Wednesday, December 17, 2014

Véspera (dezembros)





Dezembro de 2013, São Luís (MA) - dezembro de 2014, Salvador (BA)

Suporto o hálito frio
Do meu coração vazio
Fim de ano congelado
Enganoso em seu estio

Do telhado cor de carne
Cai a tarde endurecida
O dezembro não abrasa,
Exala a brisa encardida

Olho preso na varanda,
O teu nome, ouço à sala
Oco, triste, é só o vento
Que no casarão estala

Vento, vento, varre Egito,
Varre Carmo e São Francisco,
Vento, beija o azulejo,
Vento, gela a Beira-Mar

E quando o vento aquieta
O mormaço ameaça
No silêncio, no remorso,
O sobrado me abraça

Que má vontade do mundo,
Ah, que gripe demorada,
Esse sol que não aquece
Essa véspera encruada

Monday, December 01, 2014

Dia de Muertos no México: impressões de viagem






















Veja mais fotos no álbum do flickr



- Nosso povo é estranho, não? Essa mania de brincar com a morte... – perguntou o taxista que me levou ao Aeroporto da Cidade do México (Distrito Federal). Depois de duas semanas no país, onde fui conferir a festa de Dia de Muertos, eu voltava para o Brasil. 

- Pelo contrário, vocês é que são saudáveis. Vocês não têm receio de expor os seus sentimentos nem a sua fé, é tudo muito claro, tudo muito público. E também não vivem tremendo de medo de cemitério. Enquanto isso, o resto do mundo finge que é insensível e está cada vez mais infeliz.

O homem ficou entusiasmado e sorriu, enquanto eu lembrava a visita que fiz, na tarde de 1º de novembro, ao cemitério de Pátzcuaro, no estado de Michoacan, a Noroeste do Distrito Federal. 

Como acontece no Brasil nesta data, a proximidade do Dia de Finados atrai desempregados e subempregados que recebem gorjetas para limpar as sepulturas, lavar lápides, pintar grades ou ajudar na ornamentação. Lá, porém, a afluência desses prestadores de serviço, é bem maior, com um contingente também maior de crianças e adolescentes que se desdobram em trabalhos penosos para obter alguns poucos pesos. E as famílias, mesmo pobres, investem uma quantia significativa em adornos, principalmente em coroas de flores de plástico, para honrar seus finados.

Surpreendente também a forma como meninos e meninas são inseridos nas festas desse período. Quem caminha às noites pelas ruas muito facilmente é abordado pelos pequenos que chegam com um vaso de plástico no formato de caveira de abóbora, solicitando “Da mi calaveritas” (“Dá minhas caveirinhas”), ou seja, moedas, que são transformadas em guloseimas. Em todos os eventos nos cemitério, a meninada também está presente, inclusive aqueles na faixa de três a sete anos de idade, correndo e inventando brincadeiras com o material que encontra. 

A festa dos mortos começa em alguns lugares em 28 de outubro, data dedicada a todos que morreram por acidente. No dia 30, são homenageadas as almas dos meninos que faleceram sem ser batizadas e a noite de 31 de outubro para 1 de novembro é reservada para a homenagem às almas dos ninõs muertos. De qualquer forma, no fim deste mês, as famílias preparam em suas residências as ofrendas, imitações de tumbas, cobertas de flores (principalmente a cempoaxochtil - que se pronuncia sempazotchil), uma abundância de frutas, velas e recipientes com água (para saciar a sede que o morto tem depois de sua larga viagem vindo do além)  e o tradicional pan de muerto (pão de morto, que faz alusão ao corpo de cristo e pode ter diversos formatos, como imitação do corpo de uma pessoa ou círculos com cruz traçada ao meio). 

É comum ainda se incluir a fotografia dos falecidos a quem se deseja homenagear. Também podem ser depositadas nas ofrendas tortilhas feitas de milho, muito apreciadas pelos mexicanos, e doces de chocolate ou açúcar no formato de caveiras, conhecidos como calacas. Nada impede que haja oferta de cigarros e bebidas, para os mortos que tinham essa predileção. Pode ser disposto ainda um caminho de pétalas, traçado até a porta, para guiar o espírito do falecido em sua visita à sua antiga moradia.


Nos cemitérios (no México, são chamados de Panteons) são levantados arranjos semelhantes, embora a quantidade de flores e de velas (geralmente velas embutidas em copos de vidro ou grandes círios) predomine sobre a de alimentos. A comida é depositada em cestos ou em tecidos estendidos sobre as sepulturas, tanto nas carneiras de pedra quanto nas de vala comum.  Neste espaço público, as famílias comparecerão com esteiras e bancos para ficarem horas em estado meditativo ou conversando sobre o cotidiano, como se o falecido estivesse escutando aquelas novidades. Podem inclusive passar uma ou duas noites ali, com colchões e mantas que permitam suportar o intenso frio da estação (em 2014, na casa dos 12 graus centígrados), bem como montando fogueiras para se aquecerem. 

É um momento de verdadeira reunião familiar, e os alimentos (conhecidos como “mortitos”) estão à disposição tanto do muerto, quanto dos circunstantes. No caso de sobrarem, serão repartidos nos dias seguintes com os vizinhos e parentes. Já as velas que não queimarem totalmente no cemitério serão levadas paras serem consumidas nos altares e ofrendas domésticos. Interessante notar que nestes eventos também estão presentes mães recentes com suas crianças recém-nascidas, muito diferentemente do que ocorre no Brasil, onde estas duas categorias de pessoas são alijadas dos campos santos. No México, cães também são admitidos nestas datas, com integrantes da família.

Vi num cemitério em Tzintzuntzan, povoado de Pátzcuaro que é conhecido por seu sítio arqueológico pré-colombiano, uma imagem que pareceria no mínimo insólita para os brasileiros. No dia 2 de novembro, depois de realizada a missa campal, que ocorreu por volta do meio-dia, muitas famílias ainda permaneceram no local, inclusive algumas que cuidavam de sepulturas de seus parentes junto a um túmulo recém-aberto. Os operários ainda terminavam a alvenaria erguida dentro do chão escavado e, ao lado, as pessoas comiam e uma jovem mãe fornecia mamadeira para um bebê num carrinho. Em instantes, um pesado caixão chegou carregado por alguns homens e, atrás dele, uma família de cor muito alva, enlutada, que tentava conter o choro. 

Na hora da despedida, uma mulher aparentando 60 anos de idade e outra mais nova colaram seu rosto à tampa de vidro do esquife. Um homem bastante idoso e dois rapazes, todos com aparência esgotada, tentavam ampará-las. Ainda integrando o grupo, três músicos uniformizados e um cantor em trajes comuns executavam músicas românticas do cancioneiro mexicano, como Amor Eterno. Não houve celebração de exéquias, e tão logo o caixão baixou à sepultura, a senhora que antes se despedia do ente querido convidou a todos para irem à sua casa comerem uns “taquitos” (espécie de biscoitos feitos de milho).

Naquele mesmo dia, os músicos, tanto do grupo mencionado quanto de outros, e mesmo um violonista solitário, estiveram em outras sepulturas cantando a serviço de quem lhes oferecesse gorjetas. 


FESTA PÚBLICA - Também aparecem ofrendas, à guisa de enaltecer a festa, em espaços públicos como programas de TV, prédios oficiais, mercados populares e supermercados, halls dos hotéis, e mesmo nas escolas infantis. E os nativos passam tranquilamente diante delas, e posam sorridentes para serem fotografados ali, ao lado.

Na Isla Janitzio, destacada em guias internacionais como lugar ímpar de celebração do Dia de Muertos, é enorme a afluência de turistas na noite do dia 1º para o dia 2, ocasionando a intensa comercialização de vários produtos de artesanato, bem como comidas, ao longo de todas as ruas do povoado (em formato de morro, a ilha é toda tomada de casas). 

Além dessa movimentação, que tem seu ponto maior em uma festa de músicas e danças folclóricas no cume do morro, o pequeno cemitério local, incrustado em uma ribanceira, fica pequeno para o número de estrangeiros e outros visitantes que disparam ininterruptamente suas máquinas fotográficas, inclusive na capela cemiterial, onde também está posta uma ofrenda.  Percebe-se uma certa incompatibilidade de alguns nativos com esta presença, no que não deixam de serem gentis, mas tanto em Pátzcuaro, a cidade que dá acesso a Janitzio, quanto na própria ilha, verifica-se a divulgação e o interesse de autoridades, comerciantes e moradores pela participação de gente de fora, devido ao retorno econômico. 

Por outro lado, na meia-noite e em outros momentos de maior comparecimento, é comum o “engarrafamento” de visitantes nos descontínuos corredores entre os túmulos. O problema se torna ainda maior porque grande parte do espaço está tomado pelas ofrendas e por famílias instaladas, inclusive com pessoas já dormindo. Outros fatores que complicam o fluxo humano são a escuridão, o espocar de flashes fotográficos e a parafernália de equipamentos de fotografia e cinevídeo, que muitas vezes necessitam ser afixados em tripés para obter o melhor rendimento, mas que, por isso, travam ainda mais as passagens.  Em Tzintzuntzan o espaço é maior (são, na verdade, dois cemitérios separados por uma autopista) e a presença de estranhos menor, inclusive porque o evento é menos divulgado e menos "industrializado". 

Alguns tradicionalistas já reclamam que, tanto em Pátzcuaro quanto na Cidade do México, já existe alguma contaminação da cultura com traços do halloween, a festa céltica difundida pelos americanos e que faz os jovens procurarem boates nessas mesmas datas, vestidos de personagens de TV e cinema.  De fato, é muito comum ver a disseminação das fantasias entre os adolescentes, bem como a mobilização destes para festas mais urbanas, mesmo no interior.

Em Valladolid, no coração da península de Yucatán (próximo a Cancun e Mérida), onde o costume da Festa de Muertos é restrito a pequenas “ofrendas” domésticas, o padre Gilberto Perez Ceh contou que a igreja incentiva a montagem dos altares residenciais, estabelecendo um concurso entre as famílias, aproveitando também a oportunidade como um momento de catequese. Ainda conforme o sacerdote, é comum haver uma segunda oferta de alimentos oito dias após a festa de finados.

Também em Valladolid, ouvi de um guia maia que descendentes desta tribo preparam uma ceia familiar e reservam um prato para ser enterrado, destinado a quem já se foi. Segundo ele, nestes casos, o alimento pesa por poucas horas na barriga dos comensais.


COSTUMES FUNERÁRIOS – Não se usam pedras pretas no revestimento dos túmulos, o que, segundo um coveiro em Tzintzuntzan, tem a ver com a ideia de que as sepulturas de cor escura não trariam bom agouro aos mortos. Ainda em Tzintzuntzan, no funeral observado, foi colocado um terço de rosário aberto no fundo da cova, uma vela inserida na parede interna da sepultura e, conforme o mesmo coveiro, ali seria depositada também água benta, antes que se baixasse o caixão. Conforme ele, isso é feito em todos os funerais, também como parte do costume local.

Segundo o livro “Novenário de Difuntos” (Ediciones Apóstoles de La Palabra”, México DF, 2014, pp 64-74); era costume antigo, para se preparar um moribundo para a morte, colocar um lençol no chão,desenhar um cruz de cinzas sobre ele e depois deitar o convalescente ali, depois da extrema-unção,  até a sua morte, com os parentes realizando orações em seu benefício. 

Desse costume se derivou outro, o da cruz de cinza ou cal, que é colocada sobre um lugar onde esteve estendido um cadáver antes de ser conduzido ao cemitério. Promove-se uma novena e, ao final, se realiza a cerimônia de levantamento da cruz. Este ritual consiste em cinco partes, em cada qual se apaga uma parte da cruz desenhada (Nesta ordem: 1, cabeça, 2 e 3, braços, 4, coração, e 5, pés). Cada uma destas quatro etapas é precedida de orações (que o “Novenário de Difuntos” publicou), nas quais se solicita, entre outras coisas, que Deus apague todos os pecados que o falecido cometeu.


Cronologia:
Em Pátzcuaro de 31/10/2014 a 4/11/2014
Em Janiztzio: das 17h30 do dia 1º às 00h30 do dia 2/11/2014
Em Tzintzuntzan das 12h00 às 17h15 do dia 2/11/2014




Tuesday, September 23, 2014

Carta ao professor Fábio, de Física

Prezado Fábio,




Bem sabe que eu não sou um acadêmico, nem mesmo um interlocutor muito qualificado para fazer proposições no terreno da ciência. No entanto, recorrendo à intuição (que me diz que a observação muito próxima pode, algumas vezes, prejudicar o foco sobre as coisas), atrevo-me, justamente por olhar de longe, a fazer as seguintes ponderações sobre energia e matéria escuras:
a)      O modelo padrão cosmológico permitiu que algumas correntes considerassem a possibilidade de “dimensões enroladas”, primeiro porque isso permitiria a consecução de uma teoria unificada das quatro forças conhecidas. Além disso, tais “dimensões” permitiriam explicar certa descompensação da gravidade, que parece “escapar” deste universo. Neste mesmo sentido, perduram diversas indagações sobre os buracos negros e sua relação com o big bang (criação-destruição);
b)      Por outro lado, a proposição da energia e da matéria escuras nos sinaliza forças épicas e não-identificadas, também de origem desconhecida, atuando de forma inegável sobre a movimentação dos grandes conjuntos estelares;
c)       Nesse passo, de uma força que some e outras que aparecem, restou-me perguntar: a gravidade perdida e a energia escura não seriam a mesma substância que escapa de algum momento anterior ou futuro? Não seriam as “dimensões enroladas” uma dimensão só, o tempo, que se amolda ao fluxo cósmico, e conduz este fluxo, em performances ainda não calculadas – para além da simples dilatação da relatividade? Esses desdobramentos – perda e permanência - do tempo poderiam explicar os intervalos quânticos ou mesmo ter impacto sobre as teorias da expansão e das cordas?
d)      Já que tem sido usual na crônica cientifica mais popularesca – e eu, como jornalista, acabo almoçando nesse andar térreo – usar sempre uma metáfora ou desenho para explicar conjecturas diversas, proponho uma aqui que mais serve para que eu visualize o absurdo que propus do que para justificá-lo aos seus olhos.  Imaginemos uma bordadeira que, com a ajuda de uma agulha, faz uma linha atravessar o tecido diversas vezes ate obter uma figura qualquer. Suponho, então, que até hoje vivemos na superfície do bordado, vendo aparecerem pontos dia após dia, sem conceber a continuidade entre eles. Bom exemplo poderia ser o elétron, que some e depois aparece numa órbita mais carregada, e não sabemos onde esteve no período, nem mesmo se frequentou um "subsolo" temporal.
e)      Seria o caso, portanto, de se considerar um modelo transcendente – que esta palavra esteja despida de todo misticismo -, não mais levando em conta dimensões mínimas na escala de Plank, mas tomando o conjunto energético universal através dos tempos.

f)       No item “C”, fiz questão de demarcar a possibilidade de uma corrente de força gravitacional vinda do futuro, o que é apenas uma hipótese absurda dentro de uma proposição mais absurda ainda. Mas, já que estamos neste conjecturar, por que não considerarmos que até mesmo as leis de causalidade, do fluxo unidirecional do tempo, podem ser revistas, obtendo-se uma configuração mais plasmática da corrente temporal e seus desdobramentos?  

Agradeço pela paciência,

Franklin

 

A morte líquida

Quando uma pessoa morre, todos os elementos que a compõem permanecem vivos, se recombinando em novos organismos. O que se perde não é a vida, mas a identidade, o nome. Renunciemos a ele. Creio na alma também, mas, por comparação, pode acontecer a ela a mesma coisa, diluir-se no caldeirão da matéria que lhe é assemelhada. 

Tuesday, May 06, 2014

Transumanismo – Por que tão longe da política?



Transumanismo é uma proposição científica que visa a usar as tecnologias (principalmente robótica, neurociência, nanotecnologia, genética e inteligência artificial) para aumentar as capacidades humanas, retardar o envelhecimento, eliminar as doenças e, inclusive, suprimir a morte. O transumanismo, como o próprio nome sugere, é considerado o estágio transitório para o posumanismo, onde homem e máquina, se tudo der certo, estariam perfeitamente fundidos.
*Todos os links mencionados neste resumo são sites mantidos por instituições científicas

Projetos em andamento ou na agenda transumanista:
- Aumento da interface homem-máquina. Comunicação direta cérebro-máquina pelo mapeamento dos impulsos elétricos mentais (projeto já em andamento – ver https://www.humanbrainproject.eu/pt)
- Aperfeiçoamento do corpo e do cérebro com próteses, não só para deficientes físicos (contexto atual de desenvolvimento industrial de próteses)
- Melhoramento genético da reprodução para evitar filhos com problemas ou para ampliar suas capacidades (projeto de mapeamento do genoma humano - http://www.genome.gov/)
- Singularidade tecnológica (a tecnologia ultrapassa a inteligência humana e passa a se desenvolver exponencialmente. A data estimada pelos cientistas para isso é 2045 - ver http://2045.com)
- Interface do homem com a realidade virtual (transferência de ideias do cérebro ou para o cérebro a longas distancias, experimentação de sensações, viagens virtuais ao invés de deslocamentos físicos).
- Presentificação do homem por meio de máquinas (por exemplo, uma sonda enviada a outro planeta pode ser controlada remotamente, como um corpo virtual - avatar - e devolver sensações ao seu usuário, não sendo necessário expor pessoas a longas viagens. O mesmo vale para as guerras. Criação de clones e androides - ver http://2045.com)

Questões conexas:
- Discriminação e segregação social dos não-melhorados
- Direitos humanos – direito de optar ou não de optar pela “melhora”, direito de melhorar ou não a sua descendência
- Empoderamento das máquinas pela Inteligência Artificial (a máquina pode se aperfeiçoar automaticamente e até se autorreproduzir).
- Estirilização, abortos forçados e genocídio devido à eugenia
- Possibilidade de uso da tecnologia para ainda maiores registro, investigação ou espionagem do pensamento individual e social
- Necessidade de controle de natalidade (uma vez que diminuirá a taxa de mortalidade)
- Previdência social (em função do aumento da longevidade)
- Governo único (nova política)
- Novas formas de produção, “turbinação” do capitalismo. Revolução no mercado de trabalho, eliminação de profissões
- Embates filosóficos e teológicos. Oposição/negação da religião (A Igreja Católica é contra o Transumanismo – ver Pontifícia Universidade de Roma:http://www.zenit.org. O Dalai Lama e os mórmons - http://rationalfaiths.com - se manifestaram favoráveis)

Aspectos críticos
- O Transumanismo ocorre em condição desfavorável ao ser humano, em contexto de desequilíbrio ecológico
- Desigualdade brutal no acesso à tecnologia, devido aos desequilíbrios econômicos e políticos. Algumas comunidades também podem recusar a transição por questões culturais. Seriam esmagadas?
- Transição é realizada por corporações capitalistas gigantescas (google, facebook, microssoft e pelo bilionário russo Dmitry Itskov, este último responsável pelo projeto Avatar, ou Iniciativa 2045 – ver http://2045.com) e por instituições militares (DARPA – The Pentagon’s Research Arm e governo da China)
- Falta de transparência. O processo ocorre à margem das instituições políticas e sociais atuais (governo, religião etc), que são consideradas defasadas no contexto transumanista e, por isso mesmo, deslocadas do debate
- Histórico de tecnocracia que é marcado pela junção entre alienação política dos cientistas somada aos interesses do capital, com prejuízo ao bem-estar social

Participação
- A transição é inevitável, segundo  Diego Caleiro, diretor do Instituto Ética, Racionalidade e Futuro da Humanidade (www.ierfh.org). Para este filósofo especializado em biologia e psicologia, a singularidade tecnológica é o maior desafio da história da humanidade. Ainda de acordo com Caleiro, a única solução é tornar a Inteligência Artificial amigável (o homem terá sempre acesso ao código-fonte das máquinas, sendo senhor do desenvolvimento delas, ou seja, a máquina não poderá “esconder o que pensa” – expressão nossa). 
- O Transumanismo deve ser vinculado a valores humanos, à distributividade e à participação política. Caso isso não ocorra, será apenas mais uma ferramenta do capitalismo ou outro sistema econômico para aumentar o poderio econômico e policial de uma minoria. Se descontrolado, num contexto ambiental favorável à extinção da raça humana, pode significar um mundo de máquinas, que, afinal de contas, só precisam de energia para habitarem o planeta.
- Notícia da AFP (https://br.noticias.yahoo.com/transumanismo-melhorar-homem-substitu%C3%AD-lo-ciborgues-200659875.html): “O cientista americano Ray Kurzweil, apóstolo do transumanismo, prevê que, a partir de 2029, a inteligência artificial vai igualar a do homem. Para Kurzweil, autor do livro "When Humans Transcend Biology ou The Age of Spiritual Machines", entre outros, a partir de 2045, o homem deverá estar ligado a uma inteligência artificial, o que permitirá a ele aumentar sua capacidade intelectual um bilhão de vezes, um destino de ciborgue.
No extremo, Hugo de Garis, especialista australiano em inteligência artificial, promete um futuro mais negro. Antes do final do século, uma "guerra exterminadora" deverá opor os "seres humanos" às máquinas inteligentes e aos "grupos que querem construir esses deuses", alertou, durante uma conferência realizada domingo passado em Paris pela Associação francesa transumanista (AFT Technoprog)”.


- Recomenda-se a palestra de Diego Caleiro (Diego Caleiro - Inteligência Artificial e Transhumanismo - IME- USP) no link seguinte: 
https://www.youtube.com/watch?v=LV-PG2Cw0V4



Semana Santa em Araci – Momentos de perfeição estética

A tradição da Semana Santa em Araci (BA) inclui duas cerimônias que se destacam pelos seus significados, beleza e emoção ímpares, mesmo numa região, o semi-árido baiano, onde a devoção é manifestada de forma marcante. A primeira destas cerimônias, a Procissão do Fogaréu, pode ser reconhecida à distância, pelas fotografias que registram centenas de fiéis iluminando a noite da quinta-feira portando velas, subindo e descendo o morro do Bonfim. O segundo evento exige o comparecimento, certa dose de dedicação e mesmo de sacrifício. É o conjunto definido pela procissão e pela vigília da Paixão, ambas na sexta-feira, iniciando por volta das 18 horas e prosseguindo, num crescente de sentimento, até a meia-noite.
 
Da quinta-feira, pouco se necessita falar, já que as fotografias são reveladoras e estão hoje em vários sítios na internet e nas redes sociais. Resta anotar que a própria Igreja tem providenciado nos últimos anos copos de papel cada vez mais decorados que são entregues aos fiéis para protegerem as velas dos ventos. É um produto artesanal, vendido à porta do templo momentos antes da procissão do fogaréu por um preço simbólico.
 
Quanto à Paixão, é preciso integrar-se à procissão que percorre as ruas do centro para entender o coro comovido de homens e mulheres dos mais distantes cantos do município,  inclusive da zona rural, idosos, jovens e crianças que perpetuam uma solenidade antiquíssima, reiterando as canções que marcaram a história da cidade. De fato, é indispensável estar cercado pelas gentes, principalmente nos momentos em que o cortejo dobra as esquinas, para ver subir o lamento até o tom uníssono. Os “puxadores” das rezas recitam as estrofes, mas é na hora do refrão que se percebe o sentimento coletivo da massa sempre contrita, em perfeita sintonia, revelando seus valores e sua cultura.
 
É como um momento de transe geral, que só quem viveu pode descrevê-lo, e que dura muito pouco, tanto quanto a brevidade do percurso. Ao mesmo tempo profundo e envolvente, a cerimônia toma cada participante de tal forma que é inevitável se integrar. Seria como estar numa onda e não singrá-la, ou ver as festas mais modernas e elaboradas, cada vez mais cheias de recursos audiovisuais, sem se contagiar. Soma-se a tudo isso a marcante interpretação de Verônica – sim, o termo é interpretação, já que é realizada com toda a dignidade do teatro – feita por uma moça do povo que pronuncia a cada esquina: “Ouvi todos que passais a caminho do labor, atendei vede se há dor igual à minha dor”. Não há outro momento de tão completa significação artística na cidade.
 
Encerrada a procissão, as imagens são postas dentro da igreja para serem veneradas e aí já começa a vigília, com os fiéis beijando o manto de Nossa Senhora das Dores e o Cristo Morto. Paralelamente, o Grupo de Canto da igreja continua os hinos de lamento, mas de forma ainda mais encorpada, aproveitando a acústica do templo. Isso vai prosseguir por horas, e lá estará de novo a população respondendo com o refrão, até o cansaço desarmar a todos. Quanto mais a hora avança, maior o desgaste, mas a resistência é surpreendente. Já pela metade da cerimônia, as vozes esgotadas se aproximam umas das outras, o langor é comovente, as pessoas fecham os olhos com sono e já não precisam lembrar-se do que ocorre lá fora. Estão realizando os mesmos gestos dos antepassados, numa ação que é sim dolorosa, mas sublime, e que, por isso mesmo, lhes resgata de outras dores do cotidiano. Para completar, as luzes da igreja são diminuídas e começa o Ofício da Paixão, que segue entoado, com o mesmo sentimento de melancolia, por mais uma hora até o fim da celebração.
 
 
O registro de todas estas coisas, além de buscar descrever o mínimo da tradição, pretende servir de introdução para um debate que a cidade de Araci precisa urgentemente realizar. Listo abaixo algumas das críticas que ouvi com relação à manifestação cultural da Semana Santa e o ponto de vista de alguém que participa dela há décadas, seja fotografando, escrevendo e também como devoto.
 
- A tradição está esvaziada e desorganizada – O público da Semana Santa tem se mantido basicamente o mesmo. Não cresceu, comparada ao aumento da população, mas não perdeu a participação, salvo em anos de notável dificuldade para acesso das comunidades mais pobres, como foi a seca de 2013. Quanto à organização, é preciso lembrar que a população simples tem um jeito despojado de agir. Algumas correntes dentro da igreja sempre tentaram e tentam uma uniformização, com razoável sucesso, mas a naturalidade dos homens e mulheres locais muitas vezes recusa a formação de filas nos cortejos, o que não chega a comprometer os eventos. Sempre foi assim, a despeito de quem pretenda um espetáculo militarmente “organizado”, para turista ver. Por outro lado, o poder público, quando tenta interferir com guardas, carros de controle e outras regras, mais atropela do que ajuda.
 
- A Semana Santa exalta a dor e é deprimente – A dor é uma expressão humana tão válida quanto qualquer outra, e inspirou belíssimas obras de arte em várias sociedades. Somente para tomar alguns exemplos, é responsável pela ópera, pelo tango, pela tragédia grega e diversas outras formas artísticas, até mesmo o samba (“Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”). Por outro lado, se nos acovardamos perante a dor, podemos recair no outro extremo, o oba-oba e a diluição, que resulta em produções fáceis, baratas e varejeiras que abundam na mediocridade dos meios de comunicação social.
 
- A Semana Santa é uma manifestação exclusivamente católica, dispensável para o município – Araci foi totalmente desfigurada nos últimos anos com a destruição de todas as casas mais antigas, e restam somente poucas coisas conservadas desde os primeiros anos da cidade como a capela do Bonfim, o cemitério velho e a tradição da Semana Santa. Somente quem visualiza estes elementos pode entender a história da cidade. Se são todos eles católicos, isso se deve ao perfil – passado e presente - da comunidade. É também este perfil que explica porque esses monumentos materiais e imateriais ainda estão de pé. Varrer estes símbolos seria como destruir as estátuas mitológicas da Grécia, as pirâmides do Egito e grande parte da arte do mundo somente porque tem origem religiosa. Em tempo: destaque-se ainda como símbolos de resistência cultural araciense o reisado, as canções de lavoura, banda de pífanos e outras manifestações festivas.
 
 - A religião é inútil, significa atraso cultural – Nada assegura que pessoas não-religiosas sejam mais cultas, menos preconceituosas, mais solidárias ou que estejam mais preparadas para os desafios do futuro. Pelo contrário, a religião pode ser um poderoso instrumento de organização social e a Semana Santa é o coroamento de campanhas da Fraternidade que, nos últimos anos, levou a debate temas como a Ecologia (“A Terra Pede Socorro”), o Tráfico de Pessoas etc. Além do mais, diante de um cenário em que a tecnologia dispersa as pessoas e o próprio sentimento humano, além das inseguranças do transumanismo, é cada vez mais relevante ter esta referência comunitária para enfrentar o embrutecimento. Além do mais, o sentimento religioso, por si só não compromete o senso crítico, que se pronuncia dentro e fora das congregações.
 
 
Por último, há outros fatores que precisam ser considerados: esta tradição funciona independente de grandes aparatos, como um sistema perfeito. Os participantes já a têm integrado no seu calendário anual, sabem de cor o que devem fazer e não precisam desembolsar além das suas capacidades – ao contrário, a adesão é gratuita. Ressalte-se também que novas gerações vão aderindo e assumindo posições-chaves na realização dos eventos.  Deve-se ainda reiterar que as manifestações dispensam influências exteriores, das cidades vizinhas, sendo que cada município da região encaminha sua própria forma de manifestação no período. Assim como Araci, somente Araci. E os cantantes da igreja – Grupo de Canto e população –, com a sua simplicidade, protagonizam momentos de encantadora excelência estética no sertão da Bahia.
 
 

Wednesday, March 26, 2014

Maranhão

Na verdade, sou do Maranhão. Todos os meus amigos são do Maranhão, todos os meus parentes são do Maranhão. Aqui eu nasci, cresci, me criei e vivo até hoje. E se um dia o Maranhão permitir que eu morra, é aqui que eu quero ficar encantado para sempre

Alcântara

Alcântara é uma cidade coberta de nuvens e penumbras, mesmo em dias de sol. É feita de um silêncio ruim para quem tem medo, porque nada muda, meses a fio. O chão é calçado com pedras de ferro, o céu é de chumbo, o mar é envenenado pelo mangue e respiramos o mesmo ar que os mortos ainda respiram, eles escondidos por trás das ruínas dos casarões. E os casarões enormes, onde moram famílias pobres, formam um cemitério, a capital do silêncio.

O silêncio permanece, dia após dia. De repente, fica tudo em suspenso e sobrevém o vazio. Quando menos se espera, surge de novo o silêncio e o tempo então para. O futuro tenta aparecer, vindo no vento, mas o silêncio vigia nas pedras altas das ruínas e logo avança como um gavião que rasga-lhe as asas, sangrando o futuro. A noite é sempre pesada, com um calor esmagador, e os dias, embora lindos dias de bananeiras e mangueiras e quintais exuberantes, são imutáveis como pinturas tropicais. Tudo segredo, tudo mistério, tudo mentira. 

A ira do Rei Saul



Certa vez, encontrei num livro de religião um bicho cabeludo, mordido como uma fera, lá ele, endemoniado. Parei naquela página atraído pela figura, ainda me lembro do rosto, o desenho do Rei Saul enfurecido. Até hoje me acompanham aqueles grandes olhos cheios de ira do rei, ele enlouquecido de inveja, as enormes bolas saltando da face.
O profeta Samuel condenara o rei porque ele, nas batalhas que vencia, não degolava as mulheres e as crianças das tribos derrotadas. O deus de Israel estava magoado. Saul tinha que destruir o inimigo sem piedade, essa era a ordem. A sua vacilação, ou a sua ambição em pilhar bens materiais, que deixara vivos os gentios, era pecado imperdoável. Saul não mais servia. Um jovem aparecia, já ungido, para tomar o lugar do decadente rei. “Saul matou mil, mas Davi matou dez mil”, cantava o povo na rua, enaltecendo a vitória contra o gigante Golias.

Mas gigante mesmo era cada olho do Rei Saul. E quando um seu olho crescia, o outro olho o acompanhava, dois gigantes concorrendo, dois espelhos para as crianças entenderem o que era ira.