Monday, July 29, 2024

Esse seu coração

(Publicado no Jornal A Tarde)

Quando vem à cidade grande fazer exames médicos, o velho cícero pernoita no apartamento de Lavínia, sua irmã que mora no centro, pois tem que acordar cedo para as filas. 
É Lavínia, professora aposentada, mais velha que Cícero, que o leva em tudo, embora ele já conheça muita gente nas casas de saúde. A irmã fica nas antessalas dos ambulatórios, segurando as senhas, resmungando com outras mulheres na espera, enquanto Cícero vadeia nas varandas dos prédios, beberica um café nos ambulantes de sonhos e cigarros e se inteira das notícias com os seguranças, com os maqueiros de folga e outros desocupados.
Em casa, no interior, Cícero é ranzinza e quase não sai, mas basta viajar para virar um menino. Tudo lhe atrai a curiosidade. Interessa-se mais ainda pelo mendigo que esmola em frente ao Hospital das Clínicas, detém-se com ele, entrevista-o como se parente fosse. Quer saber onde o mendigo mora, porque entrou naquele modo de vida, onde está sua família, e com muitas perguntas lhe dá tratamento. E esvazia o bolso, comovido com o que ouve. Então vem Lavínia buscá-lo para a consulta.
Cícero tem a sua aposentadoria e algum recurso guardado, mas a receita do oftalmologista quase vence sem ele tomar providência. Foi necessário Lavínia ter pago do seu dinheiro os óculos novos, que ele não usa. O velho carrega um colírio no bolso, mas vencido há um ano. Medicação nenhuma ele compra. Se acha amostra grátis, usa só dois comprimidos. Exames, faz a pulso, e perde os resultados. Felizmente tem saúde regular, fora o refluxo que apareceu há poucos anos. Mas assim como a comida lhe sobe pela goela para abandoná-lo, parece que o abandonam também as doenças, as ziquiziras, os olhados. E Cícero só admite que o cure de vez, quando precisa de cura, as rezadeiras do interior.
Lavínia mora num apartamento pequeno no subsolo, e Cícero não consegue dormir a noite inteira. Estranha a cama, o calor, o mofo e o cheiro típico dos subterrâneos. Não confessa a ninguém, mas sempre teve pavor de ser enterrado vivo, e a moradia no subsolo lhe sugere o purgatório. Até de dia é noturna. O velho já ofereceu um terreno para a irmã fazer uma casinha perto de onde ele mora, mas ela gosta das ilusões do asfalto, e resiste a mudar suas sistemáticas.
No dia de Cícero viajar, Lavínia o leva na rodoviária. Os dois são idosos pobres como muitos que desfilam na estação, mas mais pálidos. Ela é gorda e ele, magro, e carrega uma bolsa surrada e flácida. Lavínia compra revistas de palavras cruzadas, que o irmão adora, e muitas frutas para a viagem. Também dá dinheiro para Cícero investir em vitaminas e alimentação saudável. 
O alto-falante anuncia a hora da partida e uma lágrima quer saltar nela.
Uma hora depois, na estrada para o interior, o ônibus pára e entram vendedores de pastéis, de refrigerantes, de salgadinhos ultraprocessados e de chocolates gordurosos. Cícero faz a festa com o dinheiro da irmã, e, abrindo embalagens de diversos sabores, procura esquecer a saudade que lhe rói. 
Cícero sabe que saudade é dívida do passado e dúvida sobre um reencontro no futuro. E que dívidas e dúvidas - Misericórdia! - são as coisas que mais matam gente no mundo.

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