronzear.

Mais tarde, quando as mesas já estavam lotadas de famílias, com adultos e crianças conversando tranquilamente, o dono do estabelecimento ligou sua aparelhagem de som no máximo volume, tocando músicas que devem ter sido compostas por um bestiário de depravados. Em volta do balcão estavam os amigos do barraqueiro, recém-chegados, que não consumiam nada mas se deliciavam com aquele inferno.

Alguns clientes continuaram se esforçando para manter o diálogo debaixo dos sombreiros, mas a maioria parecia paralisada, talvez anestesiada pelo convívio regular com aquele tipo de afronta.

Chamei o garçom, paguei e saí.

Quando já estava a quase 500 metros, fui alcançado pelo dono da barraca que vinha me perguntar pela conta, com uma cara de poucos amigos. Relatei o pagamento a um funcionário chamado Rodiney ou Rildney, mas ele disse que não empregava gente com aquele nome. Mostrei no celular o pix para um certo Rauldiney, que foi finalmente reconhecido como trabalhador da bodega. Não ouvi nenhum pedido de desculpas. 

E voltemos ao centro. Oremos! Mas não tão alto, por favor. Porque aqui aconteceu uma mudança naquele hábito de defumar as lojas com incenso ou aspergir alfazema e água com açúcar, ou lavar o negócio com sal grosso. Talvez os comerciantes não creiam mais nessas práticas ou tenham resolvido reforçá-las com um exorcismo pesado à base de música religiosa estridente, gritada toda manhã nos ouvidos dos funcionários, dos transeuntes e dos primeiros clientes do dia.

Parece que a intenção é alcançar as profundezas, fazendo o rumor invadir bueiros, formigueiros, o metrô e as camadas ainda mais baixas, nos territórios de Asmodeu, Belzebu e Rauldiney.

E assim vamos vivendo, com o Cão assediado de um lado e as religiões exorcizando a alma das pessoas. Deus nos acuda!



Noites caninas

(Publicado no jornal A Tarde em dezembro de 2023)


Encontrei uns amigos no Pelourinho num fim de tarde e decidimos tomar uma cerveja num restaurante por lá mesmo. Sentamos em uma mesa na calçada e desfrutamos de um show inédito: um operário a serviço da casa, usando uma esmerilhadeira, serrava ferros próximo aos clientes. Uma exibição de música moderna, com certeza, pois se fosse obra comum aconteceria em horário sem público. Para incrementar o espetáculo, logo começou uma apresentação de voz e violão na varanda improvisada, com as caixas de som em altíssimo volume. E a inovação seguiu, com a serra dos ferros e o violão soando simultaneamente, o cantor e o operário saudando-se nos intervalos.

Mas a culpa foi minha. Eu já sabia da fama do serviço no local, só estava com medo de cansar os amigos na busca de alguma alternativa. Além do mais, o tal restaurante tinha uma bela fachada, e havia  uma garçonete alta, bela, e sorridente. Claro que ela estaria melhor como convidada à mesa, porque não nos valia no atendimento. Dava as costas para os clientes e conversava com o homem do esmeril, ou com o músico, ou se perdia no interior do bar em animadas conversas com colegas. Típica situação em que a gente se sente bem em casa, na casa dos outros.

Noite recente, fui a uma palestra e, como o motivo era só encontrar algumas amigas, largamos o evento e ficamos no pátio do teatro. Apareceu uma mulher de seus 70 anos e me pediu que a fotografasse com seu celular, perto de uma estátua do jardim. Assim que me deslocou da turma, a dona falou-me dos seus dois filhos e quatro netos, suas muitas viagens, inclusive para Paris e Moscou, um acidente recente, a internação por cinco meses, a moradia na Barra e o medo de envelhecer ao lado de um marido idoso e sedentário. Vez em quando repetia ser esposa de um delegado aposentado, daí que só lhe dei conselhos amenos.

Noutra noite, ainda, na porta de um bar no 2 de Julho, o garçom demorava a pesquisar o preço de uma cerveja comum na casa, mas eu esperava. Aproximou-se então um conhecido que faz biscates no bairro, querendo vender plantas que ganhara em algum serviço. Recusei as plantas, mas dei alguma ajuda para o homem sempre empenhado, e lá se foi ele com uma matilha de cães enormes que sempre arrasta. Ora, há por aqui mais de um sujeito pobre que alimenta vários cães e os mantém saudáveis, e os cachorros amam esses donos.

Logo estourou uma barulheira: os cinco cães que seguiam o homem tentavam massacrar um gato velho espremido entre presas e latidos. Uma Ucrânia animal. Finalmente, uma cliente do bar corre para acudir, eu chego gritando, o dono da matilha também se intromete e o felino escala um muro em ruínas. Os vizinhos estão em choque com tanto alarido. O biscateiro teve a perna dilacerada por algum dos bichos e conseguiu no bar uma cachaça para “queimar” os ferimentos. A dona do boteco não perde tempo, lava o sangue derramado na calçada. O homem machucado usa o dinheiro que lhe dei para comprar uma lata de cerveja, ninguém há de julgá-lo.

No meio da noite, a garçonete, os velhos, cães e gatos, terão seu repouso. Só eu não durmo nem velo, como em oração antiga, no transe do mundo aceso.


Faça o favor de me trazer depressa

Publicado no Jornal A Tarde em janeiro de 2024

 


O garçom transita entre as mesas entulhadas no salão e ouve fragmentos de diálogos dos clientes, homens e mulheres. 

— Meu pai não gasta com Natal, Carnaval, essas folias. Espera passar a data e aproveita as promoções de chester, de roupa, de tudo. Só ele tem dinheiro depois das festas.

— Minha nova música é “Tubiruteté, Tubiruteté. Cocada, tabaco, cachaça na boca. Encher a caneca e soneca depois. Tubiruteté”… Aí entra a segunda voz…

— Não importa se foi comprado. Importa que o time tá na série A!

— Vocês, que são baianos, sabem como descubro meu orixá?

O garçom transita no salão e desce e sobe várias vezes três degraus para a calçada, onde há mais mesas. Ouve fragmentos de diálogos. 

— Eu só tinha nove anos e sentia uma pena da vizinha… O marido foi embora e deixou três crianças pequenas. A boba nem pedia pensão, apaixonada. Os gatos destruindo o sofá, os meninos sem banho, ela ouvindo Julio Iglesias. 

— Já pedi a minha calça três vezes , e ele não devolveu. Ontem fez esse post usando ela: 214 curtidas.

— Por trás desse estereótipo pejorativo existe uma tentativa de apagamento dessas camadas.

— Por mim você namora quem quiser. Mas foi catar logo minha vizinha? 

— Os jovens inúteis, as crianças rebeldes, o miojo cada vez menor.

— O orixá depende do quê? É pelo dia do nascimento?

O garçom no salão e na calçada do bar, sobe e desce escadas, e atravessa a rua para a calçada em frente, onde o dono do negócio colocou mais mesas. Fragmentos…

— Otário de verdade se dedica, cria notícias, mistura outras, se empolga, tem certeza.  

— Eu tenho várias músicas prontas, mais de 200. Só não arranjei empresário. Tem um reggae que é assim…

— Comigo você era discreto. Agora, com essa, aí pelas esquinas. Já pensou se tua mulher te pega?

— Para conhecer um terreiro, precisa pagar?

O garçom está exausto, já recolheu as mesas e cadeiras da área externa. É quase meia-noite e a clientela míngua em dois pequenos grupos embriagados no salão. Restos de diálogos.

— Amarrei fitinhas do Bonfim naquela igreja do Pelourinho, aquela da ladeira, e na Barra, num monte de lugar. Amanhã viajo protegido. Adeus Bahia, adeus férias. 

— Tem certeza que a conta deu tudo isso?


Aos pés do Caboclo

(Publicado no Jornal A Tarde de 4.2.2024)


Anunciaram e garantiram que teremos uma estação de metrô no Campo Grande, a praça central da nossa cidade e do estado, o que nos garantirá chegar mais rápido ao pé do Caboclo instalado naquele logradouro, fazer pedidos e chorar pitangas, como manda a tradição da Boa Terra.

É mesmo muito bem-vinda a notícia, e também o trem, que vai trazer para a área central milhares de trabalhadores que prestam serviço na Graça, Vitória, na Barra e adjacências, e que hoje precisam descer na estação da Lapa e prosseguir a pé o resto do caminho. Mas outras esperanças sorriem por trás das árvores do Campo Grande, nosso pequeno jardim botânico e parque das crianças.

É preciso dar esta praça mais vezes ao povo, mais do que nas festas das independências da Bahia e do Brasil e do Natal. Facilitar a frequência, e nisso o transporte é essencial, principalmente oferecendo-se uma malha metroviária que conecta do Aeroporto até o Norte rodoviário. E as pessoas devem ser conduzidas ao centro não só como operários, mas como namorados, pais, mães, crianças e idosos que desfrutem do verde e outras atrações, rompendo as tradições excludentes da capital baiana.

Em primeiro lugar, as árvores do Campo Grande, os animais e entidades que as habitam esperam sobreviver à ampliação na rede do metrô, numa cidade em que a motosserra rosna sem regras em obras privadas e públicas. Parece não haver protesto, ministério público e imprensa que dê conta de tanto massacre. É preciso mesmo atenção para não repetirmos a tristeza do Campo da Pólvora, seguramente uma das praças soteropolitanas mais arrasadas, há tempos, e dos correntes ataques ao Dique do Tororó.

Mas vejamos as outras vantagens de uma estação de metrô na Praça 2 de Julho, o conhecido Campo Grande: Já está cogitada a reinauguração da sala principal do Teatro Castro Alves para meados de 2026. Ali também está a Concha Acústica, importante equipamento para a cultura musical da cidade. Bem perto, os teatros Vila Velha e Gamboa, e os subutilizados Passeio Público, Palácio da Aclamação e Largo dos Aflitos. Bem assim as faculdades de Belas Artes e de Teatro da UFBA, com a galeria Cañizares e o Teatro Martins Gonçalves. 

A Associação Cultural Brasil Estados Unidos (ACBEU) já foi posta abaixo para dar lugar a um prédio residencial, mas perto, ainda na Vitória, sobrevive o Instituto Goethe, ou Instituto Cultural Brasil Alemanha, com programação ativa. Estamos falando da zona mais importante, e de uma das mais desarticuladas, da vida artística baiana. Aproveite-se, da iniciativa privada, outros espaços, inclusive a Casa de Itália e auditórios de hotéis, e as possibilidades se multiplicam.

Imagino um público de todos os bairros, classes e idades emergindo da nova estação para aproveitar os mirantes e espetáculos, restaurantes, bares, sorveterias, cafés e o que mais possa haver. Muita gente que me lê já vê oportunidades nesse cenário. Outros visualizam uma invasão de pobres que vêm tomar os bairros nobres, como se esse fluxo não acontecesse todos os dias, só que numa condição subalterna. 

No entanto, as árvores e encantados do Campo Grande esperam que haja lugar para todos. Advertem, ademais, que esta cidade é muitas vezes madastra má e, quando um lugar brilha, primeiro afastam os comerciantes populares, que vão embora com os consumidores populares, e depois o pitoresco vira shopping, e só então os novos donos mandam grafitar um painel com imagens da população nativa.

Que sejam grandes os corações dos homens, no velho coração da cidade.



Devo, não nego

(Publicado no Jornal A Tarde)


Telefona o afilhado do interior, jovem de 27 anos, frentista: “Padrinho, preciso de R$ 3 mil para uma questão urgente”.

Ora, R$ 3 mil, no sertão, muitas vezes é o preço de um homem. Os golpistas telefônicos, quando ligam para idosas e dizem que capturaram um filho delas que mora longe, exigem depósito rápido desse valor na sua conta bancária oficial. Em outros casos, esses mesmos bandidos fingem ser aquele primo sumido, de raras e antigas visitas, que está metido em apuros em lugar ermo, necessitando de um socorro rápido em forma de PIX. Também custa R$ 3 mil. 

Diversas demandas, um complemento num tratamento médico que deveria ser totalmente público, uma propina para se garantir algum serviço lícito ou ilícito, um trabalho espiritual para se livrar de vícios ou obter amarração amorosa, ou mesmo um acordo informal com o desafeto que esteja ameaçando um escândalo, processo ou violência, orçam nesta cifra. O que o dinheiro pode comprar, compra com múltiplos de três.

E por que se convencionou este valor? Porque é um dinheiro que qualquer um, ou quase qualquer um, alcança em tempo relativamente curto. Todo mundo tem uma TV em casa, às vezes o único móvel, e um botijão de gás, objetos de fácil venda. No quintal, bicicleta ou moto usadas, e algum material de construção que espera oportunidade de obra. Basta liquidar esses cacarecos e se obtém uma semente. A um cunhado se pede outro pedaço emprestado, para os casos de vida ou morte. Outro montante vem da avó aposentada, que, quando não tem saldo, bate na porta da financeira. Puxa de um primo, abraça-se um amigo, aperta-se um vereador conhecido e os R$ 3 mil se materializam. Também algum padrinho colabora.

O certo é que a regra de R$ 3 mil também se esgota quando o assunto toma uma configuração mais complexa, mais desesperadora, a exemplo do que vem ocorrendo nas novas interações sociais das pequenas cidades, marcadas cada vez mais por violências e pequenas infrações legais. Os jovens se enrolam, se engravidam, se descaminham, e suas mães humildes e desconsoladas procuram os advogados, pedindo que realizem o milagre do habeas-corpus. É algo que estes profissionais precisam concretizar quase todos os dias como prova de seus poderes místicos. 

As famílias não entendem como funciona o habeas-corpus mas acreditam que o valor cobrado, mais alto que R$ 3 mil, é como uma multa administrativa, uma fiança que depositam para obter uma segunda chance de recomeço para o filho (“Se errar de novo, te deixo preso”). A medida judicial, longe de ser compreendida, soa como uma mágica no ritualístico ambiente jurídico. O pagamento ao advogado, uma oblação, um ofertório, uma oferenda que se dá pela graça da liberdade alcançada.

O meu afilhado não se envolveu em nenhuma peripécia dessas, afinal, e não me pede dinheiro, só conselhos. O que ele fez foi conhecer moça pela internet, moça de cidade distante, e ter iniciado conversa saliente com ela. O rapaz me contou que chegou a enviar foto sua de cueca, ou algo mais ousado, tudo via rede. Poucos dias depois, o pai da garota entrou em contato pelo mesmo canal e se disse chocado ao saber daquela paquera, que a jovem era menor de idade, e que estava providenciando, num longínquo Paraná, a prisão do moço frentista na Bahia. E a condição para haver acordo era um depósito de R$ 3 mil.

O afilhado me envia as imagens que recebeu na conversa com o tal pai. A foto de uma “sala destruída” por uma suposta briga de pai e filha parece armação. Outra, da fachada de uma delegacia de polícia paranaense, uma balela. Mais outra, da mesa de um delegado com distintivo e revólver, até impressiona.

Recomendo resistir sem responder e logo as ameaças cessam. As bravatas caem no vazio, logo desaparecem o dragão e a moça, e o rapaz finalmente bloqueia o contato e volta à sua vidinha.

No interior há isso também: é preciso secar e cicatrizar o passado, ou o dia de hoje se torna insuportável, com seu novo sol e seu novo talho. E cada centavo devido é pago religiosamente. A Deus ou ao Diabo que o carregue.


A gente morre e fica tudo aí

(Publicado no Jornal A Tarde)



Há tempos que o velho Cícero não veste camisa para sentar ao almoço. Depois que lhe faleceu a primeira mulher, até se arranjou com uma dona mais nova, mas não a obedece, perdeu os bons modos, mostra as presas. Está assim com todo mundo.

Dia desses, cansado de receber telefonemas enganosos sobre movimentações na sua conta bancária, berrou ao falsário do outro lado da linha uma tonelada de desaforos. Chamou-o de ladrão para baixo. O velho, que é branco como um milho novo,  pintou-se todo de sangue na hora.

— Ninguém é honesto! - Reclama Cícero,  entre um suspiro e outro, enquanto arrasta o corpo exausto entre o jardim e o quintal da casa.

E talvez ninguém seja mesmo. A sua nova mulher, que antes era uma diarista e cozinheira de suas marmitas, inventou de melhorar as receitas e foi coabitar com o velho. Mas nunca escondeu que está com ele para garantir sua sobrevivência, e reclama de não obter nada daquele pão-duro. E ela comenta essas coisas por todos os lugares onde anda, alegrando as rodas de fofocas.

Cícero chama o filho de “Devagar”. A nora, de “Onça”, “Sargentona” e “A Rainha Elizabeth”. Emprestou dinheiro a juros aos vizinhos, para ver se ganhava uma renda extra, mas foi lesado pelos que mais diziam ser amigos. Procurou uma igreja pequena e pagou o carnê da “Fogueira dos Empresários”, para receber dos devedores, mas o investimento não deu resultado. Só um segundo prejuízo.

Sua única solução foi viver na modéstia, dentro de casa mesmo, da rede para os tamboretes, ou para a espreguiçadeira, ou sob as mangueiras do quintal, onde come com sal as frutas verdes.

Crê que muitos esperam que o sal o mate, e depois esquece esse pensamento. Lembra da falecida, que tinha refluxo, e que somente depois da morte dela o refluxo passou a atacá-lo, parecendo uma herança. Recorda que todos os problemas da casa, desde uma conta de água que vinha alta até o mês em que cortaram a luz, tudo na rua e nas repartições era a esposa quem resolvia. Ele só ficava por trás, resmungando, reclamando, dando pressa.

— Fale com o dono dos porcos, não com os porcos — ele exigia.

Tem um enorme sentimento de dívida para com ela, para com o seu nome, para com a sua memória.

— Nem respeitaram o velório. Gente de bermuda e chinelo. A humanidade perdeu a compostura! - Rumina, magoado.

O velho Cícero é um homem quase asqueroso. Só não o é porque antes vive muito só, na lonjura onde andam os seus olhos secos, nos seus momentos de mudez e perplexidade, em que divaga em branco enquanto espera o suor pingar das rugas.

É homem de cera, e quando for para o céu (todos vão para o céu!) já chega lá banhado, para não dar trabalho, duro e cor de nuvem, da alvura do que não há. 

Porque lhe basta uma hora morna na tarde, basta degustar o sabor familiar da manga ainda amarga para abstrair toda raiva e esquecer o refluxo e bendizer o sal que lhe talha a língua.

E se tornar um santo, como todos podemos ser, ao menos por meia hora, todos os dias. Ao menos quando desfrutamos, devotos, daquilo que nos dá gosto.


Esse seu coração

(Publicado no Jornal A Tarde)

Quando vem à cidade grande fazer exames médicos, o velho cícero pernoita no apartamento de Lavínia, sua irmã que mora no centro, pois tem que acordar cedo para as filas. 
É Lavínia, professora aposentada, mais velha que Cícero, que o leva em tudo, embora ele já conheça muita gente nas casas de saúde. A irmã fica nas antessalas dos ambulatórios, segurando as senhas, resmungando com outras mulheres na espera, enquanto Cícero vadeia nas varandas dos prédios, beberica um café nos ambulantes de sonhos e cigarros e se inteira das notícias com os seguranças, com os maqueiros de folga e outros desocupados.
Em casa, no interior, Cícero é ranzinza e quase não sai, mas basta viajar para virar um menino. Tudo lhe atrai a curiosidade. Interessa-se mais ainda pelo mendigo que esmola em frente ao Hospital das Clínicas, detém-se com ele, entrevista-o como se parente fosse. Quer saber onde o mendigo mora, porque entrou naquele modo de vida, onde está sua família, e com muitas perguntas lhe dá tratamento. E esvazia o bolso, comovido com o que ouve. Então vem Lavínia buscá-lo para a consulta.
Cícero tem a sua aposentadoria e algum recurso guardado, mas a receita do oftalmologista quase vence sem ele tomar providência. Foi necessário Lavínia ter pago do seu dinheiro os óculos novos, que ele não usa. O velho carrega um colírio no bolso, mas vencido há um ano. Medicação nenhuma ele compra. Se acha amostra grátis, usa só dois comprimidos. Exames, faz a pulso, e perde os resultados. Felizmente tem saúde regular, fora o refluxo que apareceu há poucos anos. Mas assim como a comida lhe sobe pela goela para abandoná-lo, parece que o abandonam também as doenças, as ziquiziras, os olhados. E Cícero só admite que o cure de vez, quando precisa de cura, as rezadeiras do interior.
Lavínia mora num apartamento pequeno no subsolo, e Cícero não consegue dormir a noite inteira. Estranha a cama, o calor, o mofo e o cheiro típico dos subterrâneos. Não confessa a ninguém, mas sempre teve pavor de ser enterrado vivo, e a moradia no subsolo lhe sugere o purgatório. Até de dia é noturna. O velho já ofereceu um terreno para a irmã fazer uma casinha perto de onde ele mora, mas ela gosta das ilusões do asfalto, e resiste a mudar suas sistemáticas.
No dia de Cícero viajar, Lavínia o leva na rodoviária. Os dois são idosos pobres como muitos que desfilam na estação, mas mais pálidos. Ela é gorda e ele, magro, e carrega uma bolsa surrada e flácida. Lavínia compra revistas de palavras cruzadas, que o irmão adora, e muitas frutas para a viagem. Também dá dinheiro para Cícero investir em vitaminas e alimentação saudável. 
O alto-falante anuncia a hora da partida e uma lágrima quer saltar nela.
Uma hora depois, na estrada para o interior, o ônibus pára e entram vendedores de pastéis, de refrigerantes, de salgadinhos ultraprocessados e de chocolates gordurosos. Cícero faz a festa com o dinheiro da irmã, e, abrindo embalagens de diversos sabores, procura esquecer a saudade que lhe rói. 
Cícero sabe que saudade é dívida do passado e dúvida sobre um reencontro no futuro. E que dívidas e dúvidas - Misericórdia! - são as coisas que mais matam gente no mundo.

Meus parabéns agora

(Publicado no Jornal A Tarde de 23.6.2024)


Dona Lavínia não gosta de aniversários, o dela mesmo não comemora. Fosse uma formatura, uma promoção, uma casa nova, ainda vê sentido festejar, são coisas que mudam a vida das pessoas para melhor. Mas aniversários, assim como aposentadorias, são alegrias mais elegantes quanto mais discretas. Um desperdício encomendar doces para estas ocasiões que são metade melancólicas. Essa é a opinião dela.
Na verdade, Lavínia nunca foi muito chegada a festa, mesmo porque, quando criança, tinha uma vida muito simples no interior. Depois que cresceu, veio morar com uma tia solteirona na capital, tia essa professora, e ela mesmo se tornou professora e permaneceu solteira na idade adulta. Fora um noivado inútil, que se desfez após uma década de novela. Aposentou-se, afinal, fiel à solidão.
Ainda na infância teve aquele episódio de Lavínia saber que uma colega de escola pública, filha de um vereador, teria aniversário numa tarde de sábado. Algumas coleguinhas se arrumaram como bonecas para a festa e levaram presentes. Lavínia, depois de muito trabalhar em casa e brincar na rua, apenas lembrou-se do evento e, se sentindo convidada, apareceu por lá com a roupa enxovalhada. Somente alguns anos depois, já adolescente, tomou consciência da forma que foi recebida e da espera para ser servida.
E agora, idosa, noite de sábado, ia ao aniversário do marido de Estela, velha colega do tempo em que as duas ensinavam num colégio estadual. Quase que ela recusou o convite, mas Estela convocou todas as amigas no grupo do aplicativo de mensagens, e Marta, outra colega de ambas, vizinha de Lavínia, aceitou primeiro. Portanto, havia até companhia para o baile.
Baile é uma forma de dizer, porque houve apenas o bufê no playground de um edifício. A turma de idosos ficou encostada à parede, tímida e cerimoniosa. As filhas e noras do aniversariante, embora nervosas com detalhes da arrumação, procuravam passar simpatia. Os filhos homens e os genros, muito mal-vestidos, fecharam-se a um canto discutindo política e futebol com beŕros e palavrões, regados a talagadas de cerveja. A geração mais jovem mal aguardou a hora dos parabéns para fugir para seus quartos e suas redes eletrônicas, escapando do agouro da velhice. Só as crianças pareciam felizes.
As crianças e Estela. Ela se rejubilava com tudo aquilo, por ter marido, apesar de lento e silencioso, ter amigas, ter filhos e genros ogros, e filhas azedas. Tudo lhe valia porque houve bolo e oração antes dos parabéns e um cantor chamado pela família tocou três músicas no violão, já que o condomínio não permitia mais.
Esse cantor, no meio da apresentação, elogiou a beleza das senhoras presentes, principalmente Lavínia e o seu vestido de cetim vermelho:
- Essa derradeira canção vai para todas as damas, principalmente a Miss Simpatia, Vovó Lavínia - Logo ela, que não era nem mãe!
Lavínia e Marta voltaram para suas casas no carro de um dos convidados da festa. Já no seu quarto de dormir, Lavínia rabiscou na contracapa de uma revista de fofocas aquela data e um pequeno resumo do ocorrido. Ela tinha esse hábito de anotações avulsas, um dia reuniria tudo num livro da sua vida. Em seguida,
deitou-se e já ia adormecendo, satisfeita. Se Deus a levasse naquela hora, partiria feliz. 
De repente levantou com um pequeno mal-estar, um certo refluxo, porque tinha comido frituras na festa. Logo arrependeu-se da ideia do “partiria feliz”. Longe dela estragar os comentários que haveria no dia seguinte, no grupo de mensagens das amigas, todas gratas a Estela. 
Deu um tempo, colocou mais um travesseiro sob a cabeça e finalmente dormiu, mas com o sono leve de sempre, meio alerta. 
Desde criança era assim, difícil abrandar por completo.

Um dia de rotina


(Publicado no jornal A Tarde de 14.7.2024)


Desperto com o celular berrando ao pé da cama, o galo eletrônico. Levanto ainda zonzo, agradecendo pelo novo dia, e me arrasto até a pia para o ritual de reconstrução do rosto. Do banheiro, ouço mais galos eletrônicos berrando nos apartamentos vizinhos, tecendo a manhã.
Saio correndo, embora seja cedo. Tenho sempre pressa de chegar logo, de adiantar os eventos, como se pudesse obter um latifúndio de tempo.
Na primeira rua a atravessar, o sinal está fechado para os pedestres, mas um casal de mãos dadas se atira entre os automóveis, correndo, desviando, numa loteria do atropelo. Quando chega à calçada do outro lado, o casal pára, se abraça e volta a andar muito lento, rindo da tola correria recente. 
Na segunda rua a atravessar, a pista vazia, um entregador de frutas dos mercados do Centro deixa cair do seu carrinho uma caixa de laranjas. A madeira da caixa se arrebenta e as frutas douradas correm brilhantes sobre o asfalto negro, como estrelas que refletem a luz matinal. Um gari começa a catar aquelas jóias e pede em nome de Deus que os passantes também ajudem o entregador. É assim que se cria uma igreja útil. 
No ponto de ônibus, a mesma condição, a mesma hora, os mesmos pensamentos chegam. O coletivo arrasta rápido e quase joga na rua uma idosa que tenta pegar o transporte. A velha sobe tremendo, no carro que também treme, e resmunga contra o motorista, que sequer presta atenção. Na verdade, o motorista e o cobrador estão distraídos, cercados de moças jovens, com fardas colegiais, que iludem os marmanjos com gracinhas e manhas. “Raparigas do Cão”, reclama a idosa, “Tomara que as famílias descubram tudo!”.
Desço do ônibus e passo, todos os dias, em frente a dois grandes hospitais públicos que recebem ambulâncias do interior. É gente que vem para exames simples, ou para tratamentos continuados ou casos graves de urgência. Os parentes aguardam os resultados do lado de fora das casas de saúde, com olhares perdidos, merendando entre os camelôs de lanches. Tenho sempre medo de encontrar por ali algum conhecido da minha cidade do sertão, alguém que esteja na expectativa de um milagre, a mais humilde, tensa e silenciosa expectativa. Também sinto alguma culpa porque raramente os encontro, e assim os ajudo pouco ou quase nada, não lhes ensino o que aprendi sobre a metrópole, coisas que todo interiorano precisa saber.
Estou chegando para mais um dia de trabalho que começa. No jardim da empresa uma colega veterana está com as mãos e os olhos virados para o céu, parece que ora, numa prece breve. Ao lado dela, um vigilante hasteia bandeiras. Os outros funcionários aparecem aos poucos, debochando uns dos outros, em voz alta, pelas derrotas do futebol da noite anterior.
Penso quanto tempo as coisas permanecerão do jeito que são, com jardins, bandeiras coloridas e futebol, até que a tecnologia e soluções mirabolantes venham estragar o que resta, oferecendo ilusórios latifúndios de tempo. Pergunto-me quantas vezes é preciso orar. 
E sigo a rotina ouvindo o cocoricó, o latido, o miado, o coaxar, o trinado, o mugido, o uivar dos celulares nas mãos dos colegas, na fila do restaurante, na rua. 
O dia vai passando, a tarde vem e pela noite eu espero. E vou catando risos e gestos estabanados de gente viva, gente que faz coisas desastradas ou sagradas que a máquina jamais imita.



Saturday, July 13, 2024

Mutirão e assombração

No dia 22 de abril de 1936 fomos trabalhar num mutirão na casa de Joaquim Jeremias, na fazenda Boa Sorte. Os encarregados foram Paulo e José Pequeno. Estive muitíssimo bem. O serviço foi feito com 15 homens. À noite, houve uma aposta de ver quem ia à casa da fazenda do Caldeirão, mal afamada de assombração, e de lá trazer umas folhas de cajazeira. Um foi e não trouxe. Outra aposta para ver quem ia à mesma casa e lá abrir uma porta da casa de farinha e por ela entrar no escuro  e passar por toda a casa e ir  à varanda e lá procurar uma mesa e desta tirar uma gaveta e trazer para a Boa Sorte, onde esperado por mais de 20 pessoas. Um rapaz disse que se pagassem a ele que ia e a gaveta trazia. Todos duvidaram e apostaram 5#000 réis para o tal ir e trazer. O caso da aposta foi que na casa tinha morrido um velho há muitos dias e na tal casa ninguém tinha coragem de ir de noite, por isso fizeram a aposta. A casa é muito velha e muito grande e já nela morreu muita gente e lá está para ser derrubada. O tal disse que ia e dissemos “pois vá que é garantido os 5# se trouxer a gaveta”. A noite era de escuro e chuva. Ele foi e quando veio foi com a tal gaveta. Foi uma grande ganzarra de todos que ali estavam. O tal ganhou os 5# e ofereceu a quem quisesse ir à casa velha do Caldeirão e levasse a gaveta e botasse a onde estava. Ninguém quis ir. Eu por minha vez gosto muito de dinheiro mas porém assim não o quero ganhar, pois tenho muito receio da tal casa velha do Caldeirão. Só mesmo quem não tem pena de si e não importa com as almas de quem já morreu. 


Registro feito por Francisco Lisboa Oliveira encontrado e transcrito por seu sobrinho-neto Pedro Juarez Oliveira Pinheiro, com adaptações de Franklin Carvalho.

Thursday, June 13, 2024

O homem que não sabia escrever

O homem que não sabia escrever

(Para Antônio Torres*) 


Naquele dia o homem não sabia escrever, jamais soubera.

Ele andava deserto pelas ruas de sua pequena cidade, iletrado igual nasceu, e a luz daquele dia o tornava também míope, com grave grau de embaçamento. Desistira, afinal, da palavra escrita.

Seguia sozinho, esquecido de suas antigas leituras e dos títulos oferecidos nas prateleiras das distinções. Não era mesmo, na sua memória, um nome de Letras e, talvez desejasse que os nomes e as letras o esquecessem.

Acabou indo parar na feira livre, o lugar mais seguro para quem evita as armadilhas domésticas que a morte urde.

Transitou pelos corredores tortos de barracas rústicas e parou no canto mais sinistro e escuro da feira. Sentou-se, enfim, num tamborete entre boxes que vendiam bebida, cercado de homens e mulheres embriagados e felizes.

Aquilo já era metade da tarde e o homem, ainda mais analfabeto que as pessoas à sua volta, baqueou por não saber se divertir daquele jeito. Notou que as mulheres, suadas e bêbadas de aguardente, tinham um pudor exagerado na defesa de uma beleza ausente, com um recato quase beato. Os homens, corroídos por suas rotinas precárias no trabalho ao sol, viam honra em ostentar qualquer delicadeza, um anel, um talismã, um chapéu, um relógio de pulso que os salvasse de serem totalmente pobres e rudes.

O homem recém-chegado lembrou-se de quando era criança e andava por ali mesmo, no meio de gente igual àquela, vendendo picolé ou mercando verduras ou tecidos, e que a tarde sempre era a hora de as vendas decaírem, principalmente se chovesse. Só quem tinha bar, e ele, quando menino, também atendera balcão de bar, via tarde e noite com bons olhos.

E agora, que vantagem grande! Agora que tinha desaprendido dos livros que prometeram salvá-lo, podia finalmente viver diferente.

E se fosse aquele estranho ali ao lado, de olhos vermelhos e rosto inchado? Essa era também uma forma de viver, não? E aquele outro, todo solícito, que bajula o cidadão que passa a troco de uns centavos para cigarros? E se fosse aquela mulher de vestido gasto, que apregoa mangas, as frutas murchas como seus seios, derramando mel dentro de uma bacia de alumínio, mamas vazando? Ou aquele outro, encardido, que nem os cães vadios toleram? Vida também, não? Se fosse neto e bisneto de pessoas de mínima herança e renovasse da sua própria forma erros e votos familiares de insuficiência?

Teria menos luz nos olhos? Isso é vida?

E se acreditaria amado e protegido pelos donos e patrões? E se sentiria mais pátria, igreja? Teria fé verdadeira em autoridades e documentos, em pessoas diplomadas?

O homem estava louco, ou bêbado sem uma gota de álcool, como o mais desconjuntado daqueles à sua volta, como um roto e mudo acocorado ao seu lado.

A única e grande diferença, e o homem não sabia descrevê-la porque não era, nunca fôra bom com as palavras, é que o seu coração continha ainda uma mágoa, uma lágrima, uma inquietação sem nome que era o seu amuleto, sua medalha, seu patuá.

Só por aquela condição não era totalmente cego, e tinha também alguma elegância.

Só por isso buscava naquela hora, na memória, alguma linha para formar letras, apenas um anúncio de traço que fosse, porque era o que lhe valia, por toda a vida: aprender, de novo e cada vez mais, a falar daquela gente que tanto o assombrava.

*Compartilhado por e-mail com o escritor em 10.6.2024