A morte líquida
Eu fiz o ritual e
dormi dentro do terreiro, porque o pai de santo achava que não seria
bom que eu voltasse para casa no mesmo dia. Lembro que, quando fomos
despachar algumas comidas no mato, dois homens me levaram num carro e
disseram que deveríamos nos afastar sem olhar para trás, para não
vermos as entidades se apropriando da oferta. O ritual, com os
filhos de santo, foi feito só para mim, para as entidades que se
relacionavam com os mortos.
Dormi serenamente
naquela noite, embora num colchão muito fino, no chão de um quarto
fechado. Acordei cedo e bem disposto no dia seguinte e fui me sentar
numa cadeira na sala, onde fiquei observando algumas mulheres
adormecidas. Uma delas despertou, porém, e se assombrou. Ela
respirou fundo e disse:
- Meu Deus do céu,
pensei que fosse uma pessoa morta.
Eu dei risada.
Pensava que ela havia falado aquilo porque eu estava totalmente
vestido de branco, mas a filha de santo e as outras que foram
acordando em seguida me contaram que, durante a noite, tinham visto
muito movimento de entidades dentro e fora do quarto onde eu estava.
Parece que avistaram vultos também e tiveram dificuldades para
dormir, e passaram bastante tempo rezando. Elas eram umas donas muito
gentis, e todo o povo daquela casa também, e embora eu tenha ido
trabalhar no dia seguinte, mais tarde, de noite, nos reunimos para um
segundo ritual que completou o da noite anterior.
Depois, eu comecei a
ir ao cemitério do Campo Santo, que era próximo à Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas (UFBA, campus São Lázaro), onde
estava cursando a matéria Antropologia da Morte. Naquela época, a
Santa Casa de Misericórdia, entidade gestora do cemitério, mantinha
um circuito de visitas guiadas e tinha uma loja de souvenires no
local, e eu gostava de conversar com a funcionária que tomava conta
de tudo.
Certa tarde, vi
passar um enterro e descobri que era da mãe do padre Lázaro,
capelão do cemitério. Fiquei intrigado, tentando entender como
aquele homem estava fazendo o funeral de sua própria mãe. Conheci
algumas histórias interessantes, como a de um homem (apenas ouvi
falar) que desmanchava caixões usados e aproveitava a madeira para
fazer barracos e alugá-los. Havia também uma mulher com seus
sessenta anos que me contava que fora criada no Campo Santo, sendo
que a sua mãe, muito pobre, dormia dentro do templo. Ela relatou que
a comunidade ia ao local para comer frutas das árvores, bem como
retirar água de uma fonte ali existente.
Passei a frequentar
o Apostolado das Almas, que se reunia para rezar o Ofício das Almas
todas as segundas-feiras, no Campo Santo. Me aproximei da comunidade
da igreja e ajudei em muitas missas, com muitos padres diferentes,
que sempre me trataram bem. Travei contato com os diáconos da
Pastoral da Esperança, que fazem encomendações (últimas
celebrações antes do sepultamento) e ajudei alguns deles, e também
alguns padres em alguns velórios. Em alguns casos, lia um trecho da
bíblia que o celebrante pedia e puxava, com ele, cantos mais
conhecidos. Depois, em casa, tomava nota das coisas que tinha
observado.
Havia velórios mais
vazios, geralmente de idosos, e outros mais cheios, como foi o caso
de um operário vítima de acidente de trabalho, quando o sindicato
fretou um ônibus. Eu não vi, mas os funcionários do cemitério
narravam que o ambiente ficava muito tumultuado no sepultamento de
policiais e marginais envolvidos na guerra do tráfico que acontecia
nos bairros do entorno do Campo Santo. A responsável pelo circuito
de visitas guiadas me contava curiosidades sobre os jovens,
religiosos de diversas matizes, e outros tipos que andavam por ali,
além de falar das diferenças entre eles.
Não voltei depois
ao terreiro de candomblé, mas, por meio de uma colega de trabalho,
recebi um convite para conhecer o terreiro de Babá Egun, culto aos
mortos na praia de Ponta d’Areia, na Ilha de Itaparica. No ritual,
entidades (eguns) dançam dentro de roupas vazias, que têm o formato
humano, mas que são indevassáveis (espécie de bata com calça,
máscara de tecido, luvas e calçados). Para os fiéis, o conjunto é
movido somente pela entidade, que incorpora as vestes num quarto à
parte e entra na sala do público dançando, até sentar-se em um
trono. São várias entidades conduzidas por sacerdotes (ojés) que
usam uma vara sagrada. É interditado a pessoas comuns tocar nas
roupas em movimento, por risco de morte iminente.
Viajei de noite,
assisti metade do ritual e voltei quando o dia ainda raiava,
impressionado com a diferença nos procedimentos e na conduta
agradável da comunidade. Antes dessa experiência, já tinha lido
sobre aquele ritual (Jean Ziegler e Juana Elbéin dos Santos). Na
hora de ir embora, o motorista que nos conduziu até a praia onde
tomaríamos o barco contou histórias de assombração na vila, com
moradores topando à noite com eguns. O mais importante, naquele
momento, foi ter achado uma pista para uma ligação entre as
entidades e o Mandú, elemento que circula mais abundantemente na
cultura, principalmente no carnaval. Dias depois, achei um vídeo que
fazia justamente essa relação, falando dos mandus das festas de
Cachoeira (BA).