O
corpo parece, primeiramente, figurar como elemento que agrega todos
os objetos da personalidade. Inclusive os objetos simbólicos, os
jeitos, as posturas, o timbre de voz e todo o temperamento, além de
vincular ferramentas como roupas, adereços e outras posses que
constituem uma identidade.
Mas
o corpo, por mais que seja o ligame dos objetos da personalidade, é
também mais um objeto perecível. Como consequência, a cultura
humana busca, muitas vezes, deslocar o indivíduo para fora desta
figura, principalmente num duplo espiritual.
No
entanto, é inevitável: as sandálias do falecido, seu chapéu, suas
calças folgadas serão dispersos ou desmanchados para compor novas
peças. Suas panelas serão carregadas pelos vizinhos, seu colchão
acomodará sete crianças de um casebre na rua de baixo, sua
dentadura será roubada por algum cachorro que procura osso.
A
dispersão é a regra para todos os objetos, e, a partir desse
fenômeno, também para a personalidade. A cultura ainda resiste: ela
quer fazer sobreviver socialmente o nome, que é o principal objeto
simbólico da personalidade, e, em torno da memória desse nome,
reunir os bens remanescentes.
3
As
identidades agregam coisas concretas e bens simbólicos e depois
desaparecem, liberando esses objetos para novos vínculos. A
existência é um tecido vivo onde aparecem configurações
repentinas.
O
tecido natural vibra, pulsa, como água fervente onde as bolhas
explodem neste e naquele lugar e depois desaparecem. E outras bolhas
serão formadas com o mesmo líquido.
4
Tão
simples como um vaso de porcelana que arrebenta-se ao cair, e deixa
os cacos espalhados. A morte é irreversível e assegura a
irreversibilidade de todos os outros eventos. E recarrega o mundo, e
o reorganiza.
Cada
falecimento estremece a fronteira que separa os vivos dos mortos, daí
provocar o medo duplo de que mais vivos morram ou que os mortos
voltem. Medo de que a fronteira rompa-se e haja um desequilíbrio, e
seja reunido o que está providencialmente separado.
5
Não
há vida nem movimento nem força, nem matéria ou energia que
valha-se de uma única partícula fundamental. Todo movimento é
forjado por um conjunto. Não só os conjuntos participam dos
movimentos como geram movimentos a partir de seus choques, reações
químicas etc.
A
união e a dispersão, a vida e a morte são locais críticos de
reconfiguração. Na lei da inércia, os corpos tendem a ficar
parados ou manter seu movimento até que uma força externa aja sobre
eles. Mas os organismos vivos também movem-se ou são paralisados
por forças dentro deles.
A
sucessão de descontinuidades é regra tão absoluta e inescapável
que só podemos supor duas coisas: todo equilíbrio é precário e a
precariedade é o equilíbrio.
Outro
aspecto a ser observado é que estes choques favorecem outros
movimentos, não só porque liberam formas para novos arranjos, mas
também porque criam vácuo no tempo e no espaço para essas
combinações.
O
universo, assim como o conhecemos, só funciona porque é
descontínuo. Como um rio, só corre porque há acidentes no seu
leito.
6
Numa
coisa o homem puxou a Deus: nada o incomoda mais do que o vazio. Para
o homem, então, vazio é melancolia, tédio, tristeza, e é a ameaça
de morte iminente. O silêncio é assustador, o escuro é assombrado.
Do
nada, do fundo do éter, o caos nos observa e afia as suas unhas,
escondido. Por que temos esse medo, essa expectativa de que algo vai
brotar eruptivo do vazio? E por que assim, inesperadamente, de forma
a suprimir todas as outras coisas, para tragar um universo enorme?
Quando foi que isso já aconteceu?
7
Orfeu,
poeta mítico, após a morte da sua amada Eurídice, vai ao inferno
resgatá-la. Como forma de agradar Hades, rei dos mortos, Orfeu entoa
uma canção de amor tão comovente que todas as almas do inferno
choram.
Então,
Hades consente em devolver-lhe a mulher, mas impõe, como condição,
que até a saída do inferno Orfeu não olhe para Eurídice. O poeta
não resiste, porém, olha-a e perde–a para sempre, e retorna
sozinho ao mundo dos vivos.
Sempre
me perguntei por que Orfeu não resistiu e voltou os olhos para
Eurídice antes de sair do inferno. Cheguei mesmo a duvidar do seu
amor por ela, como se tivesse lhe bastado a vaidade de convencer
Hades.
Por
fim, ocorreu-me que esse mito, como todos os outros, encerra uma
sentença, uma moral, e que antes de perguntar por que Orfeu
transgrediu a norma, devemos saber por que a norma existiu, porque
ele foi proibido de olhar para a sua amada.
A
resposta que me pareceu óbvia é que Eurídice estava morta,
portanto não podia ser desejada. Talvez, depois que regressasse do
inferno e voltasse a viver, ela pudesse ser objeto de amor, de
admiração, do “olhar” apaixonado. Enquanto falecida, porém,
não poderia sequer ser considerada. Essa é a regra de interdição
do morto, que não pode ser cobiçado.
Então,
como trazer da morte alguém amado, se é proibido amar — tanto —
essa pessoa?
8
Prezados
Professores da Universidade Federal de Ciências,
Bem
sabem que ainda não sou um acadêmico. Nem mesmo um interlocutor
muito qualificado para fazer proposições no terreno da Física. No
entanto, como a observação muito próxima pode, algumas vezes,
prejudicar o foco sobre as coisas, atrevo-me, justamente por olhar de
longe, a fazer as seguintes ponderações sobre energia e matéria
escuras:
a)
O modelo padrão cosmológico permitiu que algumas correntes
considerassem a possibilidade de haver “dimensões enroladas”,
dimensões encolhidas. Isso seria providencial para a elaboração de
uma teoria unificada das quatro forças universais conhecidas –
gravidade, eletromagnetismo, força nuclear forte e força nuclear
fraca. Essas “dimensões” permitiriam explicar certa perda da
gravidade, que parece “escapar” deste universo. Neste mesmo
sentido, perduram diversas indagações sobre o big-bang e sua
relação com os buracos negros, como se estes últimos fossem novos
big-bangs que originam universos paralelos;
b)
Por outro lado, as ideias de energia e de matéria escuras nos
sinalizam forças colossais, também desconhecidas, que atuam sobre o
movimento dos grandes conjuntos estelares;
c)
Nesses passos, de uma força que some e outras que aparecem,
restou-me perguntar: a energia escura não seria a gravidade que
escapa de algum momento anterior ou futuro? E não seriam as
“dimensões enroladas” uma dimensão só, o tempo, que teria
fluxos ainda não calculados?
d)
Já que tem sido usual na crônica científica mais popular – e eu,
como cidadão simplório almoço nesse andar térreo – usar sempre
uma metáfora ou desenho para explicar conjecturas diversas, proponho
uma que me serve para visualizar o absurdo que sugeri: imaginemos uma
bordadeira que, com a ajuda de uma agulha, faz uma linha atravessar o
tecido diversas vezes, até obter uma figura qualquer. Suponho,
então, que até hoje vivemos na superfície do bordado, e vemos
aparecerem pontos dia após dia, sem conceber a continuidade entre
eles. Bom exemplo poderia ser o elétron, que some e depois aparece
numa órbita mais carregada, e não sabemos onde esteve nesse
meio-tempo, nem mesmo se frequentou um "subsolo" temporal.
e)
Seria o caso, portanto, de considerar-se um modelo transcendente –
que esta palavra esteja despida de todo misticismo —, que não mais
leve em conta dimensões mínimas, mas tome o conjunto energético
universal através dos tempos.
f)
Como viram, fiz questão de demarcar a possibilidade de uma corrente
de força gravitacional vinda do futuro, o que é apenas uma hipótese
absurda dentro de uma proposição mais absurda ainda. Mas, já que
estamos neste cogitar, por que não considerarmos que até mesmo as
leis de causalidade, do fluxo unidirecional do tempo, podem ser
revistas, de modo a obter-se uma configuração mais ampla da
corrente temporal e de seus desdobramentos?
Agradeço
por sua paciência.