Friday, July 27, 2018

Entrevista ao jornal A Tarde - Flip 2018

Publico abaixo a íntegra da entrevista que dei ao repórter Eugênio Afonso Araújo Santos, do jornal A Tarde, falando sobre a minha participação na Flip 2018. O jornal divulgou algumas respostas em matéria a respeito do evento no dia 25/5/2018. No entanto, achei a entrevista interessante também em outros pontos. 

Você participa da mesa 17, “De Malassombros”, no domingo. De que trata essa mesa? Como vai ser sua participação?


Vou discutir com a folclorista Thereza Maia, que pesquisou encantados e assombrações de Paraty e do Brasil, sobre a transmissão dessas tradições, oralmente e na literatura. Eu, com meus poucos recursos, escrevi um romance elaborado a partir dos temores e ritos em torno da morte. Continuo pesquisando essa temática porque acho que, na relação com o além, com o sagrado, nós brasileiros mantemos algumas artimanhas e fórmulas da vida cotidiana, da política etc. Quero falar, particularmente, sobre como fazer o leitor se reconhecer nessa “con-tradição”. 


. Você ainda é servidor público ou somente escritor?


Sou servidor público também, trabalhando com jornalismo e edição de textos, o que me permite lidar com duas exigências diversas da narrativa. O jornalismo é muito dinâmico, influenciado pelo dia a dia, inclusive na linguagem e abordagem dos temas. Por isso prefiro escrever ficção à mão, para que seja uma experiência radicalmente à parte, transcendental, outra interpretação do mundo.


. Esta é a primeira vez que participa da Flip?


A primeira vez foi em 2007, fui conhecer a festa e ver Amós Oz, que me interessava muito. Voltei em 2016, já como ganhador do Prêmio Sesc de Literatura, mas sem o romance editado, para participar de um encontro na Casa do Sesc com o escritor pernambucano Mário Rodrigues, que recebeu a mesma premiação, mas na categoria Contos. Em 2017 apresentei Céus e Terra num café literário também promovido pelo Sesc, debatendo com a poetisa Cida pedrosa, outra pernambucana, sobre sertão e novas literaturas.


. Qual a importância da Festa para os escritores e o público em geral dentro do cenário da literatura no país?


A Flip é uma referência para outros eventos literários e para o próprio mercado, porque ao longo da sua história se articulou para responder demandas da sociedade, como a representação das mulheres, dos autores negros e das várias tendências da literatura. À medida que uma das maiores mobilizações, que tem a participação de personalidades significativas e ampla repercussão na imprensa, traz inovações, estimula a diversidade. Além da programação oficial existem muitos eventos que ocorrem paralelamente em Paraty, organizados por instituições nacionais, jornais, editoras de vários portes, enfim, é uma praça de artes que também atrai músicos, performancers etc. 


. O que quer a sua literatura? O sertão nordestino continua presente nela?


O sertão é uma condição da alma, é dentro da gente, como já disse Guimarães Rosa. Para mim é um ritmo, espiritual e cardíaco. A respiração tem esse compasso de um monocórdio. É uma batida seca, sem excessos, mas viva. Lá na minha terra, Araci, que cito no Céus e Terra, fiz uma casa num lugar quase ermo, com quintal grande e algumas plantas. Não canso de ficar lá à noite, tudo apagado, olhando o mato e o silêncio – no sertão, dá para ver o silêncio passando, de tão denso que ele é. Vejo também a barra do horizonte e sei de onde vem o vento do mar, vem fresco. Levo algumas indagações do que estou escrevendo agora, algo sobre essa contemporaneidade desajuizada, urbana, quase uma distopia, e o sertão me aconselha, me desafoga.


. O que muda na vida de um escritor depois de ter um livro premiado?


O interessante do Prêmio Sesc é que ele coloca o vencedor no mercado editorial já pela publicação por uma grande editora, a Record. Então você entra na malha de distribuição e também é incluído na agenda de vários eventos, também graças à premiação. Isso amplia a sua percepção sobre os desafios que os artistas da área enfrentam, porque a literatura é muito inusitada, pode trazer decepções de onde se espera muito, e reconhecimento por parte de desconhecidos, de pessoas e instituições distantes. A literatura, com o perdão das más rimas, nos aproxima da amargura, mas também da cura. A inspiração, se você ainda a tem e a estimula, te fortalece para enfrentar as fortes frustações políticas, inclusive essa sandice neoconservadora e neomoralista atual. Nenhum autor está imune à crise do mercado editorial, além de outras, mas precisamos continuar criando.


. O que você acha da obra de Hilda Hilst, a homenageada da festa?


Ela era intensa na entrega, na doação, na coragem. Essa postura de procurar mover o leitor, de balançá-lo, mesmo que precisasse modificar totalmente o seu texto, mesmo que a condenassem por romper os padrões, é rara. Mesmo no tratamento de temas eróticos, embora desbocada, não abriu mão da qualidade narrativa nem da composição de personagens, principalmente isso. Acredito que o desejo mesmo era de usar todas as ferramentas, e ela as tinha, buscando interação com os leitores, sem meias palavras ou falsos pudores. Rejeitar qualquer solenidade atribuída aos escritores, aos editores. Hilda queria se comunicar com as possíveis formas de vida, até com os animais, os óvnis, e fez experiências domésticas tentando gravar sons do além. Aliás, acho que a Flip acaba refletindo o lado místico da homenageada levando escritores como o congolês Alain Mabanckou, e a russa Liudmila Petruschévskaia, que aproveitam narrativas da mitologia e da espiritualidade de suas terras nas suas obras. É um resgate desse universo simbólico, que também me interessa.


. Você acredita que há muita diferença entre a literatura que se produz no Nordeste e a do Sul e Sudeste do país?


Acho que existem algumas tendências que não são necessariamente regionais, mas algo do tipo “escolas”, ou influências. As oficinas de escrita promovidas por escritores mais conhecidos, por exemplo, a literatura que surge de comunidades periféricas e a autoficção, além de outros, formam gerações que já se consolidam. A diferença regional é o acesso à mídia, às editoras, ao chamado buzz, ou seja, à repercussão informal, das redes sociais, pois existem polos de distribuição da informação, mesmo em tempos de internet.


Tuesday, July 24, 2018

Resenha de Céus e Terra na revista Sigila



Recebi hoje de Lisboa um exemplar da Sigila, "Revista transdisciplinar luso-francesa sobre o segredo", com uma resenha sobre o meu romance Céus e Terra feita pela escritora e pianista Gilda Oswaldo Cruz, artista fantástica, brasileira, que reside em Portugal. Ela me enviou também, por e-mail, o texto, publicado em francês, e a tradução (abaixo). O link para a Sigila na internet (site ainda sem a nova edição) é http://www.sigila.msh-paris.fr/


Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages


Quem viu os filmes de Glauber Rocha se lembrará das fisionomias castigadas dos protagonistas, sertanejos expostos à rudeza da existência no interior do Nordeste brasileiro, com a sua galeria de rostos cujos traços parecem expressar uma irredutível individualidade.

É com um semelhante olhar, tão de antropólogo como de poeta, que Franklin Carvalho nos leva neste seu primeiro romance a assistir a cenas de vida e de morte entre os habitantes de Araci, pequeníssima vila do interior da Bahia, terra natal do autor.

O leitor é logo confrontado com uma frase inicial de rara contundência: “Quando eu tinha doze anos, fui ajudar a tirar um homem da cruz. Encontrei-o morto e acabei morrendo também.” E explica, mais adiante: “Cortaram-me no ano de 1974, nos fundos da fazenda Guarani, de uma lapada só de facão. Que eu servisse de exemplo a quem anda desavisado no mato. A cabeça rolou para bem perto, sem grandes invenções, uma criança miúda, mestiço de índio, na beira seca do rio do Sangue” (p.9/10)

Apesar da violência dos acontecimentos - dois assassinatos, um suicídio apenas insinuado e a enigmática desaparição de uma personagem - tudo é narrado por Galego, o menino decapitado, com uma assombrosa ausência de ênfase. Tudo ele conta uma leveza inebriante, como que denotando o seu amor fati de cunho religioso ou filosófico, o que confere ao romance uma altura inusitada nas letras brasileiras de hoje. As injustiças na vida do sertão são enunciadas pelo narrador menino com uma naturalidade não enfática que lhes presta ainda maior dramatismo.

Ceifaram-lhe a cabeça, diz o menino, “por susto”, mas o assassino arrependido terá o perdão dos seus concidadãos. Sem resquício de autopiedade, Galego relembra a sua existência de menino dado pelos pais pobres “a criar” por uma família de poderosos – trato comum no vasto interior brasileiro– que o converte numa espécie de escravo encarregado na fazenda dos trabalhos mais ásperos, e onde lhe é negado por vezes até o alimento.

A grande vantagem ficcional de ver o mundo pelo lado dos mortos, Galego logo descobre– além de “ficar sem nome, sem fome, sem horas” (p.189) –, é ver sem ser visto.

Há também a sua nova faculdade de deslocar-se velozmente pelo espaço. Com seu olhar curioso e empático, o menino sem cabeça descreve a vida e os costumes dos cidadãos de Araci, oferecendo-nos um panorama sinóptico dos seus modos de trabalhar, amar, morar, matar, comer e beber, ajudar o próximo, reeerguer a vida, suportar os males da vida, deslumbrar-se com a fugaz passagem de um circo e, com grande destaque, acreditar fortemente no sagrado com o sincretismo religioso dos sertanejos brasileiros, e não só deles. São tão efusivamente católicos na celebração da Semana Santa como devotos dos terreiros de candomblé, dos orixás e dos curadores (o autor evita o termo judicativo de curandeiro), a quem recorrem sempre em caso de necessidade.

Fresca a sua decapitação, ainda assim o menino morto precisa comer, mas só quando os vivos o fazem, sendo seu único alimento as pipocas, e também beber água, ainda pela boca dos vivos. Sua existência post-mortem obedece a um período de gestação ao invés, ao longo dos nove meses que dão título aos capítulos, e à medida que passa o tempo em contagem regressiva para a sua fusão final com o todo, ele observa o que lhe acontece:

“aí me ocorreu pela primeira vez a sensação de estar cercado de terra úmida. (…) Poderia ser mesmo que eu estivesse sendo devorado pela terra, e aquilo não me assustava em nada, nem me ameaçava. Poderia ser que o caixão barato em que me puseram, forrado apenas por um filó, tivesse se desmanchado e a minha pele fosse penetrada pela sombra debaixo de sete palmos” (p.108 e 109). “Por isso, fui me deixando sentir o toque da terra, e não era mais eu quem estava sendo absorvido por ela, mas me expandia, numa sensação deliciosa de dominar a terra que me invadia. Era como se nos uníssemos, desfazendo-nos em húmus, inumando. Então eu aumentava para ser toda a terra em cima do meu corpo. Tão satisfeito como alguém que se espreguiça dentro da maciez da polpa de um pêssego, ou de um cupuaçu, ou de uma manga, ou quem rompe o hímen das águas para pôr-se de pé num lago. “ (p.109)

Não seria apropriado aproximar ao realismo mágico este relato passado em terra sertaneja tão fértil em crenças no sobrenatural. Lá a vida é cotidianamente vivida como tendo parte contígua com o sagrado. Celebremos, sobretudo, a reinvenção poética da linguagem neste livro de Franklin Carvalho, que lhe valeu no Brasil em 2017 dois prêmios literários importantes, o do SESC e o São Paulo, na categoria romance de estreia.

Gilda Oswaldo Cruz


Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages


Ceux qui ont vu les films de Glauber Rocha se souviendront des physionomies malmenées des protagonistes, ces paysans exposés à une rude existence à l’intérieur du Nord-Est brésilien, avec une suite de visages donts les traits semblent exprimer une irréductible individualité. C’est d’un regard semblable, si anthropologique que poétique, que Franklin Carvalho nous présente tout au long de ce roman des scènes de vie et mort parmi les habitants d’Araci, une petite bourgade, qui est la ville d’origine de l’auteur, à l’intérieur de Bahia.

Le lecteur est confronté d’emblée à une phrase initiale d’un grand impact: «Quand j’avais douze ans j’ai aidé à libérer de la croix un tel homme. Je l’ai trouvé mort et j’ai fini par mourir moi-même.» Et il poursuit: «On m’a tranché en l’an 1974, au fond de la fazenda Guarani, d’un seul coup de couteau. Pour que je servisse d’exemple à quiconque marcherait insouciant dans la brousse. Ma tête roula jusqu’à tout près de là sans grandes inventions, un enfant chétif, métis d’indien, sur la rive sèche du fleuve du Sang.»(p.9/10)

Malgré la violence des événements – deux meurtres, un suicide déguisé et une disparition – tout est rapporté par Galego, l’enfant décapité, avec une surprenante absence d’emphase. Il raconte tout cela d’une griserie flottante, comme en reflétant son amor fati à empreinte religieuse ou philosophique, ce qui accorde au roman sa haute portée parmi les lettres brésilienes d’aujourd’hui. Les injustices systématiques du pays sont enoncées par l’enfant narrateur, d’un naturel non appuyé qui leur prête un fort dramatisme.

On lui a tranché la tête «dans l’effroi», mais l’assassin repenti sera pardonné par ses concitoyens. Sans un brin de commisération, Galego évoque son existence d’enfant livré par ses parents pauvres à une famille de puissants afin d’y être élevé – un règlement assez fréquent dans le vaste Brésil profond – ce qui le change en une sorte d’esclave chargé des travaux les plus ardus de la fazenda, où on lui refuse jusqu’à la nourriture.

Le grand avantage fictionnel de regarder le monde du côté des morts, Galego s’en rend compte – au delà de «demeurer sans nom, sans faim, sans horaire» (p.189) – est de voir sans être vu. Il y gagne aussi sa nouvelle faculté de se déplacer à toute vitesse dans l’espace. De son regard curieux et empathique, l’enfant sans tête décrit la vie et les moeurs des citoyens d’Araci, en nous offrant un panorama synoptique de leur façon de travailler, d’habiter, manger et boire, d’aider leur prochain, redresser leur vie, supporter les maux du quotidien, se laisser éblouir lors du passage fugace d’un cirque et, avec assez de relief, de croire vivement au sacré, dans cet esprit de syncrétisme religieux caractéristique des paysans – et pas seulement eux! – brésiliens. Ils sont si chaleureusement catholiques lors de la célébration de la Semaine Sainte que dévots des arènes de candomblé, des orixás et des guérisseurs (l’auteur esquive le terme judiciaire de sorciers).

Si sa décapitation est encore fraîche, l’enfant a toujours besoin de manger, mais uniquement quand les vivants le font, son seul aliment étant le pop-corn, et de boire de l’eau, toujours par la bouche des vivants. Son existence post-mortem obéit à une période de gestation à l’envers, au long des neuf mois qui donnent titre aux chapitres – et, à mesure que le temps s’écoule à rebours vers sa fusion finale avec le tout, il observe ce qui lui arrive: «là, la sensation m’est venue pour la première fois d’être entouré de terre humide. (…) Peut-être même que j’étais en train d’être dévoré par la terre, pourtant ça ne m’effrayait pas du tout, ni ne me menaçait. Il se peut que le cercueil bon marché où l’on m’a fourré, uniquement doublé de tulle, se soit fragmenté, et que ma peau ait été pénetrée par l’ombre, au dessous des sept empans.»(pp.108-9). «À cause de ça je me suis laissé faire juqu’à éprouver le contact de la terre, et ce n’était plus moi qui étais en train d’en être absorbé, tout en me gonflant, dans une sensation délicieuse de dominer la terre qui m’envahissait. C’était comme si on fusionnait, pour se défaire en humus, en inhumant. Alors je gonflais, pour répondre à toute la terre au-dessus de mon corps. J’étais aussi satisfait que quelqu’un qui s’étire à l’intérieur de la pulpe d’une pêche, d’un cupuaçu, ou d’une mangue, ou de quiconque rompt l’hymen des eaux pour se tenir debout dans un lac.» (p.109)

Il ne serait pas adéquat de rapprocher ce récit du réalisme magique, puisqu’il concerne la terre du sertão, si fertile en croyances au surnaturel: la réalité est déjà assez magique pour qu’elle ait besoin de dispositifs littéraires exquis. Célébrons donc surtout la réinvention poétique du langage dans ce livre de Franklin Carvalho, signalée au Brésil en 2017 par deux prix importants qui lui ont été décernés – celui du SESC, et le prix São Paulo dans la catégorie du roman débutant.

Gilda OSWALDO CRUZ