Monday, July 29, 2024

Devo, não nego

(Publicado no Jornal A Tarde)


Telefona o afilhado do interior, jovem de 27 anos, frentista: “Padrinho, preciso de R$ 3 mil para uma questão urgente”.

Ora, R$ 3 mil, no sertão, muitas vezes é o preço de um homem. Os golpistas telefônicos, quando ligam para idosas e dizem que capturaram um filho delas que mora longe, exigem depósito rápido desse valor na sua conta bancária oficial. Em outros casos, esses mesmos bandidos fingem ser aquele primo sumido, de raras e antigas visitas, que está metido em apuros em lugar ermo, necessitando de um socorro rápido em forma de PIX. Também custa R$ 3 mil. 

Diversas demandas, um complemento num tratamento médico que deveria ser totalmente público, uma propina para se garantir algum serviço lícito ou ilícito, um trabalho espiritual para se livrar de vícios ou obter amarração amorosa, ou mesmo um acordo informal com o desafeto que esteja ameaçando um escândalo, processo ou violência, orçam nesta cifra. O que o dinheiro pode comprar, compra com múltiplos de três.

E por que se convencionou este valor? Porque é um dinheiro que qualquer um, ou quase qualquer um, alcança em tempo relativamente curto. Todo mundo tem uma TV em casa, às vezes o único móvel, e um botijão de gás, objetos de fácil venda. No quintal, bicicleta ou moto usadas, e algum material de construção que espera oportunidade de obra. Basta liquidar esses cacarecos e se obtém uma semente. A um cunhado se pede outro pedaço emprestado, para os casos de vida ou morte. Outro montante vem da avó aposentada, que, quando não tem saldo, bate na porta da financeira. Puxa de um primo, abraça-se um amigo, aperta-se um vereador conhecido e os R$ 3 mil se materializam. Também algum padrinho colabora.

O certo é que a regra de R$ 3 mil também se esgota quando o assunto toma uma configuração mais complexa, mais desesperadora, a exemplo do que vem ocorrendo nas novas interações sociais das pequenas cidades, marcadas cada vez mais por violências e pequenas infrações legais. Os jovens se enrolam, se engravidam, se descaminham, e suas mães humildes e desconsoladas procuram os advogados, pedindo que realizem o milagre do habeas-corpus. É algo que estes profissionais precisam concretizar quase todos os dias como prova de seus poderes místicos. 

As famílias não entendem como funciona o habeas-corpus mas acreditam que o valor cobrado, mais alto que R$ 3 mil, é como uma multa administrativa, uma fiança que depositam para obter uma segunda chance de recomeço para o filho (“Se errar de novo, te deixo preso”). A medida judicial, longe de ser compreendida, soa como uma mágica no ritualístico ambiente jurídico. O pagamento ao advogado, uma oblação, um ofertório, uma oferenda que se dá pela graça da liberdade alcançada.

O meu afilhado não se envolveu em nenhuma peripécia dessas, afinal, e não me pede dinheiro, só conselhos. O que ele fez foi conhecer moça pela internet, moça de cidade distante, e ter iniciado conversa saliente com ela. O rapaz me contou que chegou a enviar foto sua de cueca, ou algo mais ousado, tudo via rede. Poucos dias depois, o pai da garota entrou em contato pelo mesmo canal e se disse chocado ao saber daquela paquera, que a jovem era menor de idade, e que estava providenciando, num longínquo Paraná, a prisão do moço frentista na Bahia. E a condição para haver acordo era um depósito de R$ 3 mil.

O afilhado me envia as imagens que recebeu na conversa com o tal pai. A foto de uma “sala destruída” por uma suposta briga de pai e filha parece armação. Outra, da fachada de uma delegacia de polícia paranaense, uma balela. Mais outra, da mesa de um delegado com distintivo e revólver, até impressiona.

Recomendo resistir sem responder e logo as ameaças cessam. As bravatas caem no vazio, logo desaparecem o dragão e a moça, e o rapaz finalmente bloqueia o contato e volta à sua vidinha.

No interior há isso também: é preciso secar e cicatrizar o passado, ou o dia de hoje se torna insuportável, com seu novo sol e seu novo talho. E cada centavo devido é pago religiosamente. A Deus ou ao Diabo que o carregue.


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