Friday, February 15, 2008

Morte Líquida 02 - Viagens de Gulliver

1) Em seu As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift fala que o personagem principal conheceu muitos lugares além de Liliput, que ficou famosa como a terra dos homens pequeninos. Um desses lugares é Luggnagg, onde, entre muitas maravilhas e bizarrice, podemos destacar a existência dos struldbruggs ou imortais. Nas palavras do próprio Gulliver/Swift:

“Ele então me disse que às vezes, apesar de ser muito raro, acontecia em uma família o fenômeno de uma criança nascer com uma mancha vermelha na testa, diretamente acima da sobrancelha esquerda, o que era marca infalível de que ela nunca morreria. A mancha, como ele a descreveu, tinha mais ou menos as dimensões de uma moeda de três pence de prata, mas ao longo do tempo ficava maior e mudava de cor; depois dos doze anos tornava-se verde e mantinha-se assim até os vinte e cinco anos, quando se adquiria um tom de azul profundo; aos quarenta e cinco ficava negra, do tamanho de um xelim inglês, e a seguir não se alterava mais... Que tal produção não era peculiar a nenhuma família, mas sim um mero efeito do acaso e que os filhos dos struldbruggs eram mortais, como todas as pessoas normais.”

Diante do interlocutor que lhe trouxera aquela informação, o protagonista do livro se revela maravilhado, supondo que o povo de Luggnagg era felizardo: “Felicidade acima de qualquer comparação é poder contar com esses excelentes struldbruggs que, mesmo tendo nascido da calamidade universal da natureza humana, têm suas mentes livres e desompromissadas, sem o peso e a depressão de espírito que a contínua apreensão da morte nos causa” [grifo de Franklin]. Ele ainda diz que, se fosse um struldbruggs, aperfeiçoaria-se nas virtudes e na generosidade, desenvolvendo sua sabedoria e auxiliando as gerações mais novas.

Para seu espanto, no entanto, o interlocutor explica sobre os struldbruggs: “Disse que geralmente agem como mortais até chegarem perto dos trinta anos, depois dos quais, pouco a pouco, vão se tornando melancólicos e abatidos, sentimentos esses que continuam a aumentar até que chegam aos oitenta... Quando alcançam os oitenta anos, o que é considerado o limite extremo da vida neste país, eles sofrem de todas as excentricidades e doenças dos demais velhos e além delas de muitas outras que surgiam com a atemorizante perspectiva de nunca morrer. Não apenas são teimosos, rabugentos, avarentos, taciturnos, presunçosos, tagarelas, como também são incapazes de sentir amizade e encontram-se mortos para todas as afeições naturais, que jamais se prolongam além de seus netos. Inveja e desejos impotentes são as paixões que prevalecem neles”.

“Os principais alvos contra os quais a inveja deles parece basicamente dirigida são os vícios dos mais jovens e as mortes dos mais velhos”, prossegue a narrativa, onde se explica que, dos mais novos são invejadas as possibilidades de prazer, e dos mais idosos, os funerais, a ida para “o porto do descanso, ao qual eles nunca terão esperança de aportar”. E “Já não se lembram de nada, a não ser do que aprenderam e observaram durante a juventude e a meia idade, porém até mesmo essas lembranças são imperfeitas”.

Ainda, e sinalizando para o que acontece com pessoas senis: “Assim que completam o termo de oitenta anos, são considerados mortos pela lei; seus herdeiros imediatamente apoderam-se de seus bens e apenas uma parcela mínima é mantida para seu sustento, então os pobres coitados passam a ser mantidos pelo público. Depois deste período, tornam-se incapazes de ter merecimento para qualquer emprego de confiança ou lucro, não podem comprar terras, arrendar seja lá o que for e não lhe é sequer permitido servir de testemunhas em qualquer caso, seja cível ou criminal, nem mesmo para decisão de marcos e fronteiras”.

Além disso: “Quando conversam, esquecem os nomes das coisas e os nomes das pessoas, até mesmo dos que são seus amigos e parentes mais próximos. Pelo mesmo motivo nunca podem se divertir com leituras, porque sua memória não serve mais para carregá-los do começo ao fim de uma sentença e com este defeito são privados da única diversão que de outra forma seriam capazes”.

Para concluir o capítulo em que trata do assunto, o personagem/narrador Gulliver diz que o rei de Luggnagg perguntou-lhe se queria enviar dois ou três struldbruggs para o seu país “a fim de armar nosso povo contra o medo da morte”. Ele parece ter entendido a lição e finaliza concordando com as leis do reino: “Por outro lado, como a avareza é a resultante necessária de envelhecer, aqueles imortais tornar-se-iam com o tempo proprietários de toda a nação e seriam o poder civil que, por falta de habilidade para ser bem controlado, terminaria com a ruína do bem público”.

Swift, Jonathan - Viagens de Gulliver, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996, PP 237-244.

2) Algumas considerações sobre o texto de Swift:

a) O texto, segundo a crítica, seria uma referência satírica aos membros da academia francesa, que eram chamados “os Imortais”. Na introdução da edição citada, se escreve: “O episódio dos struldbruggs propõe um grande problema que não era tão urgente no tempo de Swift mas que, graças à medicina, está se tornando cada vez mais urgente no nosso tempo: o problema que é prolongar até depois que a capacidade de gozá-la desapareceu” (pg. 12). Na verdade, a empolgação inicial do personagem com a possibilidade de uma vida eterna era motivada pela crença de que estavida seria acompanhada de uma saúde e de um vigor também eternos.

b) Swift, como se vê, aproveita a oportunidade para detratar estruturas onde os velhos estão agarrados ao poder. De qualquer forma, apresenta uma visão também negativa com relação aos detentores da imortalidade e contra a imortalidade em si. Não pude escapar de uma comparação com a imagem negativa que está associada a outro grupo de imortais, os vampiros. Creio que haja também outros casos em que se manifeste esse pejo, talvez porque se considere a imortalidade como anti-natural, e a vida eterna como algo degenerador. Como já aventei que a vida seria o território do ego, penso que esse tipo de raciocínio considera a vida eterna como a extrapolação do ego, acumulando e exorbitando suas vantagens e seus defeitos.

c) Eu já tinha terminado esse post, quando fui obrigado a reeditá-lo para inserir um trecho que localizei no livro Os que partem, os que ficam: “Mas já dizia o vampiro Drácula, no livro que o criou, que sua maior maldição era a impossibilidade de morrer. A imortalidade era o seu maior castigo!... Se admitirmos que o homem foi criado para a perfeita felicidade, mas que esta felicidade perfeita é impossível de ser alcançada enquanto estivermos sob as limitações do espaço-tempo, a morte, por representar o umbral de saída desta limitação, representa a única possibilidade – não a certeza! – de alcançarmos esta condição para o qual fomos criados” (D’Assumpção, Evaldo Alves, Editora vozes, Petrópolis-RJ, 1990, pg. 47-48). Ou seja, a vida eterna mais uma vez é considerada uma aberração, a morte é necessária e natural. Devo esclarecer, antes que se crie alguma confusão, que esse autor, um pouco mais à frente, repudia o suicídio e só admite a morte natural como forma de se chegar à “perfeita felicidade”.

Thursday, February 14, 2008

Morte Líquida 01



Até onde li, as conclusões são as seguintes:

1) Norbert Elias, em A Solidão dos Moribundos, fala que não existe a figura “os mortos”, inclusive a expressão “nossos mortos” remeteria a um conjunto vazio. Os mortos não existem, assegura Elias, a não ser na memória dos vivos, e somente ali. O autor explica que a busca de significado para a existência humana só encontra resposta quando considerado o significado desta vida para outras pessoas (ele condena a idéia do teatro do absurdo, do indivíduo isolado, buscando na solidão uma razão para a sua própria trajetória). Daí explicar o sentido das lápides, que projetam a memória do sujeito para as gerações futuras.

2) Elias fala ainda que a morte e o moribundo causam horror aos vivos primeiro porque avisam da finitude que ameaça a todos e porque uma suposta imortalidade seria a solução para problemas recalcados na primeira infância. Durante a leitura do texto , projetei uma lista de perguntas que estava amadurecendo já havia algum tempo sobre possíveis indagações osbre o morto:


a) Quem é ele? (ele não é mais a pessoa que eu conhecia. É outro, silencioso, que não age mais familiarmente. Quem é, então?)
b) Eu sou ele? (Eu morri? Eu vou morrer?)
c) Isso (a morte) dói nele?
d) A culpa é minha?
e) Se a culpa for minha, ele vai se vingar de mim?
f) O que ele deixa/entrega/quer para/de mim?
g) Ele ainda quer o seu corpo? (ele ainda lhe serve?)
h) O que fazemos com o seu corpo?

3) No tocante à projeção do morto para a as gerações futuras, observo os epitáfios dando conta das “saudades eternas da esposa, filhos, netos...” como uma tentativa de socializar o morto na memória coletiva. A família o trouxe até ali e ele continua integrado a ela, para quem, vivo ou morto, pretenda sabê-lo. O simples fato de se identificar os túmulos diz respeito a conferir uma permanência do falecido na sociedade. Mas, então, o que se pretende é não deixar o morto sozinho. Não para que ele não perca o corpo, ou a alma, mas para que não perca a identidade. O pavor da morte não é, então,a perca desses dois vetores que se supõe na existência religiosa, o corpo e a alma, mas de um elemento mais subjacente e necessário, o ego, o eu, com suas idiossincrasias. O temor da morte é o temor da dissolução máxima, que ultrapassaria corpo, alma ou qualquer outra configuração, é o temor da dissolução do eu.

4) Então contrapõe-se: a Vida é o território do ego, da sua personalidade, da sua mesquinhez, da sua glória, da sua violência e da sua beleza. A morte é a negação do ego. O indivíduo deve ser enterrado pela sua família e passa a integrar as legiões do Céu (crianças como anjos na legião de São Miguel) – diluindo-se nessas identidades coletivas. Pergunta: Como se diferencia nesse caso a morte de indivíduos que tiveram vidas extremamente individualistas? Quanto à herança, se os bens materiais se dividem, o morto é também dividido?