Capela do Campo Santo (Foto: Biblioteca Nacional)
Wednesday, January 11, 2012
Monday, January 09, 2012
A morte líquida
Visitei alguns cemitérios na Bahia, Pernambuco e no Maranhão,
principalmente. Neste último, me chamou a atenção o cemitério de Santo Amaro,
cidade conhecida como Portal dos Lençóis, porque, embora, e talvez por isso mesmo, a localidade figure como uma das mais
pobres do Brasil, as sepulturas são marcadas por uma riquíssima criatividade no
improviso de enfeites, imagens de santos, formas e materiais de construção.
Havia uma cova triangular aqui, outra cercada de arames mais na frente, outra
coberta de azulejos adiante e nenhuma era igual naquele campo mal cercado por
um muro em ruínas, invadido por cabras que pastavam entre as covas.
Nos cemitérios de São Luis e de Salvador, além de Serrinha e
Araci, me chamou a atenção o número de fotografias ou de figurinhas
auto-adesivas coladas aos túmulos, o que, se por um lado sugeria uma
informalidade no contato das famílias com os falecidos, por outro lado,
assemelhava os túmulos aos ambientes e à mobília doméstica, coberta de
porta-retratos. Confesso que, por alguns momentos, vi algumas casas como vi
aquelas sepulturas.
Ainda em Salvador, mas também em Recife, visitei as
catacumbas das igrejas barrocas de São Francisco. Na capital baiana,
aproveitando a brecha deixada pelo vigilante, acessei as catacumbas do Carmo, e
me vi sozinho, lá dentro, com uma mendiga que descreveu a estrutura do claustro
e apontou uma sala completamente escura que, segundo ela, servia de habitação
para os escravos. Meses depois, a igreja do Carmo foi reaberta a visitação
pública. Retornei ao local, mas a moradora tinha sido removida.
Nenhum lugar em Salvador, no entanto, confirma a idéia de
que “a morte também morre” como o cemitério da igreja do Pilar, anexa ao
templo, no bairro do Comércio. A área, que já foi considerada nobre, encontre-a
coberta de lixo e de areia e mato que despencaram de um barranco lateral. As
sepulturas estavam destroçadas. Já no cemitério dos ingleses, no bairro da
Barra, sobressaiu o caráter positivista da afirmação das carreiras e do
prestígio dos personagens ali sepultados. Mesmo assim, são notáveis a
sobriedade, em contraste com cemitérios católicos, e uma ordem na separação das
sepulturas, perceptível mesmo no estado avançado de deterioração em que se
encontram, também por causa da idade.
No Campo Santo, em Salvador, há a mistura de todos estes
aspectos, com ossuários dentro da capela de Nossa Senhora da Vitória, no piso,
e também nos fundos e no sótão. Fora da capela, mausoléus de todos os estilos,
incluindo a arquitetura moderna, que se pretende despojada, mas acaba sendo ostensiva
pelo volume dos monumentos. Algumas peças de arte são de uma representação
comovente, com anjos, mulheres e famílias chorando. Prevalece o tema religioso,
é verdade, mas algumas estátuas parecem conter algum segredo de viúvas, ou
familiares, em cumplicidade com o falecido. Como o cemitério está situado num
lugar alto, há sempre uma brisa agitando as árvores frondosas que dão sombra ao
lugar, e o conjunto é bastante aprazível. O que diz o cemitério do Campo Santo?
O que ele ensina? Nada. Mostra apenas como é delicioso o silêncio que só a
brisa pode melhorar.
Quando há missa na capela, quando se conversa com os
freqüentadores das missas, com os funcionários ou com os vigilantes, pode-se
aprender alguma coisa a respeito das suas vidas, em bairros humildes das
vizinhanças, no caso dos primeiros, ou na periferia, no que diz respeito aos
empregados. Também é possível perceber como os desempregados da vizinhança,
principalmente as mulheres, crianças, arrecadam dinheiro circulando o dia todo
com baldes, escovas e panos, limpando os túmulos por encomenda das famílias dos
sepultados. Alguns são mensalistas e vivem ávidos pelo fim do mês. Não raro,
desfilam com escadas para alcançar os mais altos dos túmulos ou das carneiras
e, nos dias de finados, multiplicam-se na concorrência de vizinhos que chegam
para defender alguns trocados, tanto vendendo flores e velas quanto, no frêmito
do fluxo intenso de pessoas sob o sol de novembro, improvisando a arrumação de
jazigos há muito tempo abandonados.
Vi outros locais de sepultamento em Minas Gerais e pelo interior
da Bahia, tanto em igrejas quanto em cemitérios propriamente ditos, mas
estranhei quando conheci o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. O
lugar impressiona não pelos túmulos , que, apesar de serem obras de arte
instigantes, seriam apenas mais um conjunto de arte cemiterial, mas pelo fato
de que os caixões permanecem expostos aos visitantes. Não há sepultamento e,
mesmo quando os ataúdes são postos no subsolo dos mausoléus, as urnas não são cercadas
com mármores, nem enterradas, como no Brasil. Pelas grades das capelas
funerárias, vê-se a madeira dos caixões, e não há cheiro exalando de dentro
deles, apenas teias de aranhas cobrem os esquifes robustos de madeira negra.
Olhar para dentro dos mausoléus na Recoleta é como olhar para dentro dos
quartos de dormir e se arriscar a ver os mortos deitados (ou sentados) em suas
camas.
Subscribe to:
Posts (Atom)