Thursday, October 03, 2013

Bolhas

As identidades surgem agregando objetos materiais e imateriais e depois desaparecem, liberando esses objetos para novos vínculos, novas identidades. Vista de uma perspectiva histórica, a existência é um tecido vivo onde aparecem agregações repentinas, movimentando os elementos no seu entorno. O tecido natural está vibrando, pulsando, como água fervente onde as bolhas explodem neste e naquele lugar e depois desaparecem, dando lugar a outras que serão formadas com o mesmo líquido.

Morte e movimento



A morte é a primeira regra, princípio de negação, gerador de movimento. Dela derivam todas as outras condicionantes, sejam físicas, biológicas, religiosas, legais etc. É o evento irreversível que assegura a irreversibilidade de todos os outros eventos. É também o fato que recarrega o mundo, ao mesmo tempo desorganizando e reorganizando as relações entre os seres[1].

Cada falecimento é também um evento de estremecimento na fronteira que separa os vivos dos mortos, daí provocar o medo duplo de que mais vivos morram ou que os mortos voltem. Medo de que a fronteira se rompa, estabelecendo um desequilíbrio, reunindo o que está providencialmente separado. Por mais que a sociedade, no limite, aspire ao convívio com seus falecidos, a convenção geral é o tabu, que inclui não pronunciar o nome, não travar contato com o corpo, destruir completamente e imediatamente o cadáver (cremação, eliminação de pertences) e outras formas de interdição. Essas frágeis normas, que variam de acordo com cada cultura, local etc, e sofrem mutações ao longo dos anos, regulam todas as sociedades e explicam o mesmo estado de defesa.

Para se chegar a uma compreensão da morte no contexto geral das forças da natureza, porém, é preciso reduzir o fato a seus tópicos essenciais. Embora possamos falar em termos entrópicos gerais, inclusive nas leis de conservação e perda de energia, a maneira mais clara de se entender a morte do ponto de vista físico é a da decomposição, ou desfazimento de identidades. Assim, se uma molécula se dissocia em suas formas elementares, morre. Até as menores partículas, se se desagregam, perecem. Nesse passo, podemos ir à relação mínima, formada por um item pontual (campo etc) e seu tempo. Morte é, portanto, dissolução de relações, inclusive de relação com o tempo.

Se observarmos bem, veremos que formas elementares não constituem identidades. Não porque não existam de fato, mas porque só são perceptíveis em associações, por contraposição ou interconexão. Identidades são atribuídas a conjuntos simples ou complexos, a agrupamento de unidades de um mesmo elemento ou de elementos diferentes.


Elemento 1                                                                                                         Elemento 1
                     Unir_____Viver (ter identidade)_____ Morrer-----dispersar
Elemento 2                                                                                                         Elemento 2


De fato, não há vida nem movimento nem força, matéria ou energia que se valha de uma única partícula fundamental. Todo movimento é forjado por um conjunto. Não só os conjuntos participam dos movimentos como geram movimentos expressos em choques, reações químicas, explosões etc.

Desse ponto de vista, os pontos de choque – união/vida e dispersão/morte -, são locais críticos de reconfiguração dos objetos. A morte é um desatar causado por um choque externo ou interno, uma ação qualquer, simples movimento que seja. Mas é movimento, como se algo interceptasse a trajetória do conjunto (que também se move, por isso tem uma trajetória). É um movimento transversal, ou perpendicular, a outro, que ele acaba interrompendo.

A essa sucessão de movimentos descontinuados, chamamos tempo. Nesse caldo, alguns seres são despedaçados, outros são originados com identidades próprias e prosperam. Isso não acontece de forma excepcional, mas é regra tão absoluta (e inescapável, mais do que suporia qualquer lei de probabilidades) no jogo randômico do acaso, que só se pode supor duas coisas: todo equilíbrio é precário e a precariedade é o equilíbrio.

Outro aspecto a ser observado é que as descontinuações favorecem outros movimentos não só porque liberam formas para outros rearranjos, mas também porque criam vácuo no tempo e no espaço para essas novas combinações. É como uma bola de guizos que se choca com a parede e promove o agrupamento dos pequenos objetos em seu interior.

Anterior a tudo isso está a constatação de que continuidade e interrupção são essenciais ao movimento, ou formas de movimento intercomplementares. O universo, assim como o conhecemos, só funciona porque é descontínuo. Como um rio, só corre porque há desníveis no seu leito.




[1] A morte é a reciclagem da natureza. É interessante perceber que a morte também morre quando os cemitérios desaparecem e as gerações que os cultivam perecem e os sentimentos de uma época e as ideias e crenças sobre a morte sucumbem de uma geração para outra. Nada resiste. E também a morte é plena de vida nos charcos metanosos que putrefazem velhas cascas em novos fungos, em terra úmida, em insetos e pequenos pássaros. Do lado dos pântanos, a vida sorri uma boca cheia de limo e vapor e está prenha novamente.