Thursday, February 28, 2013


O indivíduo fora do indivíduo



Numa época de reprodutividade e de registros (vídeos, fotos, arquivos diversos), é possível “ter” as pessoas, em maior ou menor grau, mesmo após o seu falecimento, e essa possibilidade pode impactar as novas relações da sociedade com a morte. Na verdade, a tendência é que a qualidade de registros evolua até presentificar a memória ou mesmo criar dispositivos personificados, a tal ponto que seja viável "conversar" indefinidamente com falecidos.

O contato com a essência informativa de uma pessoa se aproxima cada vez mais do real com computadores que podem pensar, intuir e, em certa medida, sentir.Um computador que reflete como nós, pode nos refletir. Se ele especula conosco, pode nos espelhar. Não seria de estranhar que uma máquina potente, absolutamente esperta, com desempenho garantido por excelentes peças e manutenção, possa manter "presente" o cérebro de um grande líder empresarial, inclusive reproduzindo nuances de sua personalidade, até mesmo suas bravatas, instinto de negócios, compaixão, memória afetiva, humor etc.

A questão não é saber se esse processo se daria tão completamente [1], ou por essa via (novas tecnologias podem surgir). Apresento essa simulação “bizarra” apenas para apontar a presença do individuo fora do indivíduo, algo que já ocorre durante a vida de cada um, em medida ainda muito precária, é verdade.
Há, porém, algo além da limitação tecnológica, que deve ser considerado: a informação que uma pessoa produz e que manipula ainda não são a totalidade do contexto referente ao indivíduo. Além de articular a informação, o homem é ele também, em todos os momentos, fruto de uma conformação, contextualizada no espaço e no tempo.

O desempenho e o comportamento de um indivíduo, mesmo de um animal ou astro sideral, ou galáxia, é apenas a parte mais pobre da informação que está vinculada a qualquer ser. Se o empresário é honesto ou corrupto, se o planeta está agregado a um sistema solar ou se vaga independente, planemo, são apenas contingências que formatam esses objetos. Mas eu pretendo discutir outra questão, que diz respeito a uma identidade mais profunda de cada objeto, a sua origem.

O mais importante é a informação que dá origem a cada ser, e que pode ser descrita como a configuração de uma entropia que resultou no aparecimento de um aglomerado de substâncias.  Na essência, a questão é: como substâncias em movimento e em permanente choque constituíram aquele novo objeto e como, e até quando, esse sistema vai mantê-lo. Trata-se então de referenciar cada existência, como se estabelecêssemos coordenadas para uma curva na história e no espaço que unificou matéria e energia num indivíduo. Reconfigurar essa pessoa é restabelecer essa conjuntura.

O que isso significa, afinal? Que para se obter a mesma identidade somente reproduzindo o mesmo lance do acaso, mesmo encontro de forças, mesma configuração de datas e locais? Possivelmente, mas algo mais além. Se a existência de um indivíduo é engendrada por uma configuração de forças alheias a ele, não existem indivíduos, apenas existem essas forças que se articulam e se rearticulam de diversas maneiras. Não se deve perguntar ao universo onde estão as pessoas e objetos, mas que pessoa ou objeto ele está sendo.

Para cada momento e local, o universo está assumindo identidades várias que se sobrepõem. Mas é a mesma substância que se condensa no jogo de forças, e de choques, e que vai se movendo. Isso, a princípio, pode significar duas coisas distintas: ou não existem identidades (corpos, almas) individuais de pessoas e outros seres, mas apenas uma identidade do universo, manifesta de diferentes formas, ou as diferentes identidades se integram numa só para formar o universo. Ou ainda, ambas as coisas, fluindo e refluindo do maior espectro para o menor.

Uma vez que se percebe que a criação e o fim são exteriores à identidade[2], pode-se dizer que as diferenças de constituição, trajetória e a história de cada elemento seriam absolutamente desimportantes para o universo. No máximo, impactam cadeias imediatas de conseqüências.  A evolução animal, por exemplo, é uma cadeia de conseqüência no que se refere a cada espécie, geração após geração. A sucessão é outra conseqüência imediata em pequena escala, considerando-se indivíduos. A lacuna é até mais importante, como conseqüência indissociável de qualquer perecimento. E o que é lacuna?

Talvez a forma mais radical de lacuna ocorra no universo exterior: nuvens de gases se condensam pela gravidade, explodem e incendeiam na forma de estrelas. Depois queimam todo o seu combustível nuclear, até implodirem pela mesma gravidade. O fim de tudo isso é uma entidade colapsada em si próprio, mas que permanece referência no espaço e no tempo, deformando essas duas grandezas. Não é uma morte de todo o universo, mas de parte dele[3]. As lacunas deixadas pelas mortes de estrelas, assim como aquelas originadas pelo falecimento de indivíduos, merecem ser estudados, pelo seu impacto sobre o remanescente.

Eis porque um computador-simulação não pode ser comparado ao homem que tenta assemelhar, porque são diversos os valores entrópicos originais. Esse computador e esse homem não são apenas dois sujeitos distintos, mas duas manifestações distintas do mesmo universo, dois momentos ou duas “almas” diferentes. Cada um tem a sua trajetória, que envolve dois “acasos” distintos de choques, que dão origem e final próprios a cada um. Basta isso para garantir dois papéis diferentes no universo.



[1] Sobre registros e morte, atentar para novos túmulos em cemitérios que possuem documentários em vídeo, além de páginas na internet para mortos e os chamados cemitérios virtuais ou virtualização dos cemitérios– inclusive com  transmissão ao vivo de funerais.
Não creio que sejam produtos definitivos, nem a solução que deva perdurar, mas podem sinalizar a busca de uma alternativa. De qualquer forma, é preciso entender o caráter do registro, desde a relíquia, o fetichismo, a sacralização, o memorial etc. pode ser também que a abundância do registro (que é feito desde a pintura nas cavernas, passando pelas artes plásticas, fotografia etc) leve a uma banalização da memória. Aí, temos um caminho de via dupla, tanto a banalização do registro dispense a memória afetiva quanto a desnecessidade da memória (ou da saudade) redunde em desprezo pelo registro que sobeja.
[2] Ou seja, você faz o que quer, mas não existe porque quer, nem vai deixar de existir por querer....
[3] Como o tempo é deformado, ousaria dizer que a estrela dentro de um buraco negro pode voltar a brilhar na conjuntura (espaço-tempo) em que sempre existiu, realizando uma volta ao seu período de esplendor, num tempo todo seu.