Monday, July 29, 2024

Noites caninas

(Publicado no jornal A Tarde em dezembro de 2023)


Encontrei uns amigos no Pelourinho num fim de tarde e decidimos tomar uma cerveja num restaurante por lá mesmo. Sentamos em uma mesa na calçada e desfrutamos de um show inédito: um operário a serviço da casa, usando uma esmerilhadeira, serrava ferros próximo aos clientes. Uma exibição de música moderna, com certeza, pois se fosse obra comum aconteceria em horário sem público. Para incrementar o espetáculo, logo começou uma apresentação de voz e violão na varanda improvisada, com as caixas de som em altíssimo volume. E a inovação seguiu, com a serra dos ferros e o violão soando simultaneamente, o cantor e o operário saudando-se nos intervalos.

Mas a culpa foi minha. Eu já sabia da fama do serviço no local, só estava com medo de cansar os amigos na busca de alguma alternativa. Além do mais, o tal restaurante tinha uma bela fachada, e havia  uma garçonete alta, bela, e sorridente. Claro que ela estaria melhor como convidada à mesa, porque não nos valia no atendimento. Dava as costas para os clientes e conversava com o homem do esmeril, ou com o músico, ou se perdia no interior do bar em animadas conversas com colegas. Típica situação em que a gente se sente bem em casa, na casa dos outros.

Noite recente, fui a uma palestra e, como o motivo era só encontrar algumas amigas, largamos o evento e ficamos no pátio do teatro. Apareceu uma mulher de seus 70 anos e me pediu que a fotografasse com seu celular, perto de uma estátua do jardim. Assim que me deslocou da turma, a dona falou-me dos seus dois filhos e quatro netos, suas muitas viagens, inclusive para Paris e Moscou, um acidente recente, a internação por cinco meses, a moradia na Barra e o medo de envelhecer ao lado de um marido idoso e sedentário. Vez em quando repetia ser esposa de um delegado aposentado, daí que só lhe dei conselhos amenos.

Noutra noite, ainda, na porta de um bar no 2 de Julho, o garçom demorava a pesquisar o preço de uma cerveja comum na casa, mas eu esperava. Aproximou-se então um conhecido que faz biscates no bairro, querendo vender plantas que ganhara em algum serviço. Recusei as plantas, mas dei alguma ajuda para o homem sempre empenhado, e lá se foi ele com uma matilha de cães enormes que sempre arrasta. Ora, há por aqui mais de um sujeito pobre que alimenta vários cães e os mantém saudáveis, e os cachorros amam esses donos.

Logo estourou uma barulheira: os cinco cães que seguiam o homem tentavam massacrar um gato velho espremido entre presas e latidos. Uma Ucrânia animal. Finalmente, uma cliente do bar corre para acudir, eu chego gritando, o dono da matilha também se intromete e o felino escala um muro em ruínas. Os vizinhos estão em choque com tanto alarido. O biscateiro teve a perna dilacerada por algum dos bichos e conseguiu no bar uma cachaça para “queimar” os ferimentos. A dona do boteco não perde tempo, lava o sangue derramado na calçada. O homem machucado usa o dinheiro que lhe dei para comprar uma lata de cerveja, ninguém há de julgá-lo.

No meio da noite, a garçonete, os velhos, cães e gatos, terão seu repouso. Só eu não durmo nem velo, como em oração antiga, no transe do mundo aceso.


No comments: