Monday, September 30, 2024

Homens e galinhas


Publicado no Jornal A Tarde de 29/9/2024


No interior está jorrando gasolina.

Venho passar alguns dias no sertão e noto as filas de motos e carros serpenteando os postos de combustível, os condutores com tickets na mão.

Toda vez que há um comício nos povoados, os candidatos à próxima eleição abastecem os veículos dos correligionários. Também sobram cupons para penetras que vão em todas as festas eleitorais e para quem se finge de distraído.

Há anos vejo essas cenas, e também o efeito que tem, na zona rural, a chegada das caravanas com os motores rosnando, aparelhagens de som aos berros, buzinas, fogos trovejando e uma multidão de estranhos que viaja de graça. Nestes dias no interior fica mais claro o significado: Aí vem o candidato a rei, e ele pode ser rei porque tem dinheiro, tem amigos, mulheres e homens bem vestidos e alegres como ele.

O candidato a rei traz uma nova era de fartura, porque na eleição todos temos os privilégios de candidatos a rei. Todos somos o candidato a rei, felizes e abastecidos e abraçados e embriagados. Depois, não somos nada.

Também aqui, no interior, o mototáxi Ariel, que sempre me transporta pelas roças, me conta que no povoado da Barreira, onde o rio Itapicuru é mais caudaloso, pescaram um peixe de 40 quilos. Pescaram não, abateram a tiros, e depois comeram. “O bicho era do tamanho de um carneiro. Não tinha quem pegasse com tarrafa nem anzol”, relata o piloto, que se pela de medo de banho de rio ou de lagoa, apesar de ter nome de sereia. “Está vendo porque eu corro de água?” diz ele, fazendo troça.

No Rancho do Regalo, meu refúgio, tento escrever a história de um homem que afugenta fantasmas a tiros. A história é só isso, inspirada num ritual religioso de um povo distante, que vi numa enciclopédia. Escrevo que há um casarão e é noite. Um homem herda o imóvel, chega para habitá-lo e, impaciente com os ruídos, fuzila todos os cômodos. Dane-se as dívidas das almas penadas, que elas chorem em outro lugar.

De repente, paro de escrever e reparo nas galinhas que devastam o terreiro do rancho. Elas cavoucam o chão e retiram minhocas e raízes, detonam as plantas e trucidam gafanhotos e outros insetos. Vira tudo um grande areal. As formigas, que imperavam ali, agora só abrem furos tímidos na área ladrilhada.

Na hora da comida, é um Deus nos acuda. As galinhas furtam das suas parceiras e correm para papar escondidas. Outras vezes, quando a fome aperta, sugam os ovos de suas vizinhas e devoram até as cascas.

Gosto de observá-las porque parecem humanas, na rudez, na voracidade, na inconsequência, na melancolia. Imagino que em alguma época da história, no passado ou no futuro, as galinhas disputam com os homens o domínio do mundo.

Atualmente, os homens as almoçam. E fazem filas para o combustível, cheios de animação.

No interior dá para ver melhor o mundo, os predadores e suas presas.

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