Wednesday, November 29, 2023

A morte dos outros

A morte, esse muro opaco, é também um espelho que só mostra o que está entre nós e ela, nunca o que está por trás dela. De fato não somos obrigados a olhar este espelho indefinidamente, mas qualquer notícia de falecimento próximo impõe contemplá-lo. Quando isso acontece, é natural que nos vejamos enquadrados na sua moldura da mesma forma que a pessoa morta. Isso porque o homem é ser que vive coletivamente e, diante de um óbito, precisa refazer os parâmetros da sua própria identidade, uma identidade independente do ente que pereceu e independente também de tudo o que se desfaz com aquela perda. 


De fato, as primeiras perguntas diante da notícia de um falecimento são perguntas desesperadas de um ego ameaçado pelo seu próprio fim. Questões que latejam na consciência, reverberando um sentimento instintivo de autopreservação, no que pode ser definido como temor do contágio da morte. Tal temor, aliás, é muitas vezes revelado em diversas práticas culturais cujo objetivo é fazer com que a Morte, então visto como um personagem espectral, uma sombra assustadora, não atinja mais ninguém da família nem da vizinhança. Em muitos lugares tais práticas estão associadas mesmo aos rituais funerários que despacham, encomendam os falecidos a outro mundo, reforçando a imposição de que os mortos não retornem nem venham buscar os vivos, e de que estes, os que remanescem, sejam repatriados à sociedade. 


Apesar do abalo significativo em toda estrutura inconsciente da autopreservação, os vivos devem concentrar-se, organizar e participar de todas essas tarefas de ratificação da realidade, principalmente destes ritos funerários. Além disso, devem envolver-se nos processos de reestruturação material no que tange à herança, a sucessões, ao amparo e à subsistência familiar, que são também ações de negação do contágio, que são também expressões de sua própria permanência. 


Aqui não falamos do luto, carga afetiva que ainda vincula o vivo ao ser perdido, mas do efeito de um óbito sobre o instinto das pessoas remanescentes, projetando nestas uma ideia de risco ilimitado. Percebemos que essa grave noção de risco nem sempre se impõe por qualquer fato implicado naquele passamento, ou seja, a causa mortis de um homem, mas pela vastidão das armadilhas da morte e pela incompreensão da sua natureza enquanto fenômeno. A morte é única mas é variada, multiforme, multifacetada, e, em decorrência disso, imprevisível nos seus caprichos. E é o seu caráter indomesticável e ilimitado que constitui elemento agravante da fatalidade e da irreversibilidade que carrega. 


O ser humano antecipa involuntariamente a sua própria destruição ao tocar a morte do outro, como de regra acontece ante a notícia de qualquer experiência alheia. Antes de isso se dar por empatia, por ligame sentimental, ocorre pelo processo contínuo e infinito de construção de uma identidade que se faz em lances individuais e coletivos. Ao contrário de uma distinção ideal e simples entre vivos e mortos,os vivos fazem mentalmente todo o transcurso do falecimento. 


É nesse passo que, diante do espelho mudo, o vivo tenta construir mecanismos culturais de evitação, de limitação e de convívio mínimo com as imagens de morte, de negação, de uma amnésia instintiva, inclusive nos dias de luto, e de reelaboração da gente falecida num novo perfil vivo, numa forma de convívio atribuída unilateralmente. 


Ao mirar a morte, um espelho que nada lhe informa, o homem interpõe diversos elementos que disfarçam o vazio existente em ambos os lados dessa reflexão. Cria rituais, altares, neuroses, compensações, artes e outras estruturas que antes servem para diálogo consigo e com outros homens do que com aquilo que é inflexível e oco, e com aqueles que, já atrás do espelho, não dialogam.