Friday, October 04, 2024

O dia de ontem

 


Naquela manhã, o pedreiro Estevão se dirigiu à padaria da Vila e pediu um pedaço de bolo.

Assim que o balconista o atendeu, Estevão recordou-se do dia anterior: desaforos que tinha dito ali mesmo no estabelecimento, na praça, em frente à subprefeitura e na porta da igreja. Na memória, fazia apenas um dia que ele tinha desmascarado os adúlteros do amor e do aguardente aguado, denunciado os maus patrões, escancarado a corrupção dos ricos e arrasado o mau comportamento dos religiosos e a hipocrisia geral. Embora seus brados tivessem estarrecido a comunidade, a princípio, logo as pessoas decidiram mudar e expressaram uma imensa gratidão pelo que ouviram.

Os empregados do comércio, que trabalhavam de domingo a domingo sem folga e sem salário, passaram a ter estatuto de direitos, os homens e mulheres estabeleceram relações mais sinceras, e até mesmo os comerciantes baixaram os preços, e a fartura foi partilhada. A coisa tinha evoluído para uma felicidade plena, e na noite houvera um grande banquete de todas as classes, que comemoraram uma harmonia sublime. Aquele dia ficou conhecido como o Dia da Revolução, em que a verdade rachou as pedras e fez brotar delas, que afinal não eram pedras, mas o rosto das pessoas, uma felicidade tremenda.

Isso é o que Estevão lembrava. Mas quando ele mordeu o bolo, o balconista reclamou do novo dia de rotina e negou todas as coisas que o cliente mencionava sobre um ontem glorioso.

— Nós nunca fomos felizes. As coisas são como sempre, eu com as mãos no vaso sanitário e depois na massa do pão, pingando suor. É disso que a vida é feita, e para sempre assim será — alegou o moço da padaria, com uma cara muito infeliz, de uma tristeza temível, como se houvesse escutado do outro o mais destampado absurdo.

Os dois teriam ficado naquele desentendimento por mais tempo, não houvesse passado ali um chofer de praça para um café requentado  e uma dona de casa que procurava broas dormidas. Aquelas pessoas se revoltaram quando Estevão falou de um dia único de alegria, pois parecia-lhes uma blasfêmia, uma prece pelo demônio. Então Estevão se resignou calado, acreditando que a sua memória estava embriagada de ilusão e loucura.

— É impossível sermos livres — disse a dona de casa. 

Já o chofer de praça acompanhou Estêvão numa volta a pé pelas redondezas, para que o homem testasse a sua hipótese com alguns transeuntes, e estes também se horrorizaram com a ideia de alguma mudança.

Mas o pedreiro ainda permaneceu desconfiado, porque eram evidentes os sinais da revolução havida, as cascas das frutas devoradas no banquete, a pilha de garrafas esvaziadas, os muros pintados com frases de amor e de fé, que um funcionário público se encarregava de caiar às pressas.

— Nesta vila, nosso padrão está assegurado por leis muito boas e rígidas e imutáveis! — Bradou o chofer. — Cada um conhece o seu papel, e aproveita uma vida eterna tão pacífica quanto essa praça, onde os únicos pássaros são pardais, e pardais não cantam.

Naquele momento, Estêvão, que era o mais pobre operário da localidade, viu-se novamente no anteontem (o dia de ontem estava definitivamente perdido), obrigado a procurar serviços por centavos. 

E entendeu que a cidade inteira, até o bolo que  tinha devorado no desjejum, era uma frágil nuvem de opinião.

Monday, September 30, 2024

Homens e galinhas


Publicado no Jornal A Tarde de 29/9/2024


No interior está jorrando gasolina.

Venho passar alguns dias no sertão e noto as filas de motos e carros serpenteando os postos de combustível, os condutores com tickets na mão.

Toda vez que há um comício nos povoados, os candidatos à próxima eleição abastecem os veículos dos correligionários. Também sobram cupons para penetras que vão em todas as festas eleitorais e para quem se finge de distraído.

Há anos vejo essas cenas, e também o efeito que tem, na zona rural, a chegada das caravanas com os motores rosnando, aparelhagens de som aos berros, buzinas, fogos trovejando e uma multidão de estranhos que viaja de graça. Nestes dias no interior fica mais claro o significado: Aí vem o candidato a rei, e ele pode ser rei porque tem dinheiro, tem amigos, mulheres e homens bem vestidos e alegres como ele.

O candidato a rei traz uma nova era de fartura, porque na eleição todos temos os privilégios de candidatos a rei. Todos somos o candidato a rei, felizes e abastecidos e abraçados e embriagados. Depois, não somos nada.

Também aqui, no interior, o mototáxi Ariel, que sempre me transporta pelas roças, me conta que no povoado da Barreira, onde o rio Itapicuru é mais caudaloso, pescaram um peixe de 40 quilos. Pescaram não, abateram a tiros, e depois comeram. “O bicho era do tamanho de um carneiro. Não tinha quem pegasse com tarrafa nem anzol”, relata o piloto, que se pela de medo de banho de rio ou de lagoa, apesar de ter nome de sereia. “Está vendo porque eu corro de água?” diz ele, fazendo troça.

No Rancho do Regalo, meu refúgio, tento escrever a história de um homem que afugenta fantasmas a tiros. A história é só isso, inspirada num ritual religioso de um povo distante, que vi numa enciclopédia. Escrevo que há um casarão e é noite. Um homem herda o imóvel, chega para habitá-lo e, impaciente com os ruídos, fuzila todos os cômodos. Dane-se as dívidas das almas penadas, que elas chorem em outro lugar.

De repente, paro de escrever e reparo nas galinhas que devastam o terreiro do rancho. Elas cavoucam o chão e retiram minhocas e raízes, detonam as plantas e trucidam gafanhotos e outros insetos. Vira tudo um grande areal. As formigas, que imperavam ali, agora só abrem furos tímidos na área ladrilhada.

Na hora da comida, é um Deus nos acuda. As galinhas furtam das suas parceiras e correm para papar escondidas. Outras vezes, quando a fome aperta, sugam os ovos de suas vizinhas e devoram até as cascas.

Gosto de observá-las porque parecem humanas, na rudez, na voracidade, na inconsequência, na melancolia. Imagino que em alguma época da história, no passado ou no futuro, as galinhas disputam com os homens o domínio do mundo.

Atualmente, os homens as almoçam. E fazem filas para o combustível, cheios de animação.

No interior dá para ver melhor o mundo, os predadores e suas presas.