Sunday, December 03, 2023

A montanha mágica

"Naphta pretendia manter a humanidade na sua atitude irracional diante dos fatos biológicos. Persistia naquela fase de religião primitiva, para a qual a morte representava um papa-gente, rodeado de tão misterioso terror que era impossível dirigir sobre ele o claro olhar da razão. Que barbárie! O espanto em face da morte remontava a épocas de um nível cultural extremamente baixo, nas quais a morte violenta fora a regra, e o cunho horripilante que a revestia por muito tempo se associara, no sentimento do homem, à idéia da morte em geral. Graças ao desenvolvimento da higiene e da consolidação da segurança pessoal, porém, a morte natural tornava-se comum, e ao trabalhador moderno a visão do repouso eterno, após o esgotamento normal das suas forças, absolutamente não se afigurava medonho, senão esperado e desejável. Não, a morte nada tinha de fantasma nem de mistério; era, sim, fenômeno inequívoco, racional, fisiologicamente necessário e simpático. Perder um tempo excessivo com a sua contemplação seria roubar à vida o que lhe cabe. Por isso tencionava-se combinar com aquele crematório modelo e o columbário [ossuário], que era o "recinto da morte", um "recinto da vida", no qual se aliariam a arquitetura, a pintura, a escultura, a música e a poesia, no sentido de afastar o espírito dos sobreviventes do espetáculo da morte, do luto obtuso e da lamentação inativa para os bens que a vida oferecia..." (Pg. 609)


"Que eles lançassem um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos, manifestamente haviam brotado de uma imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do castigo eterno, lá no Além." (Sobre a Inquisição, pgs 611 e 612)


"Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios. Quer a conheçamos, quer não, conserva pleno valor para a alma aquela sentença de um sábio espirituoso que reza: enquanto existimos, não existe a morte, e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte, nenhuma relação real, e ela é uma coisa que para nós absolutamente não tem interesse e que, quando muito, afeta ao mundo e à natureza; motivo por que todas as criaturas a contemplam com grande calma, com indiferença, com certa ingenuidade egoísta, e sem assumir responsabilidades."(Pg.708)


"Eu conheço a morte, sou um dos seus velhos empregados. Creia-me, em geral a gente a receia demais. Posso afirmar-lhe que é quase insignificante. Pois aquela trabalheira que às vezes a precede não pode ser considerada como parte dela; é o que há de mais vivo, e pode conduzir à vida e à saúde. Mas ninguém que voltasse da morte seria capaz de lhe contar coisas interessantes a seu respeito, uma vez que ela não se percebe. Saímos das trevas e entramos nas trevas. Entre elas há experiências, mas o começo e o fim, o nascimento e a morte não são coisas que notamos, não têm caráter subjetivo; como processos pertencem inteiramente à esfera do objetivo. Assim é a coisa..." (Pg.715)


"…Hans Castorp demonstrou-lhe que existem olhares cuja clareza inequívoca nada fica devendo às palavras mais nitidamente articuladas. "Miserável!", dizia o olhar com que mediu de alto a baixo o homem de Mannheim; dizia-o, excluindo qualquer interpretação levissimamente ambígua, e Wehsal compreendeu esse olhar, engoliu-o e até o aprovou, meneando a cabeça e exibindo os dentes cariados." (Pg. 739)


"- Mas lhe asseguro que ele pode falar de modo bem coerente, quando se anima - disse Hans Castorp. - Certa vez me falou do dinamismo das drogas e de árvores venenosas da Ásia; contou fatos tão interessantes que quase me causou uma impressão sinistra. O interessante sempre é um pouco sinistro. E tudo aquilo era menos interessante em si, do que em relação com o efeito produzido pela sua personalidade, que tornava as palavras ao mesmo tempo sinistras e interessantes…" (pg. 782)


"O homem é divino, desde que sente. É o sentimento de Deus. Deus o criou para sentir por intermédio dele. O homem é apenas o órgão por meio do qual Deus realiza o seu enlace com a vida despertada e ébria. O homem que fracassasse quanto ao sentimento, aviltaria a Deus, seria a causa da derrota da força viril de Deus, a causa de uma catástrofe cósmica, de um horror inimaginável... - Tornou a beber." Pgs. 807 e 808)


"Mas a volta de defuntos, isto é, a desejabilidade de tal volta nunca deixa de ser coisa problemática e delicada. Em última análise, e falando com franqueza, essa desejabilidade não existe; é uma ilusão; à luz do dia, é tão impossível como a própria coisa, o que se tornaria evidente se a natureza, num caso particular, abolisse esta impossibilidade. O que chamamos "luto" talvez não seja a dor que nos inflige a impossibilidade de ver os nossos mortos voltarem à vida, senão a outra que experimentamos diante do fato de sermos incapazes de desejar tal coisa." (Pg. 904)



"Com efeito, qualquer pessoa que soubesse pensar logicamente seria levada a experiências curiosas e a resultados divertidos com esse dogma do espaço e do tempo infinitos e reais; obteria precisamente o resultado: nada. Perceberia que o tal realismo era genuíno niilismo. Por quê? Pela simples razão de a relação entre qualquer grandeza e o infinito ser zero. No infinito não existia medida, e na eternidade não havia nem duração nem modificação. No espaço infinito onde todas as distâncias seriam matematicamente iguais a zero, não era possível conceber nem sequer dois pontos situados um ao lado do outro, e ainda menos dois corpos, para não falar de um movimento. Ele, Naphta, fazia questão de constatar isso, para contrariar o atrevimento com que a ciência materialista apresentava os disparates astronômicos e o seu palavrório frívolo acerca do universo como se fossem conhecimentos absolutos. Coitada da humanidade que, em face de uma exposição ostensiva de cifras vazias, deixou que lhe impingissem o sentimento da sua própria nulidade e admitiu que a privassem do sentido patético da sua importância! Talvez fosse ainda tolerável que a razão e o conhecimento humanos se mantivessem dentro da esfera terrena e nesse terreno tratassem como reais as suas experiências na exploração do objetivo e do subjetivo. Mas quando ultrapassassem esses limites e estendessem a mão para o enigma eterno, dedicando-se à chamada cosmologia ou cosmogonia, levariam a brincadeira um pouco longe, e a sua presunção chegaria ao cúmulo do grotesco. Que absurdo blasfemo querer calcular a "distância" entre um astro e a Terra em trilhões de quilômetros ou também em anos-luz e imaginar que por meio dessas mentiras matemáticas se pudesse abrir ao espírito humano a vista para o infinito e o terreno, quando, em realidade, o infinito nada, absolutamente nada tinha que ver com grandezas, e a eternidade nada com a duração e com os lapsos de tempo. Pelo contrário, o infinito e a eternidade, longe de serem conceitos da ciência natural, representavam justamente a abolição daquilo que chamamos natureza." (Pg. 915-916)


"Atiram-se de bruços, para esquivar-se aos projéteis que se aproximam ululando. Novamente se levantam, avançam às pressas, encorajando-se com estridentes brados juvenis, cada vez que escapam ilesos. São alvejados, caem, agitando os braços, com um tiro na testa, no coração, nas entranhas. Jazem, com as faces na lama, imóveis já. Jazem, com as cabeças enterradas no barro, as costas despegadas da mochila, e agarram o ar com ambas as mãos. Mas o bosque envia outros que se atiram, que saltam, gritam ou avançam mudos, a passo trôpego, por entre os feridos. 

Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baioneta, com as capas e as botas enlameadas!" (Pg. 955)