Encontro
Wednesday, December 21, 2011
Tuesday, December 06, 2011
A Morte Líquida
Quando eu decidi pesquisar a morte como tema para um
mestrado em Antropologia, um das minhas primeiras ideias foi procurar um pai de
santo conhecido, pedir uma previsão sobre o sucesso da empreitada e um
salvo-conduto, enfim, um trabalho de abrir caminhos e de proteção contra as
forças (e os medos) relacionados aos cemitérios.
Talvez esse impulso tenha partido do fato de que eu já estava
visitando cemitérios, em busca de uma ideia para abordagem da questão da morte
(hoje, penso que a morte está muito além dos cemitérios e, às vezes, não está
neles).
Até então, eu lia as lápides buscando alguma coisa que
pudesse me inspirar, até o dia em que, em Serrinha, topei com uma cova no chão
coberta de flores novas, como se ali houvesse acontecido um sepultamento recente.
Lembro que fiquei desconcertado porque, naquele momento, a morte não era uma
questão teórica, distante, mas uma experiência dolorosa, que já tinha vivido na
perda de amigos e parentes, e que voltava quando imaginava o sepultamento de
outras pessoas. Ali, naquele túmulo, poderia haver um homem, ou mulher, com
seus laços de parentesco e afinidade, cujo falecimento provavelmente tinha
deixado uma lacuna e uma sensação no mínimo desconfortável entre os seus.
De repente, percebi que, para tratar do assunto, não bastariam os livros que já estava lendo, mas precisaria me deparar, e conviver, com situações que causavam terror e mesmo repugnância às pessoas, eu incluído. Também, estaria diante de desafios éticos, religiosos, de método e mesmo de recursos, e que levaria muito tempo para, ao menos, constituir minimamente um objeto que encarnasse um ponto válido de questionamento a respeito da compreensão humana da morte. O medo, que era a grande demanda então, e os desafios outros o exigiam, e de certa forma tiveram que ser respondidos de imediato.
No tocante à questão ética, tive muito claro que deveria
evitar as cores folclóricas ou religiosas, e mesmo o glamour com que a arte e a
indústria cultural recobrem o assunto.
Não estava muito claro, a princípio, mas depois de
fotografar alguns cemitérios, percebi que não havia na arte cemiterial nem em
qualquer outra expressão objetiva o ponto de partida para captar a visão humana
sobre o assunto. Ainda a respeito da abordagem artística, refutei logo de saída
o apelo gótico e outros constituídos na modernidade, como forma de trato dos
sentimentos fúnebres.
Já os desafios religiosos, que são os meus desafios
religiosos, eram muito maiores. Sou filho de família católica de cidade do
interior da Bahia, mas a minha mãe, mestiça, acabou visitando “casas de curador”, como assim eram denominadas, principalmente nos piores momentos
de doença de meu pai (depressão, que culminou em suicídio).
Se para mim, que a acompanhei ainda criança a estas casas,
além de seguir com ela e meus tios para missas na Igreja Católica, as
experiências religiosas eram muitas vezes tranquilas e agradáveis festas de
cores, o fato de não terem evitado uma morte provocou, em minha família, uma preocupação permanente. Temia-se o feitiço da rua, dos
outros, dos inimigos, que provocara o falecimento do pai – e que não tinha sido
consertado nem com feitiço “a favor”. Temia-se que o feitiço e entidades
desgovernadas, responsáveis pelos problemas cotidianos, causassem estragos ainda maiores.
Ao mesmo tempo em que se buscava reduzir os traumas dessa
experiência cumprindo as obrigações católicas, era preciso não descrer dos
espíritos, como ninguém na vizinhança, na cidade, ousava descrer. De certa
forma, em menor ou menor grau e salvo raras exceções, todos estavam
prontos para recorrer ao espiritismo, ao curandeirismo e mesmo às igrejas
pentecostais, que já começavam a aparecer na figura de missionários, de acordo
com as conveniências utilitárias.
Para completar, como leitor, e acompanhado de outros
leitores, meus primos também crianças, tinha o hábito de absorver conteúdo
religioso através dos livros católicos, e muito antigos, de minhas tias. Ainda,
uma pequena biblioteca de livros das testemunhas de Jeová, que minha mãe
adquiriu de pregadores visitadores, me dizia o contrário do que a rua ensinava:
era preciso abster-se de todos os contatos com os mortos, entender a
necromancia como prática demoníaca e sentir-se seguro contra qualquer moléstia
que, por ventura, imaginemos que os falecidos possam impingir.
O seu nome pesa mais que um viaduto
O seu nome pesa mais que um viaduto.
Você deverá pagar por todas as contas em seu nome, honrá-lo e defendê-lo, e se assegurar de que ele faz o mesmo por você. Onde você estiver, o seu nome estará, sendo dito pelas pessoas que o cercam, e, mesmo onde você não estiver, ele o precederá e permanecerá depois da sua saída. Você não conseguirá um pão sem dizê-lo, nem mulher, nem amigo, porque é seu nome que vai responder pelo que lhe dão.
Esse grande peso, que tende a esmagá-lo, que fala por você, é como uma casa enorme e velha, que você habita e que não lhe pertence. Você passa dias subindo e descendo centenas de escadas dentro do frágil imóvel de areia e sal, sempre prestes a se tornar ruína. À noite, dois cães mordem-se sob a sua cama. O primeiro cão é o passado do seu nome, o segundo, o futuro.
Há alguns dias, refletindo sobre os mortos, como ando muitas vezes refletindo a fim de escrever um novo romance, anotei que há três coisas a que os mortos não respondem: nome, fome e tempo. Não que eles estejam totalmente alheios a estes elementos, porque ainda são referidos por eles no imaginário dos viventes, mas estão desobrigados das suas necessidades como estes, os viventes, estão. Estão livres de prover, para a sua autonomia, para a sua existência, bens ou ações que mantenham a sua imagem no transcurso da atualidade.
Não interagem na representação social que é feita deles, portanto, não respondem pelo seu nome. Não têm necessidades, nem são sujeitos de ação para saciá-las, portanto, não têm fome. Também não agem no tempo, influenciando os fatores que são usados para contar a passagem dos dias, meses, anos, como nascimentos, casamentos, guerras, descobertas científicas, modas, envelhecimento etc. Os seus últimos fatos são as próprias mortes. Após isso, são sujeitos fora do tempo.
De todos os três elementos, aquele que é mais culturalmente forjado é justamente o nome, a representação social. Os conceitos de necessidade e de tempo também variem de sociedade para sociedade, de acordo com a cultura, no entanto, mesmo na natureza, sozinho, o homem tem necessidades e está suscetível ao envelhecimento biológico. Mas o nome, que é ao mesmo tempo representação da personalidade, do caráter, da individualidade, além de nascer da interação social, sempre transparece como um produto daqueles elementos pessoais (personalidade, caráter etc) e é tido coletivamente como resultado dos talentos de cada pessoa, exclusivamente.
Ocorre que a reputação, e essa é a melhor tradução do nome, não obstante atenda aos comandos dos sujeitos em sua interação social, é a casa enorme e velha que não pertence a quem a habita. O mais surpreendente na relação entre indivíduo e reputação, além da sujeição absurda do primeiro à segunda, além do alheamento e do descontrole do agente sobre a repercussão dos seus atos, é a diferença entre os tamanhos de um e de outro. A verdadeira luta existencial humana não é entre corpo e alma, mas entre o indivíduo e sua persona social, seu nome, que na verdade, vem a ser a alma cheia de pecados, pesada e difícil de carregar.
Vale ressaltar que o aspecto do tamanho e amplitude de um nome, seu alcance (este é o fator de consistência desse vetor), é uma constante que se entende cada vez mais manipulável pelo indivíduo, à medida que novas tecnologias prometem incrementar a supervisão e o controle da reputação pelo interessado. A promessa, no entanto, se esvai em novas demandas, já que um ato de personalidade no ambiente tecnológico, como em qualquer lugar social, gera novas obrigações de personalidade, aliás, constitui a personalidade também.
O nome vira perfil na internet, carregado de informações, fotografias e outros nomes que lhe são referência. Além da responsabilidade do relacionamento nas ruas, no trabalho, na família, o nome se expande neste espaço, impondo a necessidade da responsabilidade, ou, vendendo mais barato, a necessidade de responder. Toda vez que um individuo aparece identificado numa rede social na web, ele se expõe a receber os benefícios dessa exposição mas acrescenta 500 kg ao seu viaduto.Isso sem falar em outras formas eletrônicas de responsabilidade, como os cartões de crédito, contas, chips vinculados e mais documentos, que dão as exatas localização, dimensão e limites inescapáveis do indivíduo na sociedade.
Não devemos estranhar se a próxima revolução na historia da humanidade for a revolução pela salvaguarda do anonimato. Essa revolução, na verdade, já começou pelos hackers e está manifesta em atos de ocupação, que perserveram até a identificação (nomeação) de seus integrantes. Sem falar que o anonimato é o ambiente de onde surgem todos os atores de todas as revoluções. É lá também o lugar onde moram os criminosos e onde ocorrem as ações criminosas, que são, gostemos ou não, as mais básicas ações políticas, engendradas pelos extremos - nem sempre nos extremos - da sociedade.
Há muito tempo, anonimato é um valioso fator de mobilidade e desembaraço. Cada vez mais é uma ferramenta poderosa para quem sabe usá-la.
A morte líquida
Eu fiz aquele ritual e dormi dentro do terreiro, porque o pai de santo achava que não seria bom que eu voltasse para casa no mesmo dia. Lembro que, quando fomos despachar algumas comidas no mato, dois homens me levaram num carro até a Avenida Garibaldi e deixamos alguns bocapios perto do monumento a Clériston Andrade. Eles então disseram que deveríamos nos afastar sem olhar para trás, para não vermos as entidades se apropriando da oferta.
Participei também de outro ritual com música e dancei com os filhos de santo, não lembro se antes ou depois do despacho, e toda aquele movimentação foi feita só para mim, para as entidades que se relacionavam com os mortos. Com certeza, tinha Obaluaê entre eles, e creio que Xangô também.
Dormi serenamente naquela noite, embora num colchão muito fino, no chão de um quarto fechado. Acordei disposto no dia seguinte e fui me sentar numa cadeira na sala, onde fiquei observando algumas mulheres adormecidas. Uma delas acordou, porém, e se assombrou. Ela respirou fundo e disse:
- Meu Deus do céu, pensei que fosse uma pessoa morta.
Eu dei risada. Pensava que ela havia falado aquilo porque eu estava totalmente vestido de branco, mas a filha-de-santo, e as outras que foram acordando em seguida, me contaram que, durante a noite, tinham visto muito movimento de entidades dentro e fora do quarto onde eu dormia. Parece que avistaram vultos também e tiveram dificuldades para dormir, e passaram bastante tempo rezando credos e outras orações. Elas eram umas donas muito gentis, e todo o povo daquela casa também, e embora eu tenha ido trabalhar no dia seguinte, mais tarde, de noite, nos reunimos para um segundo ritual que completou aquele trabalho.
Depois, eu me senti mais seguro para pesquisar e comecei a ir ao cemitério do Campo Santo, que era próximo da faculdade de São Lázaro (UFBA), onde estava fazendo a matéria Antropologia da Morte. Naquela época, a Santa Casa de Misericórdia, entidade gestora do cemitério, mantinha um circuito de visitas guiadas e tinha uma loja de souvenires no local, e eu gostava de conversar com a funcionária que tomava conta de tudo. Certa tarde, vi passar um enterro e descobri que era da mãe do padre Lázaro, que rezava as missas na capela do cemitério. Fiquei intrigado, tentando entender como aquele homem estava fazendo o funeral de sua própria mãe.
Passei a freqüentar o Apostolado das Almas, que se reunia para rezar o Ofício das Almas todas as segundas-feiras, no Campo Santo. Me aproximei da comunidade da igreja e ajudei em muitas missas, com muitos padres diferentes, que sempre me trataram bem. Travei contato com os diáconos da Pastoral da Esperança, que fazem encomendações (últimas celebrações antes do sepultamento) e ajudei alguns deles, e também alguns padres em alguns velórios. Em alguns casos, lia um trecho da bíblia que o celebrante pedia e puxava, com ele, cantos mais conhecidos. Depois, em casa, tomava nota das coisas que tinha observado.
Havia velórios mais vazios, geralmente de idosos, e outros mais cheios, como foi o caso de um operário vítima de acidente de trabalho, quando o sindicato fretou um ônibus. Eu não vi, mas os funcionários do cemitério contavam que o ambiente ficava muito tumultuado no sepultamento de policiais e marginais envolvidos na guerra do tráfico que acontecia nos bairros do entorno do Campo Santo. A responsável pelo circuito de visitas guiadas me contava curiosidades sobre os jovens, religiosos de diversas matizes, e outros tipos que andavam por ali, além de falar das diferenças entre eles.
Não voltei depois ao terreiro de candomblé, mas, por meio de uma colega de trabalho, recebi um convite para conhecer o terreiro de Babá Egun, culto aos mortos na praia de Ponta d’Areia, na Ilha de Itaparica. Viajei de noite, assisti metade do ritual e voltei quando o dia ainda raiava, impressionado com a diferença nos procedimentos e na conduta agradável da comunidade. Antes dessa experiência, já tinha lido sobre aquele ritual (Jean Ziegler e Juana Elbéin dos Santos) e, na hora de ir embora, o motorista que nos conduziu até a praia onde tomaríamos o barco contou histórias de assombração na vila. O mais importante, naquele momento, foi ter achado uma pista para uma ligação entre as entidades e o Mandú, elemento que circulava mais abundantemente na cultura, principalmente no carnaval. Não deu outra. Dias depois, achei um vídeo que fazia justamente essa relação, falando dos mandus das festas de Cachoeira (BA).
Tuesday, October 18, 2011
Alcântara, segundo Josué Montello
Alcântara, segundo Josué Montello
“Agora me dize: com tanta recordação bonita, por que não hei
de ficar a um canto, com as minhas saudades? Nesse ponto, sou também como a
minha cidade: eu e Alcântara estamos voltados para o passado, e com muito
gosto...”
“O silêncio, para os velhos, é um tirocínio para o silêncio
da eternidade. Fala-se aí em salvar Alcântara. Salvar, como? Com as fábricas
que estão erguendo em São Luís? Deus nos livre e guarde! Alcântara tem que ser um
refúgio, com esta solidão propícia. A rendeira tecendo a sua renda, o pescador
pescando o seu peixe, o santeiro encarnando o seu santo. Depois da sesta, uma
moça bonita que se debruça da sacada, com uma flor no cabelo, para ver o
namorado passar. Tudo singelo e ao natural, como a água de coco e o ingá que se
come no pé. Em São Luís tens amigos influentes. Só lhes faça um pedido, em nome
dos que ficam por aqui: - Não bulam em Alcântara. Deixem que ela seja como é,
na paz e no remanso de sua velhice. O melhor camarão do mundo é o nosso. E o
peixe-pedra também. Mas não espalhes. Bico calado.”
“De repente, já longe, teve a sensação nítida de que ia
andando pela alameda de um cemitério. As casas fechadas eram sepulcros, e ali
jaziam condes, barões, viscondes, senadores do Império, deputados,
comendadores, sinhás-donas, sinhás-moças, soldados, mucamas, juízes,
vereadores, sacerdotes. Somente ele, assim desperto dentro da noite, estaria
vivo na cidade de mortos. E uma impressão instantânea de frio gelou-lhe as mãos e os pés, com a ideia de que, também
ele, ia permanecer em Alcântara para sempre, encerrado no mausoléu de seu
sobrado.”
(Noite sobre Alcântara - 1977)
Wednesday, September 14, 2011
A dona da tua casa
A morte é moça de buço
Que coça com faca cega
As dobras sujas da pança
A morte é velha e criança
É tua mãe e te nega
A morte sua e se embaça
Essa mulher sem-vergonha
Maquiada de fumaça
Tem um bafo de pimenta
Bem no hálito das pernas
A sua roupa é de rugas
A sua boca é de trevas
A morte é mofa, balofa,
Banguela e feia e vizinha
Eu só vejo a morte tua
Tu só vês a morte minha
É uma rã escondida
Na poeira das panelas
É uma aranha cosendo
A teia atrás das janelas
Ela rouba tua louça
E dispersa teu faqueiro
Ela toma teus lençóis
Ela tira teu dinheiro
Te acompanha a vida inteira,
Um sentimento bizarro,
Tem um corpo de madeira
Tem um coração de barro
Thursday, September 08, 2011
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