Thursday, December 20, 2018

O golpe do falso editor e algumas meias verdades

Há cerca de um ano caí no golpe de um falso editor enquanto participava de um debate numa feira literária no exterior. O caso não teve maiores consequências, mas acabou virando anedota e deixou algumas lições. Tudo começou quando o funcionário da embaixada brasileira, que seria o mediador das discussões, recebeu a mim e ao Maurício de Almeida, participante da mesma programação, e nos apresentou a um figurão. Segundo o agente da diplomático, aquele homem teria imenso interesse em traduzir nossos livros.

A conversa foi rápida e logo adentramos o auditório para encontrar a sala cheia, o público interessado. Ao tomarmos assento, no entanto, o tal editor, sem ser convidado, meteu-se entre nós na mesa. Permaneceu ali todo o debate sem dizer uma palavra, apareceu nas fotografias e, tudo encerrado, evaporou como cânfora. O próprio agente diplomático nos deu o sinal de que havia sido enganado por aquele fanfarrão, cujo interesse não era dinheiro, apenas desfrutar de falso prestígio. O episódio ganhou alguma repercussão nos bastidores da feira, provocando risos nos envolvidos na produção, à exceção do anfitrião da embaixada, desnecessariamente mortificado.

Conto aqui esse fato para mostrar como o meio literário também respira a atmosfera do show business (There's no business like show business). Geralmente é área de ar rarefeito, mas pode carregar as virações, mormaços, redemoinhos e furacões do mundo da música, do cinema etc. Às vezes tem só uma brisa enganadora, como também acontece em outras artes. Aliás, já faz alguns meses, a imprensa levantou suspeitas sobre um prêmio literário internacional que prometia maravilhas, mas que não contava com patrocinador nem estrutura. De um lado, os jornalistas insistiam que era embuste, página de internet fraudulenta, registros falsos e outros indícios, e, do outro, os supostos charlatães alinhavando justificativas. Certo é que o prêmio não levantou voo e entrou para o folclore como um marco do nonsense.

Outra coisa que sempre me chocou e que ainda me choca aqui, ali, alhures, é perceber que esse mesmo meio literário reproduz todos os vícios da sociedade, da mesma forma que os departamentos universitários, as congregações, as santas casas, os partidos e as igrejas, enfim, os clubes de carteado. Disputas de poder acirradas, misoginia, filiações, estratificações de todos os tipos, sentimentos exacerbados e ilhas, algumas de excelência. A princípio isso me desconcertou porque eu vinha de outro sonho feliz de cidade, mas logo amigos das letras desfizeram o estranhamento revelando o óbvio: que a literatura não é feita no paraíso, nem na ilha flutuante de Gulliver.

Essa descoberta, felizmente, veio acompanhada do reconhecimento de indispensáveis gestos de solidariedade profissional, que garantem em todo lugar a sobrevivência dos artistas e do seu trabalho. Algo que nos faz ver além dos elogios, das bajulações e das incompreensões. Essa compreensão do ambiente nos fortalece também no convívio com nossos próprios estranhamentos e nossas inspirações, muitas vezes indomadas, e com as paranóias e mistificações em geral.

Em meio a essa permanente tempestade, a literatura tenta sobreviver no/ao negócio, mas mantendo sua substância. O escritor é como o Louco do Tarot, alienado a caminho do abismo, enquanto lhe gritam (ele surdo) que não se precipite. E até essa figura bizarra oferece uma imagem positiva para os cartomantes: a de um elemento introspectivo e ao  mesmo tempo arrojado, sempre pronto a encerrar tudo, sempre pronto a recomeçar.

A literatura é salto para quem escreve e susto para quem a acompanha roendo as unhas, apreensivo com cada movimento. E todos, mesmo os fanfarrões, têm os olhos rutilados de desejo por essa aventura.


Friday, July 27, 2018

Entrevista ao jornal A Tarde - Flip 2018

Publico abaixo a íntegra da entrevista que dei ao repórter Eugênio Afonso Araújo Santos, do jornal A Tarde, falando sobre a minha participação na Flip 2018. O jornal divulgou algumas respostas em matéria a respeito do evento no dia 25/5/2018. No entanto, achei a entrevista interessante também em outros pontos. 

Você participa da mesa 17, “De Malassombros”, no domingo. De que trata essa mesa? Como vai ser sua participação?


Vou discutir com a folclorista Thereza Maia, que pesquisou encantados e assombrações de Paraty e do Brasil, sobre a transmissão dessas tradições, oralmente e na literatura. Eu, com meus poucos recursos, escrevi um romance elaborado a partir dos temores e ritos em torno da morte. Continuo pesquisando essa temática porque acho que, na relação com o além, com o sagrado, nós brasileiros mantemos algumas artimanhas e fórmulas da vida cotidiana, da política etc. Quero falar, particularmente, sobre como fazer o leitor se reconhecer nessa “con-tradição”. 


. Você ainda é servidor público ou somente escritor?


Sou servidor público também, trabalhando com jornalismo e edição de textos, o que me permite lidar com duas exigências diversas da narrativa. O jornalismo é muito dinâmico, influenciado pelo dia a dia, inclusive na linguagem e abordagem dos temas. Por isso prefiro escrever ficção à mão, para que seja uma experiência radicalmente à parte, transcendental, outra interpretação do mundo.


. Esta é a primeira vez que participa da Flip?


A primeira vez foi em 2007, fui conhecer a festa e ver Amós Oz, que me interessava muito. Voltei em 2016, já como ganhador do Prêmio Sesc de Literatura, mas sem o romance editado, para participar de um encontro na Casa do Sesc com o escritor pernambucano Mário Rodrigues, que recebeu a mesma premiação, mas na categoria Contos. Em 2017 apresentei Céus e Terra num café literário também promovido pelo Sesc, debatendo com a poetisa Cida pedrosa, outra pernambucana, sobre sertão e novas literaturas.


. Qual a importância da Festa para os escritores e o público em geral dentro do cenário da literatura no país?


A Flip é uma referência para outros eventos literários e para o próprio mercado, porque ao longo da sua história se articulou para responder demandas da sociedade, como a representação das mulheres, dos autores negros e das várias tendências da literatura. À medida que uma das maiores mobilizações, que tem a participação de personalidades significativas e ampla repercussão na imprensa, traz inovações, estimula a diversidade. Além da programação oficial existem muitos eventos que ocorrem paralelamente em Paraty, organizados por instituições nacionais, jornais, editoras de vários portes, enfim, é uma praça de artes que também atrai músicos, performancers etc. 


. O que quer a sua literatura? O sertão nordestino continua presente nela?


O sertão é uma condição da alma, é dentro da gente, como já disse Guimarães Rosa. Para mim é um ritmo, espiritual e cardíaco. A respiração tem esse compasso de um monocórdio. É uma batida seca, sem excessos, mas viva. Lá na minha terra, Araci, que cito no Céus e Terra, fiz uma casa num lugar quase ermo, com quintal grande e algumas plantas. Não canso de ficar lá à noite, tudo apagado, olhando o mato e o silêncio – no sertão, dá para ver o silêncio passando, de tão denso que ele é. Vejo também a barra do horizonte e sei de onde vem o vento do mar, vem fresco. Levo algumas indagações do que estou escrevendo agora, algo sobre essa contemporaneidade desajuizada, urbana, quase uma distopia, e o sertão me aconselha, me desafoga.


. O que muda na vida de um escritor depois de ter um livro premiado?


O interessante do Prêmio Sesc é que ele coloca o vencedor no mercado editorial já pela publicação por uma grande editora, a Record. Então você entra na malha de distribuição e também é incluído na agenda de vários eventos, também graças à premiação. Isso amplia a sua percepção sobre os desafios que os artistas da área enfrentam, porque a literatura é muito inusitada, pode trazer decepções de onde se espera muito, e reconhecimento por parte de desconhecidos, de pessoas e instituições distantes. A literatura, com o perdão das más rimas, nos aproxima da amargura, mas também da cura. A inspiração, se você ainda a tem e a estimula, te fortalece para enfrentar as fortes frustações políticas, inclusive essa sandice neoconservadora e neomoralista atual. Nenhum autor está imune à crise do mercado editorial, além de outras, mas precisamos continuar criando.


. O que você acha da obra de Hilda Hilst, a homenageada da festa?


Ela era intensa na entrega, na doação, na coragem. Essa postura de procurar mover o leitor, de balançá-lo, mesmo que precisasse modificar totalmente o seu texto, mesmo que a condenassem por romper os padrões, é rara. Mesmo no tratamento de temas eróticos, embora desbocada, não abriu mão da qualidade narrativa nem da composição de personagens, principalmente isso. Acredito que o desejo mesmo era de usar todas as ferramentas, e ela as tinha, buscando interação com os leitores, sem meias palavras ou falsos pudores. Rejeitar qualquer solenidade atribuída aos escritores, aos editores. Hilda queria se comunicar com as possíveis formas de vida, até com os animais, os óvnis, e fez experiências domésticas tentando gravar sons do além. Aliás, acho que a Flip acaba refletindo o lado místico da homenageada levando escritores como o congolês Alain Mabanckou, e a russa Liudmila Petruschévskaia, que aproveitam narrativas da mitologia e da espiritualidade de suas terras nas suas obras. É um resgate desse universo simbólico, que também me interessa.


. Você acredita que há muita diferença entre a literatura que se produz no Nordeste e a do Sul e Sudeste do país?


Acho que existem algumas tendências que não são necessariamente regionais, mas algo do tipo “escolas”, ou influências. As oficinas de escrita promovidas por escritores mais conhecidos, por exemplo, a literatura que surge de comunidades periféricas e a autoficção, além de outros, formam gerações que já se consolidam. A diferença regional é o acesso à mídia, às editoras, ao chamado buzz, ou seja, à repercussão informal, das redes sociais, pois existem polos de distribuição da informação, mesmo em tempos de internet.


Tuesday, July 24, 2018

Resenha de Céus e Terra na revista Sigila



Recebi hoje de Lisboa um exemplar da Sigila, "Revista transdisciplinar luso-francesa sobre o segredo", com uma resenha sobre o meu romance Céus e Terra feita pela escritora e pianista Gilda Oswaldo Cruz, artista fantástica, brasileira, que reside em Portugal. Ela me enviou também, por e-mail, o texto, publicado em francês, e a tradução (abaixo). O link para a Sigila na internet (site ainda sem a nova edição) é http://www.sigila.msh-paris.fr/


Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages


Quem viu os filmes de Glauber Rocha se lembrará das fisionomias castigadas dos protagonistas, sertanejos expostos à rudeza da existência no interior do Nordeste brasileiro, com a sua galeria de rostos cujos traços parecem expressar uma irredutível individualidade.

É com um semelhante olhar, tão de antropólogo como de poeta, que Franklin Carvalho nos leva neste seu primeiro romance a assistir a cenas de vida e de morte entre os habitantes de Araci, pequeníssima vila do interior da Bahia, terra natal do autor.

O leitor é logo confrontado com uma frase inicial de rara contundência: “Quando eu tinha doze anos, fui ajudar a tirar um homem da cruz. Encontrei-o morto e acabei morrendo também.” E explica, mais adiante: “Cortaram-me no ano de 1974, nos fundos da fazenda Guarani, de uma lapada só de facão. Que eu servisse de exemplo a quem anda desavisado no mato. A cabeça rolou para bem perto, sem grandes invenções, uma criança miúda, mestiço de índio, na beira seca do rio do Sangue” (p.9/10)

Apesar da violência dos acontecimentos - dois assassinatos, um suicídio apenas insinuado e a enigmática desaparição de uma personagem - tudo é narrado por Galego, o menino decapitado, com uma assombrosa ausência de ênfase. Tudo ele conta uma leveza inebriante, como que denotando o seu amor fati de cunho religioso ou filosófico, o que confere ao romance uma altura inusitada nas letras brasileiras de hoje. As injustiças na vida do sertão são enunciadas pelo narrador menino com uma naturalidade não enfática que lhes presta ainda maior dramatismo.

Ceifaram-lhe a cabeça, diz o menino, “por susto”, mas o assassino arrependido terá o perdão dos seus concidadãos. Sem resquício de autopiedade, Galego relembra a sua existência de menino dado pelos pais pobres “a criar” por uma família de poderosos – trato comum no vasto interior brasileiro– que o converte numa espécie de escravo encarregado na fazenda dos trabalhos mais ásperos, e onde lhe é negado por vezes até o alimento.

A grande vantagem ficcional de ver o mundo pelo lado dos mortos, Galego logo descobre– além de “ficar sem nome, sem fome, sem horas” (p.189) –, é ver sem ser visto.

Há também a sua nova faculdade de deslocar-se velozmente pelo espaço. Com seu olhar curioso e empático, o menino sem cabeça descreve a vida e os costumes dos cidadãos de Araci, oferecendo-nos um panorama sinóptico dos seus modos de trabalhar, amar, morar, matar, comer e beber, ajudar o próximo, reeerguer a vida, suportar os males da vida, deslumbrar-se com a fugaz passagem de um circo e, com grande destaque, acreditar fortemente no sagrado com o sincretismo religioso dos sertanejos brasileiros, e não só deles. São tão efusivamente católicos na celebração da Semana Santa como devotos dos terreiros de candomblé, dos orixás e dos curadores (o autor evita o termo judicativo de curandeiro), a quem recorrem sempre em caso de necessidade.

Fresca a sua decapitação, ainda assim o menino morto precisa comer, mas só quando os vivos o fazem, sendo seu único alimento as pipocas, e também beber água, ainda pela boca dos vivos. Sua existência post-mortem obedece a um período de gestação ao invés, ao longo dos nove meses que dão título aos capítulos, e à medida que passa o tempo em contagem regressiva para a sua fusão final com o todo, ele observa o que lhe acontece:

“aí me ocorreu pela primeira vez a sensação de estar cercado de terra úmida. (…) Poderia ser mesmo que eu estivesse sendo devorado pela terra, e aquilo não me assustava em nada, nem me ameaçava. Poderia ser que o caixão barato em que me puseram, forrado apenas por um filó, tivesse se desmanchado e a minha pele fosse penetrada pela sombra debaixo de sete palmos” (p.108 e 109). “Por isso, fui me deixando sentir o toque da terra, e não era mais eu quem estava sendo absorvido por ela, mas me expandia, numa sensação deliciosa de dominar a terra que me invadia. Era como se nos uníssemos, desfazendo-nos em húmus, inumando. Então eu aumentava para ser toda a terra em cima do meu corpo. Tão satisfeito como alguém que se espreguiça dentro da maciez da polpa de um pêssego, ou de um cupuaçu, ou de uma manga, ou quem rompe o hímen das águas para pôr-se de pé num lago. “ (p.109)

Não seria apropriado aproximar ao realismo mágico este relato passado em terra sertaneja tão fértil em crenças no sobrenatural. Lá a vida é cotidianamente vivida como tendo parte contígua com o sagrado. Celebremos, sobretudo, a reinvenção poética da linguagem neste livro de Franklin Carvalho, que lhe valeu no Brasil em 2017 dois prêmios literários importantes, o do SESC e o São Paulo, na categoria romance de estreia.

Gilda Oswaldo Cruz


Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages


Ceux qui ont vu les films de Glauber Rocha se souviendront des physionomies malmenées des protagonistes, ces paysans exposés à une rude existence à l’intérieur du Nord-Est brésilien, avec une suite de visages donts les traits semblent exprimer une irréductible individualité. C’est d’un regard semblable, si anthropologique que poétique, que Franklin Carvalho nous présente tout au long de ce roman des scènes de vie et mort parmi les habitants d’Araci, une petite bourgade, qui est la ville d’origine de l’auteur, à l’intérieur de Bahia.

Le lecteur est confronté d’emblée à une phrase initiale d’un grand impact: «Quand j’avais douze ans j’ai aidé à libérer de la croix un tel homme. Je l’ai trouvé mort et j’ai fini par mourir moi-même.» Et il poursuit: «On m’a tranché en l’an 1974, au fond de la fazenda Guarani, d’un seul coup de couteau. Pour que je servisse d’exemple à quiconque marcherait insouciant dans la brousse. Ma tête roula jusqu’à tout près de là sans grandes inventions, un enfant chétif, métis d’indien, sur la rive sèche du fleuve du Sang.»(p.9/10)

Malgré la violence des événements – deux meurtres, un suicide déguisé et une disparition – tout est rapporté par Galego, l’enfant décapité, avec une surprenante absence d’emphase. Il raconte tout cela d’une griserie flottante, comme en reflétant son amor fati à empreinte religieuse ou philosophique, ce qui accorde au roman sa haute portée parmi les lettres brésilienes d’aujourd’hui. Les injustices systématiques du pays sont enoncées par l’enfant narrateur, d’un naturel non appuyé qui leur prête un fort dramatisme.

On lui a tranché la tête «dans l’effroi», mais l’assassin repenti sera pardonné par ses concitoyens. Sans un brin de commisération, Galego évoque son existence d’enfant livré par ses parents pauvres à une famille de puissants afin d’y être élevé – un règlement assez fréquent dans le vaste Brésil profond – ce qui le change en une sorte d’esclave chargé des travaux les plus ardus de la fazenda, où on lui refuse jusqu’à la nourriture.

Le grand avantage fictionnel de regarder le monde du côté des morts, Galego s’en rend compte – au delà de «demeurer sans nom, sans faim, sans horaire» (p.189) – est de voir sans être vu. Il y gagne aussi sa nouvelle faculté de se déplacer à toute vitesse dans l’espace. De son regard curieux et empathique, l’enfant sans tête décrit la vie et les moeurs des citoyens d’Araci, en nous offrant un panorama synoptique de leur façon de travailler, d’habiter, manger et boire, d’aider leur prochain, redresser leur vie, supporter les maux du quotidien, se laisser éblouir lors du passage fugace d’un cirque et, avec assez de relief, de croire vivement au sacré, dans cet esprit de syncrétisme religieux caractéristique des paysans – et pas seulement eux! – brésiliens. Ils sont si chaleureusement catholiques lors de la célébration de la Semaine Sainte que dévots des arènes de candomblé, des orixás et des guérisseurs (l’auteur esquive le terme judiciaire de sorciers).

Si sa décapitation est encore fraîche, l’enfant a toujours besoin de manger, mais uniquement quand les vivants le font, son seul aliment étant le pop-corn, et de boire de l’eau, toujours par la bouche des vivants. Son existence post-mortem obéit à une période de gestation à l’envers, au long des neuf mois qui donnent titre aux chapitres – et, à mesure que le temps s’écoule à rebours vers sa fusion finale avec le tout, il observe ce qui lui arrive: «là, la sensation m’est venue pour la première fois d’être entouré de terre humide. (…) Peut-être même que j’étais en train d’être dévoré par la terre, pourtant ça ne m’effrayait pas du tout, ni ne me menaçait. Il se peut que le cercueil bon marché où l’on m’a fourré, uniquement doublé de tulle, se soit fragmenté, et que ma peau ait été pénetrée par l’ombre, au dessous des sept empans.»(pp.108-9). «À cause de ça je me suis laissé faire juqu’à éprouver le contact de la terre, et ce n’était plus moi qui étais en train d’en être absorbé, tout en me gonflant, dans une sensation délicieuse de dominer la terre qui m’envahissait. C’était comme si on fusionnait, pour se défaire en humus, en inhumant. Alors je gonflais, pour répondre à toute la terre au-dessus de mon corps. J’étais aussi satisfait que quelqu’un qui s’étire à l’intérieur de la pulpe d’une pêche, d’un cupuaçu, ou d’une mangue, ou de quiconque rompt l’hymen des eaux pour se tenir debout dans un lac.» (p.109)

Il ne serait pas adéquat de rapprocher ce récit du réalisme magique, puisqu’il concerne la terre du sertão, si fertile en croyances au surnaturel: la réalité est déjà assez magique pour qu’elle ait besoin de dispositifs littéraires exquis. Célébrons donc surtout la réinvention poétique du langage dans ce livre de Franklin Carvalho, signalée au Brésil en 2017 par deux prix importants qui lui ont été décernés – celui du SESC, et le prix São Paulo dans la catégorie du roman débutant.

Gilda OSWALDO CRUZ






Wednesday, July 04, 2018

Artérias cheias de fuligem e de poesia

Evanilton Gonçalves, em seu Pensamentos supérfluos Coisas que desaprendi com o mundo (Boto-cor-de-Rosa/Paralelo 13S - 2017), nos oferece dois livros instigantes. O primeiro é feito, como o nome indica, de pensamentos, anotações daquelas que algumas pessoas lançam sobre cadernos - neste caso, inquietações sobre o cotidiano de Salvador, as violências e o escândalo diário das tragédias urbanas, pequenas e grandes, individuais e coletivas, não respectivamente.
Ao tempo que aguça o seu olhar nativo,  o autor acentua o estranhamento nas 50 micro-crônicas que, com alguma frequência, citam o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. A referência não é em vão posto que Pessoa, naquela obra, também filtrava os altos e baixos de Lisboa e de si próprio na interação com a cidade.
Com uma entonação bastante poética, Evanilton explora conceitos (a palavra “pão” e suas implicações linguísticas e políticas, no Pensamento 7), formas (a cidade que parece uma roda gigante, Pensamento 9) e emoções (a solidão inescapável, a companhia intangível, Pensamento 24). E escapa do óbvio, das simplificações. Num dos pontos mais altos (Pensamento 28), enquanto adivinha os sentimentos de um garçom que o aborda: “Sofri por não sofrer o suficiente para sacudi-lo” descreve a parte mais aguda do drama, mas nos sugere adivinhar o contexto “Renunciei ao fatídico prólogo”.
Já em Coisas que desaprendi com o mundo estão 13 pequenos contos que carregam uma ironia mordaz, rascante, mas aqui o narrador está mais exposto a receber tiros e ser atropelado (“O fim da linha”), perder conhecidos (“Direitos humanos”) e ser engolido pela miséria, como habitante de uma cidade-monturo (“Estamira” e “Deus-Dará”). Nessa segunda parte do livro a máquina urbana avança, range os seus dentes, o convoca e o ameaça. Às vezes ele luta como um leão, às vezes dança como escorpião, mas sempre aceita o desafio. E nos avisa: ninguém é inocente, ninguém está a salvo.

Friday, May 18, 2018

Lincoln no limbo, um estado de espíritos



O escritor americano George Saunders, que só tinha livros de contos e um infantil, apostou em uma ideia arriscada para seu primeiro romance, Lincoln no limbo (Companhia das Letras, 407 pg.): tomou a figura do presidente Abraham Lincoln, o fato real da morte de seu filho Willie, no mês de fevereiro de 1862, no início da Guerra Civil, e a ficção de que o lamento do pai teria prendido a alma do menino em um limbo. O livro passa-se quase que inteiramente no cemitério – outra aposta ousada – de Oak Hill, em Georgetown, onde fantasmas contam suas razões para também estarem ali: apego a pessoas vivas, mágoas, dúvidas, e, no que toca ao pequeno Willie, o fato de seu pai ir vê-lo muitas vezes, abraçando o seu corpo embalsamado, visitas que de fato aconteceram.

Saunders aproveita o mito de um lugar místico, o limbo, que está em diversas religiões como uma condição que não é a terra nem a transcendência. É um conceito ele próprio indefinido e esvaziado, quase em desuso oficial, ele também no limbo, por assim dizer. Mas os seus supostos atributos, que o autor explora muito bem, ainda vagam no imaginário social de forma tão comum quanto as receitas de chás e de remédios caseiros.

O autor se fixa no cenário cemiterial, revelando uma grande familiaridade com o contexto arquitetônico do ambiente, as frases comuns nas lápides e a divisão de classes nos sepultamentos, inclusive as valas comuns dos escravos e párias do século XIX, em território separado daquele dos brancos.  Descreve regras do rito funerário e do estilo americano da época e é muito convincente quando introduz detalhes sobre a guerra e a rotina da Casa Branca, colocando a tese de que o episódio da perda do filho influenciou o arrojo de Lincoln à frente do governo: “Todos estavam sofrendo, tinham sofrido ou em breve sofreriam… Temos que derrotar nosso sofrimento”. trechos de jornais e livros, reais e ficcionais, também são inseridos, até contraditórios entre si nos pormenores, como costuma acontecer, ampliando o leque de informações para o julgamento do leitor. Acrescenta-se a isso os relatos de inúmeras vidas anônimas.

Lincoln no Limbo é uma obra onde todos os personagens, 166, são narradores e dialogam, às vezes com minúsculas participações, às vezes com mais frequência, segurando o fio condutor da história. Os fantasmas têm poderes e vulnerabilidades extremas, e habitam um microcosmo humano como qualquer outro, onde a rispidez e a lascívia também estão integrados. O limbo é até movimentado, e quem está lá parece mesmo equivocado, achando que seu corpo encontra-se numa “caixa de doente”, vendo seus restos mortais como “formas doentes”, com memórias do “lugar anterior”. Um dos personagens chega ao requinte de dizer “O menino [espírito do menino] continuou sentado, sem mover um músculo”.

O resto é poesia, principalmente na boca de um dos espectros, Roger Bevins III, que num momento de recordação da sua vida na terra, solta uma pérola como essa: “Abrindo mão de coisas como… quatro sombras lineares e paralelas projetadas por uma vezeniana se movendo lentamente através do flanco de um gato malhado que dorme ao meio-dia”.

Confesso que estanhei um escritor abordar de forma tão independente a memória de um falecido, inclusive projetando a sua trajetória no mundo espiritual. Alguém que tentasse fazê-lo no Brasil, imagino, ficaria dependente da autorização da família do personagem para publicar, coisa que dificilmente obteria, enfrentaria a classe política cheia de falsos pudores e recalques verdadeiros, e escandalizaria a indústria religiosa. Felizmente, o livro tem seguido uma trajetória mais tranquila, afinado com o líbelo de H. P. Lovercraft: “Sonho um mundo de mistério gigantesco e fascinante, de esplendor e de terror, no qual não haja outro limite a não ser aquele de nossa livre imaginação”.

Cheguei a Lincoln no Limbo por uma sugestão do escritor Bernardo Carvalho, que me falou da obra antes que ela saísse no Brasil. Assim que terminei de ler a edição da Companhia das Letras, procurei comentários dos youtubers brasileiros, mas o texto ainda não havia sido resenhado. Encontrei então o vídeo de Ilenia Zodiaco Zodiaco (https://youtu.be/tMofyyuUsjM), uma italiana que faz considerações muito pertinentes.

Para Ilena, trata-se de um livro em que são descritas sensações físicas, muito vivas, orgânicas. A história, com “um único narrador plural”, tem um caráter “grotesco, bufo, dantesco [no que se refere a Dante, literalmente]”. Morte e vida são, nessa perspectiva, experiências coletivas e solidárias, e Saunders “é um escritor gentil que crê na inocência”.

Da minha parte, fico muito feliz em ver outro livro que dá leveza ao tratamento do tema da morte, optando também por uma criança como protagonista, semelhante ao que procurei fazer em Céus e Terra. Bom saber também que essa obra tem sido bem acolhida pela imprensa e público, sagrando-se vencedora do Man Booker Prize.







Monday, March 05, 2018

A instrução da noite e seus escombros



Li a Instrução da Noite (Editora Rocco, 2016,141 pg.), de Maurício de Almeida, e fiquei admirado com a forma como o autor constitui a malha desse novo labirinto. É ainda o ambiente onírico que ele evocou em Beijando Dentes, seu primeiro livro, com referências ao cinema surreal de Luís Buñuel, mas agora revela-se mais claustrofóbico, no grau do Anjo Exterminador, do mesmo diretor.
A história pode ser descrita muito rapidamente: o protagonista/narrador recebe a visita do pai que havia abandonado o lar, fica chocado com um novo embate e lamenta-se, endereçando sua mágoa à irmã Teresa, outra que já não mora com ele, que se casou primeiro e conseguiu fugir da família sempre periclitante. Há ainda um porre solitário deste narrador num boteco, sua visita a ambientes da infância e a tentativa de dividir a mágoa com duas mulheres que residem com ele sob o mesmo teto, a mãe e a esposa – tudo isso numa só noite, uma sucessão de fracassos.
A narrativa dilui-se então líquida como a chuva ininterrupta, ou como a bebida alcoólica, e também gasosa, como os muitos cigarros que o protagonista e seu pai fumam. Até as andorinhas fincadas na calçada, aquelas alegorias de pedras portuguesas, levantam voos e invadem as cenas. Mesmo sendo do mais concreto material escapam e fogem intangíveis e escandalosas (e me recordam a gravura de Escher que posto junto a esta resenha). E a tudo assiste Teresa, a invisível (pareceu-me inevitável comparar essa musa tão apelada ao vidente Tiresias da tragédia grega, que suportou as lamúrias de Édipo Rei).
A orelha do livro, escrita por José Castello já resume a tônica de uma linguagem “sincopada, brutal e delicada” usada pelo autor. Realmente, se “A Instrução” parece a princípio juntar-se a Lavoura Arcaica e a Um Copo de Cólera de Raduan Nassar pelo tom confessional e exacerbado, seu martelo é próprio, vocalizado a partir de um personagem inédito, encurralado na sua própria violência e preocupado em articular um mundo minimalista.
São recorrentes as imagens de demolição de uma casa antiga onde os personagens moraram, e junto com o prédio físico ameaçam desabar as suas referências e afetos. O próprio narrador se mostra reduzido a escombros e, numa condição cíclica, habita outra casa que também desmoronará - outra casa assassinada. Nessa situação, resta-lhe compor mosaicos poéticos como quem cola ladrilhos: “Uma amanhã amena como amena deveria ser e nunca é” (p.22), “Afeito a nervosismos que agravam meu vacilo” (p.29), “Delicado rumor das árvores chovendo depois da chuva” (p.113) e “escombros e entulhos entre os quais padeci ajoelhado” (p.116).
Nessa obra sobre a não-comunicação em família chama a atenção justamente a forma como os diálogos são encaixados. Eles são fragmentados, reconstituídos, novamente fragmentados, esquecidos, repetidos, abandonados. E há uma hierarquia da fala do qual o protagonista não consegue escapar, ele mesmo silenciado, minúsculo, esmagado pela sombra de todos os parentes. Sua palavra é castrada e infértil, inclusive na relação com a esposa. Somente a mãe, alienada mental, transtornada e silenciosa, se equivale nessa escala de impotência.
A Instrução da noite é singular justamente por retratar a mudez e evidenciar que muitas vezes estamos nessa mesma condição, suspensos, almejando um diálogo inalcançável.