(Publicado no jornal A Tarde de 14.7.2024)
Desperto com o celular berrando ao pé da cama, o galo eletrônico. Levanto ainda zonzo, agradecendo pelo novo dia, e me arrasto até a pia para o ritual de reconstrução do rosto. Do banheiro, ouço mais galos eletrônicos berrando nos apartamentos vizinhos, tecendo a manhã.
Saio correndo, embora seja cedo. Tenho sempre pressa de chegar logo, de adiantar os eventos, como se pudesse obter um latifúndio de tempo.
Na primeira rua a atravessar, o sinal está fechado para os pedestres, mas um casal de mãos dadas se atira entre os automóveis, correndo, desviando, numa loteria do atropelo. Quando chega à calçada do outro lado, o casal pára, se abraça e volta a andar muito lento, rindo da tola correria recente.
Na segunda rua a atravessar, a pista vazia, um entregador de frutas dos mercados do Centro deixa cair do seu carrinho uma caixa de laranjas. A madeira da caixa se arrebenta e as frutas douradas correm brilhantes sobre o asfalto negro, como estrelas que refletem a luz matinal. Um gari começa a catar aquelas jóias e pede em nome de Deus que os passantes também ajudem o entregador. É assim que se cria uma igreja útil.
No ponto de ônibus, a mesma condição, a mesma hora, os mesmos pensamentos chegam. O coletivo arrasta rápido e quase joga na rua uma idosa que tenta pegar o transporte. A velha sobe tremendo, no carro que também treme, e resmunga contra o motorista, que sequer presta atenção. Na verdade, o motorista e o cobrador estão distraídos, cercados de moças jovens, com fardas colegiais, que iludem os marmanjos com gracinhas e manhas. “Raparigas do Cão”, reclama a idosa, “Tomara que as famílias descubram tudo!”.
Desço do ônibus e passo, todos os dias, em frente a dois grandes hospitais públicos que recebem ambulâncias do interior. É gente que vem para exames simples, ou para tratamentos continuados ou casos graves de urgência. Os parentes aguardam os resultados do lado de fora das casas de saúde, com olhares perdidos, merendando entre os camelôs de lanches. Tenho sempre medo de encontrar por ali algum conhecido da minha cidade do sertão, alguém que esteja na expectativa de um milagre, a mais humilde, tensa e silenciosa expectativa. Também sinto alguma culpa porque raramente os encontro, e assim os ajudo pouco ou quase nada, não lhes ensino o que aprendi sobre a metrópole, coisas que todo interiorano precisa saber.
Estou chegando para mais um dia de trabalho que começa. No jardim da empresa uma colega veterana está com as mãos e os olhos virados para o céu, parece que ora, numa prece breve. Ao lado dela, um vigilante hasteia bandeiras. Os outros funcionários aparecem aos poucos, debochando uns dos outros, em voz alta, pelas derrotas do futebol da noite anterior.
Penso quanto tempo as coisas permanecerão do jeito que são, com jardins, bandeiras coloridas e futebol, até que a tecnologia e soluções mirabolantes venham estragar o que resta, oferecendo ilusórios latifúndios de tempo. Pergunto-me quantas vezes é preciso orar.
E sigo a rotina ouvindo o cocoricó, o latido, o miado, o coaxar, o trinado, o mugido, o uivar dos celulares nas mãos dos colegas, na fila do restaurante, na rua.
O dia vai passando, a tarde vem e pela noite eu espero. E vou catando risos e gestos estabanados de gente viva, gente que faz coisas desastradas ou sagradas que a máquina jamais imita.
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