Friday, July 21, 2017

Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais


Pronunciamento durante o VIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais - ABEC - Florianópolis, 19 de julho de 2017 – 16h50 min







Prezados,

Minha intenção aqui é resumir a trajetória da composição do meu livro Céus e Terra, que foi lançado em novembro de 2016 e que foi editado justamente por ter ganho o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Nacional do Comércio daquele ano na categoria Romance.

O Prêmio SESC recebe para análise originais que estão cobertos por pseudônimos, ou seja, os candidatos à premiação não são conhecidos da comissão julgadora até a divulgação do resultado. Na edição de 2016 foram recebidas 794 candidaturas somente na categoria Romance e isso é muito relevante porque atesta mais uma vez a validade do certame. Além disso o fato é significativo para nós por ser vencedor uma obra cuja temática está enredada na pauta do presente encontro.

Para ser mais claro, devo apresentar-lhes o que chamo de “A carne do livro”, ou seja, a história que ele narra. Céus e Terra fala de um menino pobre do sertão baiano apelidado de Galego, órfão, pobre, sem instrução e mesmo sem educação religiosa, serviçal de uma fazenda, que é convocado para ajudar a salvar um homem crucificado. Os dois acabam morrendo logo na primeira página. Galego sequer seria enterrado num cemitério (teria sepultura na fazenda em que tombou) não fosse o fato de ter morrido junto com um adulto. Após a inumação, e sem ter noção do lugar para onde deve ir, o garoto de 12 anos vaga como uma espécie de fantasma, sem sentir dor por seu próprio falecimento, e passa a acompanhar a rotina da pequena cidade onde vivia. Aos poucos, ele passa a compreender os símbolos, medos e tradições locais em torno da morte, enquanto procura montar um roteiro de transcendência.

Para mim, o Prêmio Sesc trouxe dupla felicidade, tanto por contemplar a literatura ficcional quanto por, de certa forma, reconhecer a pesquisa que eu vinha realizando, e que mais à frente devo detalhar.

Não é mistério que os mais criativos escritores podem elaborar suas obras a partir de episódios reais. De fato, algumas mortes, como a de meu pai e de amigos na infância influenciaram toda a minha biografia. De fato, passei a minha juventude intrigado com a temática da morte e seus símbolos, caixões e cemitérios, às vezes com algum susto, às vezes somente com estranhamento, mas também com alumbramento estético.

Em certa etapa eu, que sou jornalista, resolvi encetar o projeto de fazer um mestrado em Antropologia e me meti a estudar o assunto que mais me amedrontava e fascinava, a morte. Antes mesmo da seleção e para propor um projeto de estudo consistente, comecei a bater-me com a literatura citada comumente como referência, como é o caso de Phillippe Ariés, de certa forma contestado entre os antropólogos. Também segui por Kubler-Ross, Jean Ziegler, Juana Elbéin dos Santos (Os Iorubás e a Morte), Edgar Morin, João José Reis, Roberto da Matta e Maria Aparecida Vilaça (Fazendo corpos, a morte entre os índios, inclusive a antropofagia), entre diversas fontes, além daquelas do instrumental teórico da disciplina antropológica.

Também, como referencial de campo, acompanhei durante meses o Apostolado das Almas, grupo de leigos, e a Pastoral da Esperança, equipe de diáconos católicos, que atuam em sessões de oração e celebrações (encomendações, no caso dos diáconos) no Cemitério do Campo Santo em Salvador.

Ao fim de 2008, no entanto, eu já tinha convertido o meu propósito para a redação de um romance que abrangesse o que eu capturei nas pesquisas, inclusive ouvindo fontes em diversas cidades e visitas a outros cemitérios, e também elementos de minha trajetória pessoal, embora não o quisesse autobiográfico. Busquei a partir daí uma solução poética, não mais científica, para os desafios que o tema da morte impõe. E para citar o tamanho do desafio, coloco aqui o que inferi a partir da leitura do livro Tabu da Morte, do sociólogo José Carlos Rodrigues: A morte é um evento tão sem sentido que ameaça o sentido de todos os outros eventos.

Foi de fato uma surpresa que este trabalho tenha superado os preconceitos que sabemos existir a respeito do assunto, que tenha conquistado o apreço dos leitores e seja hoje descrito como um livro “leve” e “suave” enquanto carrega no seu roteiro duas mortes violentas, a insinuação de um suicídio e um desaparecimento. Já no prefácio aviso que a obra foi feita para “enganar a morte”, e parece mesmo que logrei algum êxito, já que algumas resenhas críticas o consideraram uma abordagem não amargurada.

O meu objetivo, ao propor a apresentação neste encontro, é confirmar a sua filiação à temática órfica, e também dizer como a literatura ficcional pode contribuir para ampliar o debate sobre a dispersão, sobre vitória da entropia que a morte configura. Ainda, como a arte pode descrever os rituais religiosos e místicos em sua complexidade, além de falar sobre a ânsia de permanência que a certeza do fim nos traz.

Devo dizer que, ao relacionarmos história, cultura e cemitérios, nunca estamos fazendo o estudo de um passado diacrônico, mas a arqueologia de um passado que se impõe como permanência, na sincronia com nossa época. Não só os campos santos, mas costumes que tive a oportunidade de contemplar como a Festa de Muertos no México e a devoção às almas do purgatório, em Nápolis, dizem dessa vontade de superar a finitude.

Gostaria de concluir propondo dois pontos para a reflexão, que imagino relacionados ao propósito desse encontro, desejando que contemos mais e mais com pesquisadores que os enfrentem. O primeiro deles é o transumanismo, a tendência científica que trata justamente da permanência, um mundo em que a tecnologia se aproxima cada vez mais do registro total da consciência, inclusive usando vídeos, áudios, fotografias e inteligência artificial para presentificar os falecidos. O transumanismo, alías, tem outras proposições, inclusive suprimir a morte com manipulação biológica e genética, e carrega implicações éticas que já estão em debate pela forma como são manipuladas econômica e politicamente.

O outro ponto é a prática do Urban Exploration, ou Exploração Urbana, ou Urbex, que vem a ser uma espécie de hobby no qual grupos de amigos visitam lugares abandonados, casas antigas, hospitais, cidades que foram deixadas para trás, realizando uma arqueologia cemiterial fora dos cemitérios, observando traços materiais e colhendo sensações que ficaram retidas na cortina do tempo. Esses grupos têm deixado na internet um enorme volume de registros das suas incursões, revelando que é possível conviver com a morbidade e a melancolia e mesmo atravessá-las.

A tarefa é enorme e multifacetada, exigindo versatilidade de todos os colaboradores da ABEC. Mas este é o nosso desafio, que empresta algum sentido frente ao que parece ter sentido nenhum.

Muito obrigado.

Franklin Carvalho


VIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais – ABEC
Auditório da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), de 17 a 20/7/2017

Presidente da ABEC: Profª Clarissa Grassi
Presenças destacadas: Professoras Maria Elízia Borges, Cláudia Rodrigues, Elisiana Trilha Castro e Fabiana Fabiana Comerlato
Programação completa: http://estudoscemiteriais.com.br/index.php/viii-encontro-nacional-abec/