Wednesday, March 26, 2014
Maranhão
Na verdade, sou
do Maranhão. Todos os meus amigos são do Maranhão, todos os meus parentes são do Maranhão. Aqui
eu nasci, cresci, me criei e vivo até hoje. E se um dia o Maranhão permitir que
eu morra, é aqui que eu quero ficar encantado para sempre
Alcântara
Alcântara é uma
cidade coberta de nuvens e penumbras, mesmo em dias de sol. É feita de um
silêncio ruim para quem tem medo, porque nada muda, meses a fio. O chão é
calçado com pedras de ferro, o céu é de chumbo, o mar é envenenado pelo mangue
e respiramos o mesmo ar que os mortos ainda respiram, eles escondidos por trás
das ruínas dos casarões. E os casarões enormes, onde moram famílias pobres,
formam um cemitério, a capital do silêncio.
O silêncio
permanece, dia após dia. De repente, fica tudo em suspenso e sobrevém o vazio.
Quando menos se espera, surge de novo o silêncio e o tempo então para. O futuro
tenta aparecer, vindo no vento, mas o silêncio vigia nas pedras altas das
ruínas e logo avança como um gavião que rasga-lhe as asas, sangrando o futuro. A
noite é sempre pesada, com um calor esmagador, e os dias, embora lindos dias de
bananeiras e mangueiras e quintais exuberantes, são imutáveis como pinturas
tropicais. Tudo segredo, tudo mistério, tudo mentira.
A ira do Rei Saul
Certa vez, encontrei num livro de religião um bicho
cabeludo, mordido como uma fera, lá ele, endemoniado. Parei naquela página
atraído pela figura, ainda me lembro do rosto, o desenho do Rei Saul
enfurecido. Até hoje me acompanham aqueles grandes olhos cheios de ira do rei,
ele enlouquecido de inveja, as enormes bolas saltando da face.
O profeta Samuel condenara o rei porque ele, nas
batalhas que vencia, não degolava as mulheres e as crianças das tribos
derrotadas. O deus de Israel estava magoado. Saul tinha que destruir o inimigo
sem piedade, essa era a ordem. A sua vacilação, ou a sua ambição em pilhar bens
materiais, que deixara vivos os gentios, era pecado imperdoável. Saul não mais
servia. Um jovem aparecia, já ungido, para tomar o lugar do decadente rei.
“Saul matou mil, mas Davi matou dez mil”, cantava o povo na rua, enaltecendo a
vitória contra o gigante Golias.
Mas gigante mesmo era cada olho do Rei Saul. E quando um
seu olho crescia, o outro olho o acompanhava, dois gigantes concorrendo, dois
espelhos para as crianças entenderem o que era ira.
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