Eu vi aqueles três elementos aparecerem ao meu lado, eu deitado no meu quarto, na cama. Pareciam cachorros, dois pretos e um vermelho. As presas eram como facas afiadas, as bocas compridas de jacaré.
Eles roeram o meu corpo do pescoço para baixo e levaram a cabeça pelo sertão adentro. Atravessaram a Bahia e o Rio São Francisco até chegar em Sergipe. Esse caminho demorou muito no mato de noite.
Lá em Sergipe, me jogaram no centro do terreiro de um curador que eu não conhecia, e já estava tudo pronto. No chão tinha velas e duas galinhas mortas. O curador mandou eu comer uma galinha, que assim eu ia ganhar todo o dinheiro aqui da vila e das roças por aí afora. Ia ficar rico pela vida toda, só cumpriria três dias de miséria nas vésperas de morrer.
Eu desconfiei daquela ideia. Disse ao curador que só a Deus eu obedeço, e não comeria galinha nenhuma.
O sujeito me chamou de teimoso e ordenou aos tais cachorros que me trouxessem para casa e, aqui chegando, acabassem de me matar.
Quando voltamos, atravessamos o rio e a mata e paramos perto, mas já não eram os mesmos dias que saímos. Era a época de anos atrás, velhas estradas de barro que nunca conheci, casas antigas de palha, plantas altas que já não existem e um velhinho no meio delas, um sujeito magro, de costas, com as mãos levantadas ao céu, como um santo. Os cachorros se diziam: “Vamos desviar do Atrapalha”, maldizendo aquela aparição.
O velho ordenou que o chão se abrisse e os cães descessem pela fenda. Falou isso outra vez e a fenda abriu ainda mais, mas os bichos quiseram voar, e voando mesmo estouraram como foguetes.
O santo, que era esse “Atrapalha”, me pediu que ao chegar em casa eu queimasse todas as minhas coisas de curador conforme fosse recolhendo, sem muita agonia. “O resto o dono virá buscar”, ele disse.
Assim aconteceu. Acordei na minha casa e, de duas vestes que encontrava, tirava só uma para queimar. De ferramentas e velas não foi tudo para o fogo, nem todas as folhas, nem todas as fitas. Dava-me pena, compreende?
Mas no dia seguinte recebi a visita de um homem a quem eu devia, curador ele também, e lhe entreguei o resto das coisas da casa, menos as imagens dos santos…
Na mesma hora esqueci tudo. Eu, que responsava e livrava as pessoas dos maus ventos, esqueci todo os preparos, esqueci os banhos, os fundamentos. De uma hora para a outra. Assim que eu parei, pararam também os meus filhos de santo. Larguei a Linha Branca das Almas, porque havia invejosos, gente da mão esquerda, e eles estavam de olho em mim, querendo me dominar.
O que eu tenho hoje é isso: essas raízes, essas garrafadas curativas de folhas e de sementes, coisas que aprendi dos antigos, e esses litros de mel. E a simples devoção, simples reza.
Meu nome é só Romeu, não é mais “Pai”, não tem nada disso. E se precisar eu mudo de nome de novo, a qualquer hora, nem registro de nascimento vale. Porque sou antes um homem, só um homem. Basta olhar o meu rosto para confiar na minha palavra.
Monday, September 23, 2024
De como Romeu Raizeiro deixou de ser curador
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