Tuesday, January 22, 2008

A morte líquida


Eu fiz o ritual e dormi dentro do terreiro, porque o pai de santo achava que não seria bom que eu voltasse para casa no mesmo dia. Lembro que, quando fomos despachar algumas comidas no mato, dois homens me levaram num carro e disseram que deveríamos nos afastar sem olhar para trás, para não vermos as entidades se apropriando da oferta. O ritual, com os filhos de santo, foi feito só para mim, para as entidades que se relacionavam com os mortos.

Dormi serenamente naquela noite, embora num colchão muito fino, no chão de um quarto fechado. Acordei cedo e bem disposto no dia seguinte e fui me sentar numa cadeira na sala, onde fiquei observando algumas mulheres adormecidas. Uma delas despertou, porém, e se assombrou. Ela respirou fundo e disse:

- Meu Deus do céu, pensei que fosse uma pessoa morta.

Eu dei risada. Pensava que ela havia falado aquilo porque eu estava totalmente vestido de branco, mas a filha de santo e as outras que foram acordando em seguida me contaram que, durante a noite, tinham visto muito movimento de entidades dentro e fora do quarto onde eu estava. Parece que avistaram vultos também e tiveram dificuldades para dormir, e passaram bastante tempo rezando. Elas eram umas donas muito gentis, e todo o povo daquela casa também, e embora eu tenha ido trabalhar no dia seguinte, mais tarde, de noite, nos reunimos para um segundo ritual que completou o da noite anterior.

Depois, eu comecei a ir ao cemitério do Campo Santo, que era próximo à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA, campus São Lázaro), onde estava cursando a matéria Antropologia da Morte. Naquela época, a Santa Casa de Misericórdia, entidade gestora do cemitério, mantinha um circuito de visitas guiadas e tinha uma loja de souvenires no local, e eu gostava de conversar com a funcionária que tomava conta de tudo.

Certa tarde, vi passar um enterro e descobri que era da mãe do padre Lázaro, capelão do cemitério. Fiquei intrigado, tentando entender como aquele homem estava fazendo o funeral de sua própria mãe. Conheci algumas histórias interessantes, como a de um homem (apenas ouvi falar) que desmanchava caixões usados e aproveitava a madeira para fazer barracos e alugá-los. Havia também uma mulher com seus sessenta anos que me contava que fora criada no Campo Santo, sendo que a sua mãe, muito pobre, dormia dentro do templo. Ela relatou que a comunidade ia ao local para comer frutas das árvores, bem como retirar água de uma fonte ali existente.

Passei a frequentar o Apostolado das Almas, que se reunia para rezar o Ofício das Almas todas as segundas-feiras, no Campo Santo. Me aproximei da comunidade da igreja e ajudei em muitas missas, com muitos padres diferentes, que sempre me trataram bem. Travei contato com os diáconos da Pastoral da Esperança, que fazem encomendações (últimas celebrações antes do sepultamento) e ajudei alguns deles, e também alguns padres em alguns velórios. Em alguns casos, lia um trecho da bíblia que o celebrante pedia e puxava, com ele, cantos mais conhecidos. Depois, em casa, tomava nota das coisas que tinha observado.

Havia velórios mais vazios, geralmente de idosos, e outros mais cheios, como foi o caso de um operário vítima de acidente de trabalho, quando o sindicato fretou um ônibus. Eu não vi, mas os funcionários do cemitério narravam que o ambiente ficava muito tumultuado no sepultamento de policiais e marginais envolvidos na guerra do tráfico que acontecia nos bairros do entorno do Campo Santo. A responsável pelo circuito de visitas guiadas me contava curiosidades sobre os jovens, religiosos de diversas matizes, e outros tipos que andavam por ali, além de falar das diferenças entre eles.

Não voltei depois ao terreiro de candomblé, mas, por meio de uma colega de trabalho, recebi um convite para conhecer o terreiro de Babá Egun, culto aos mortos na praia de Ponta d’Areia, na Ilha de Itaparica. No ritual, entidades (eguns) dançam dentro de roupas vazias, que têm o formato humano, mas que são indevassáveis (espécie de bata com calça, máscara de tecido, luvas e calçados). Para os fiéis, o conjunto é movido somente pela entidade, que incorpora as vestes num quarto à parte e entra na sala do público dançando, até sentar-se em um trono. São várias entidades conduzidas por sacerdotes (ojés) que usam uma vara sagrada. É interditado a pessoas comuns tocar nas roupas em movimento, por risco de morte iminente.

Viajei de noite, assisti metade do ritual e voltei quando o dia ainda raiava, impressionado com a diferença nos procedimentos e na conduta agradável da comunidade. Antes dessa experiência, já tinha lido sobre aquele ritual (Jean Ziegler e Juana Elbéin dos Santos). Na hora de ir embora, o motorista que nos conduziu até a praia onde tomaríamos o barco contou histórias de assombração na vila, com moradores topando à noite com eguns. O mais importante, naquele momento, foi ter achado uma pista para uma ligação entre as entidades e o Mandú, elemento que circula mais abundantemente na cultura, principalmente no carnaval. Dias depois, achei um vídeo que fazia justamente essa relação, falando dos mandus das festas de Cachoeira (BA).