Friday, June 27, 2008

Wednesday, June 25, 2008

2008.03.09 – Morte Líquida 7


1) A morte, para os vivos, é o triunfo da natureza. Mais ainda, é a humilhação inegociável, inescusável, inexorável que a natureza impõe ao homem. Como conceber, então que logo ali ele aponte para uma concepção da morte que seja a negação total da natureza, ou seja, o sobrenatural, o transcendental?


2) Por outro lado, reconhece-se que o corpo, sim, deverá ser entregue á natureza sem luta. Daquilo que vemos, nada se aproveitará. O enterro é humilhante, é agressivo, a sua visão é aterradora. Deve-se mesmo perguntar por que no século XXI, onde se poderia criar formas mais dignas de desfazimento de cadáveres, inclusive com a aceleração da sua decomposição para posterior guarda dos ossos, eles ainda são jogados num buraco.


3) No catolicismo popular brasileiro, para realizar o desfazimento, O corpo é alienado do defunto, e se torna a encarnação do paradoxo. Logo que a morte alcança o corpo, ele pertence exclusivamente à natureza. É a negação do ser social (Vinícius de Moraes: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama” ), agora resumido ao indivíduo perante a natureza. Finalmente constituído como indivíduo, ou não-indivíduo, mas também não-sujeito social ou o silêncio dessas representações (Uma inscrição numa lápide em Serrinha é conclusiva: “Aqui jaz o corpo que Fulana desfrutou nesse plano astral”).


4) Também se usa dizer os restos mortais, mas a expressão “o corpo” ganha novo significado, despersonalizando o falecido, agora um objeto ao qual é necessário dar o devido encaminhamento. Essa despersonalização do corpo, ao negar a presença do finado na carne, prepara os vivos para o desfazimento, para a eliminação cadáver, desvalorizando (ou re-valorizando) o que será rejeitado (o corpo) e reafirmando a sua diferença em relação aos vivos e, por conseguinte, dos vivos em relação aos mortos. Os vivos têm nome, o morto é “o corpo”.


5) Observa-se aí, porém, também uma fragmentação do morto. O funeral pertence ao morto integral. Ele ali é trazido como vivo – o funeral como a sua festa, com seus convidados, todos os amigos e parentes, inclusive os inconciliáveis entre si – para a oração que encaminha o espírito e para o sepultamento do seu vazio e despersonalizado (Alphonsus de Guimarães: “Sua alma subiu ao céu / seu corpo desceu ao mar). Esse complexo nem sempre é assim configurado, e nem tanto pacificamente, principalmente quanto mais inesperadas e brutais as circunstâncias da morte no grupo familiar/comunitário. O que se suspeita é que esse é o modelo, o ideal.


6) Orfeu, deus da mitologia grega, tendo falecido a sua esposa Eurídice, vai ao inferno recamar que lhe seja devolvida a sua amada. Como forma de convencer Hades, rei dos mortos, Orfeu entoa uma canção de amor tão comovente que todas as almas do inferno choram e Hades consente em devolver-lhe Eurídice. O rei impõe, porém , como condição, que, até a saída do inferno, Orfeu não olhe para a sua esposa. Orfeu, porém, não resiste, olha para ela, perde –a para sempre e volta sozinho ao mundo dos vivos onde é devorado pelas bacantes.


Essa história sempre me intrigou pela questão que me impunha e que me parecia ser a mais natural de quem quer que a ouvisse: Porque Orfeu não resistiu e olhou para Eurídice antes de sair do inferno? Cheguei mesmo a duvidar do seu amor por ela, como se tivesse bastado ao deus provar e vencer a resistência de Hades. Passei anos com essa questão e segui crendo que se tratava de uma história de amor impossível, pois Orfeu não terá Eurídice nem na terra ( a sua morte aconteceu na noite de núpcias), nem no inferno, nem de volta à terra, nem se fala disso após a sua (dele) morte.


Busquei,no entanto, outra alternativa: Orfeu, promovido pelo rei Hades, não pode ceder à paixão por Eurídice, que representaria um tipo de amor subalterno, fútil, diante do valor maior, a arte. Esse era apenas um exercício de livre pensar – que parecia naufragar em si próprio, posto que Orfeu não finaliza a sua trajetória em hades, mas dele também se separa – mas que me abriu a consciência para o detalhe que fecha o raciocínio. Por fim, me ocorreu que o mito Orfeu-Eurídice-Hades, como todo mito, encerra uma sentença léxica, uma moral, e que antes de perguntarmos porque Orfeu transgrediu a norma, é preciso saber porque ele foi proibido de olhar a esposa.


A resposta que me pareceu óbvia é que Eurídice estava morta, portanto não podia ser desejada. Talvez, depois que regressasse do inferno, voltasse a viver, ela pudesse ser objeto de amor, de admiração, do “olhar” apaixonado. Enquanto morta, porém, não poderia squer ser considerada. Esse é um mito de interdição, portanto, da interdição do morto, que não pode ser desejado.


Talvez Eurídice voltasse á vida se Orfeu completasse o recomendado, mas como trazer da morte alguém amado, se é proibido amar (tanto) esse alguém morto?


Pode ser também interessante entender esse mito como representação de um tabu acerca do corpo e, por conseguinte, da sexualidade dos mortos.

Monday, April 14, 2008

Taça de lágrimas




Bebe em silêncio a tua taça de dor
E até em pensamento silencia
O que te faz sofrer

Segue no escuro da mata
Vai até onde não vai
O som desta palavra

E se a dor te corta a goela
E o susto da saudade
Do conforto rói e afaga

Te alimente a tua carne
Te sustente a tua asa
Tua casa é onde vagas
Toma, é o que tens,
A tua taça de lágrimas

Wednesday, April 02, 2008

2008.04.02 – Morte Líquida 6 - Ainda Semana Santa

Ainda sobre a Semana Santa: Jesus é o messias ou, se assim o preferirmos, o Deus que experimentou a morte humana e que oferece essa experiência para que todos comunguem - literalmente – dela. Essa sua experiência (o complexo Cristo vivo-morto-ressuscitado) é o vade-mecum da morte e nos há de servir também como modelo para viver. Se a morte do messias é uma crise que o sistema religioso cristão faz representar ciclicamente, com o desfecho previsível da ressurreição, esse modelo é transposto para as crises pessoais diárias, pequenas mortes, e até mesmo para a morte propriamente dita, a perda de um ente querido, criança, jovem, adulto ou idoso. Todas as apelações (relações de apelo) ao Cristo passam pela morte de Cristo, que ressuscitou, ou que pelo menos se nos igualou, isto é, se humanizou, porque morreu. E todas as relações com a morte fazem o mesmo trajeto, ou seja, passam por Jesus, pelos mesmos motivos.E, segundo:Jesus é mártir, mas teve sepultura, ao contrário de muitos outros que o seguiram, e o sepultamento de Jesus é “fato” que já o aproxima da morte que os fiéis esperam ter. Na verdade, Jesus é homem, mártir, morto, santo e Deus, e observamos que estas categorias são bastante diferenciadas, ao menos no tocante ao morto, na cosmologia, na veneração católica.


2008.03.24 – Morte Líquida 5 - Uma Semana Santa

Atualizada em 03.05.2012

Sunday, February 24, 2008

Morte Líquida 3 - O homem transcendental ainda é homem?

O que me parece ser uma linha de investigação urgente é aquela que diz respeito à morte como identidade final versus a morte como fim das representações. Sim, porque essa idéia de que justamente no momento em que o homem encontrara Deus se faz a negação do homem? D’Assumpção fala em perecimento de um “eu exterior”, que representa o individuo em suas relações com o mundo material e – é bom destacá-lo – com o mundo social. Em seu lugar sobreviria um eu interior, trinitário como o primeiro (formado por espírito, mente e corpo,) mas com total consciência espiritual e corpo e mente reconfigurados fora do contexto espaço-temporal. Ali, onde não haveria nem espaço nem tempo, também não haveria futuro, nem envelhecimento nem morte. Eis a eternidade, mas o autor fala de um homem reconfigurado ligado a Deus, caminhando para Deus, e explica:
Quando o homem morre, ocorre o momento mais importante de sua existência seu Homem Exterior desaba, deixando emergir totalmente o seu Homem Interior. Todas as máscaras usadas durante a vida física se desfazem e o Homem Interior, com todas as marcas do Home Exterior, assume plenamente... Será este Homem Interior que, em função de tudo o que viveu em seu tempo de vida física, de todos os seus atos e decisões, palavras e pensamentos, assumidos com o pleno uso do livre-arbítrio, irá tomar a sua decisão final e definitiva: com Deus ou sem Deus” (D’Assumpção, Evaldo Alves, Os que partem Osque ficam, Ed. Vozes, 7ª edição, Petrópolis, 1990, Pgs. 85-86).
Mais à frente: “A maneira como vivemos na unidade Homem Exterior – Homem Interior será o parâmetro utilizado pelo Homem Interior para tomar a sua decisão. E Deus irá, não como juiz mas como Pai, receber esta decisão e respeitá-la inteiramente... Mesmo desejando ardentemente que a decisão seja por Ele, acatará a decisão “sem Ele”. E esta decisão, repetimos, será por toda a eternidade, por não haver um futuro para mudança. Onde inexiste o tempo, inexiste o futuro. A decisão, “para Deus”, corresponderá ao alcance da plena e perfeita felicidade: é o céu de nossa infância” (idem, pg. 86)
Observemos mais uma vez aqui que a expectativa da reaização pós-mortem é a expectativa de um novo eu, ou de uma reforma na representação de si mesmo, consoante com a idéia de imperfeição do humano, mas também de um ego que, individualmente e sozinho, não pode sobreviver eternamente, que não se sustenta – ou que não se suporta, ou, ainda, que não suporta a vida – eternamente.
2) Gostaria de localizar em diversas correntes religiosas do espectro umbanda-espírita-católica, essa reafirmação do “mundo” – plano existencial dos vivos, em contraposição com o plano transcendental dos mortos – como um lugar sujo, inverso de um “além” puro e ideal. Mais importante ainda, as perguntas são: por que Deus é identificado no segundo plano, da negação do ego, e por que a religião e a prática religiosa representam a diluição do ego (Lévi-Straus, O Feiticeiro e o seu feitiço”). O problema é que a oposição ego X Deus, que parece tão cara à psicologia, no instrumental teórico da antropologia só pode ser apreendido na forma representações X representações do divino. Começo a compreender, então, que as representações relativas à morte podem ser colocadas diante de outras situações limítrofes, mas ainda é precisso assenhorar-se de uma ferramenta teórica que enquadre essas crises que passo a chamar de “pequenas mortes” (sem trocadilho com a expressão francesa para designação do orgasmo): A catarse na renúncia ao alcoolismo, as conversões, as curas xamânicas e outros processos que, auxiliados e mediados religiosamente, renegam a autonomia do indivíduo diante do coletivo religioso e/ou do coletivo espiritual.

Memorando Morte Líquida 4

1) “-Por que você não se deixa morrer, Bingo?”.
“- Não sou infeliz o suficiente. Não sou feliz, mas também não sou infeliz o suficiente”
Esse diálogo, dito na Peça Rough for Theatre, de Samuel Becket, revela bem o que Norbert Elias critica no Teatro do Absurdo, a intenção de conceber a vida de cada um como um palco individual. Elias denuncia que esse tipo de visão se esgota no indivíduo buscando em si mesmo o sentido para a vida. E se frustrando, porque o sentido de nossas vidas está nos que nos cercam. De fato, Becket concebia persoagens isolados, incomunicáveis, muitas vezes deficientes físicos inacessíveis e arredios. Esta visão se radicaliza na trilogia Malone, em prosa, mas em todo campo becketiano não há função para a comunicação, nem para as ações, talvez somente para os pequenos objetos, erráticos . Acredito, no entanto, e aposto nisso o Nobel de Literatura concedido ao irlandês, que é essa defesa apaixonado e vigorosa do individualismo que torna a sua obra um marco na história da humanidade.

2) Algumas considerações que faço com relação à minha pesquisa sobre a morte:
a) Não pretende ser uma etnografia religiosa, a princípio, mas desde o começo se propõe questões abrigadas num locus social mais difuso. Se escolho como ambiente um cemitério ou uma igreja, ou determinado grupo social, o que devo observar não é a homogeneidade entre os atores, mas o choque entre eles ou o debate, principalmente;
b) De um ponto de vista pessoal, tive perdas marcantes na infância com o suicídio de meu pai e as mortes de meus melhores amigos em situações distintas. Esses eventos influenciaram um gosto literário pesado que, ao contrário do que acontece com outras pessoas, não se diluiu nos primeiros versos da minha juventude. Pelo contrário, o tema me perseguiu e me levou, por fim, ao encontro com o notável A morte é uma festa, de João José Reis, uma das motivações para converter em pesquisa as minhas inquietações.

Friday, February 15, 2008

Morte Líquida 02 - Viagens de Gulliver

1) Em seu As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift fala que o personagem principal conheceu muitos lugares além de Liliput, que ficou famosa como a terra dos homens pequeninos. Um desses lugares é Luggnagg, onde, entre muitas maravilhas e bizarrice, podemos destacar a existência dos struldbruggs ou imortais. Nas palavras do próprio Gulliver/Swift:

“Ele então me disse que às vezes, apesar de ser muito raro, acontecia em uma família o fenômeno de uma criança nascer com uma mancha vermelha na testa, diretamente acima da sobrancelha esquerda, o que era marca infalível de que ela nunca morreria. A mancha, como ele a descreveu, tinha mais ou menos as dimensões de uma moeda de três pence de prata, mas ao longo do tempo ficava maior e mudava de cor; depois dos doze anos tornava-se verde e mantinha-se assim até os vinte e cinco anos, quando se adquiria um tom de azul profundo; aos quarenta e cinco ficava negra, do tamanho de um xelim inglês, e a seguir não se alterava mais... Que tal produção não era peculiar a nenhuma família, mas sim um mero efeito do acaso e que os filhos dos struldbruggs eram mortais, como todas as pessoas normais.”

Diante do interlocutor que lhe trouxera aquela informação, o protagonista do livro se revela maravilhado, supondo que o povo de Luggnagg era felizardo: “Felicidade acima de qualquer comparação é poder contar com esses excelentes struldbruggs que, mesmo tendo nascido da calamidade universal da natureza humana, têm suas mentes livres e desompromissadas, sem o peso e a depressão de espírito que a contínua apreensão da morte nos causa” [grifo de Franklin]. Ele ainda diz que, se fosse um struldbruggs, aperfeiçoaria-se nas virtudes e na generosidade, desenvolvendo sua sabedoria e auxiliando as gerações mais novas.

Para seu espanto, no entanto, o interlocutor explica sobre os struldbruggs: “Disse que geralmente agem como mortais até chegarem perto dos trinta anos, depois dos quais, pouco a pouco, vão se tornando melancólicos e abatidos, sentimentos esses que continuam a aumentar até que chegam aos oitenta... Quando alcançam os oitenta anos, o que é considerado o limite extremo da vida neste país, eles sofrem de todas as excentricidades e doenças dos demais velhos e além delas de muitas outras que surgiam com a atemorizante perspectiva de nunca morrer. Não apenas são teimosos, rabugentos, avarentos, taciturnos, presunçosos, tagarelas, como também são incapazes de sentir amizade e encontram-se mortos para todas as afeições naturais, que jamais se prolongam além de seus netos. Inveja e desejos impotentes são as paixões que prevalecem neles”.

“Os principais alvos contra os quais a inveja deles parece basicamente dirigida são os vícios dos mais jovens e as mortes dos mais velhos”, prossegue a narrativa, onde se explica que, dos mais novos são invejadas as possibilidades de prazer, e dos mais idosos, os funerais, a ida para “o porto do descanso, ao qual eles nunca terão esperança de aportar”. E “Já não se lembram de nada, a não ser do que aprenderam e observaram durante a juventude e a meia idade, porém até mesmo essas lembranças são imperfeitas”.

Ainda, e sinalizando para o que acontece com pessoas senis: “Assim que completam o termo de oitenta anos, são considerados mortos pela lei; seus herdeiros imediatamente apoderam-se de seus bens e apenas uma parcela mínima é mantida para seu sustento, então os pobres coitados passam a ser mantidos pelo público. Depois deste período, tornam-se incapazes de ter merecimento para qualquer emprego de confiança ou lucro, não podem comprar terras, arrendar seja lá o que for e não lhe é sequer permitido servir de testemunhas em qualquer caso, seja cível ou criminal, nem mesmo para decisão de marcos e fronteiras”.

Além disso: “Quando conversam, esquecem os nomes das coisas e os nomes das pessoas, até mesmo dos que são seus amigos e parentes mais próximos. Pelo mesmo motivo nunca podem se divertir com leituras, porque sua memória não serve mais para carregá-los do começo ao fim de uma sentença e com este defeito são privados da única diversão que de outra forma seriam capazes”.

Para concluir o capítulo em que trata do assunto, o personagem/narrador Gulliver diz que o rei de Luggnagg perguntou-lhe se queria enviar dois ou três struldbruggs para o seu país “a fim de armar nosso povo contra o medo da morte”. Ele parece ter entendido a lição e finaliza concordando com as leis do reino: “Por outro lado, como a avareza é a resultante necessária de envelhecer, aqueles imortais tornar-se-iam com o tempo proprietários de toda a nação e seriam o poder civil que, por falta de habilidade para ser bem controlado, terminaria com a ruína do bem público”.

Swift, Jonathan - Viagens de Gulliver, Editora Nova Cultural, São Paulo, 1996, PP 237-244.

2) Algumas considerações sobre o texto de Swift:

a) O texto, segundo a crítica, seria uma referência satírica aos membros da academia francesa, que eram chamados “os Imortais”. Na introdução da edição citada, se escreve: “O episódio dos struldbruggs propõe um grande problema que não era tão urgente no tempo de Swift mas que, graças à medicina, está se tornando cada vez mais urgente no nosso tempo: o problema que é prolongar até depois que a capacidade de gozá-la desapareceu” (pg. 12). Na verdade, a empolgação inicial do personagem com a possibilidade de uma vida eterna era motivada pela crença de que estavida seria acompanhada de uma saúde e de um vigor também eternos.

b) Swift, como se vê, aproveita a oportunidade para detratar estruturas onde os velhos estão agarrados ao poder. De qualquer forma, apresenta uma visão também negativa com relação aos detentores da imortalidade e contra a imortalidade em si. Não pude escapar de uma comparação com a imagem negativa que está associada a outro grupo de imortais, os vampiros. Creio que haja também outros casos em que se manifeste esse pejo, talvez porque se considere a imortalidade como anti-natural, e a vida eterna como algo degenerador. Como já aventei que a vida seria o território do ego, penso que esse tipo de raciocínio considera a vida eterna como a extrapolação do ego, acumulando e exorbitando suas vantagens e seus defeitos.

c) Eu já tinha terminado esse post, quando fui obrigado a reeditá-lo para inserir um trecho que localizei no livro Os que partem, os que ficam: “Mas já dizia o vampiro Drácula, no livro que o criou, que sua maior maldição era a impossibilidade de morrer. A imortalidade era o seu maior castigo!... Se admitirmos que o homem foi criado para a perfeita felicidade, mas que esta felicidade perfeita é impossível de ser alcançada enquanto estivermos sob as limitações do espaço-tempo, a morte, por representar o umbral de saída desta limitação, representa a única possibilidade – não a certeza! – de alcançarmos esta condição para o qual fomos criados” (D’Assumpção, Evaldo Alves, Editora vozes, Petrópolis-RJ, 1990, pg. 47-48). Ou seja, a vida eterna mais uma vez é considerada uma aberração, a morte é necessária e natural. Devo esclarecer, antes que se crie alguma confusão, que esse autor, um pouco mais à frente, repudia o suicídio e só admite a morte natural como forma de se chegar à “perfeita felicidade”.

Thursday, February 14, 2008

Morte Líquida 01



Até onde li, as conclusões são as seguintes:

1) Norbert Elias, em A Solidão dos Moribundos, fala que não existe a figura “os mortos”, inclusive a expressão “nossos mortos” remeteria a um conjunto vazio. Os mortos não existem, assegura Elias, a não ser na memória dos vivos, e somente ali. O autor explica que a busca de significado para a existência humana só encontra resposta quando considerado o significado desta vida para outras pessoas (ele condena a idéia do teatro do absurdo, do indivíduo isolado, buscando na solidão uma razão para a sua própria trajetória). Daí explicar o sentido das lápides, que projetam a memória do sujeito para as gerações futuras.

2) Elias fala ainda que a morte e o moribundo causam horror aos vivos primeiro porque avisam da finitude que ameaça a todos e porque uma suposta imortalidade seria a solução para problemas recalcados na primeira infância. Durante a leitura do texto , projetei uma lista de perguntas que estava amadurecendo já havia algum tempo sobre possíveis indagações osbre o morto:


a) Quem é ele? (ele não é mais a pessoa que eu conhecia. É outro, silencioso, que não age mais familiarmente. Quem é, então?)
b) Eu sou ele? (Eu morri? Eu vou morrer?)
c) Isso (a morte) dói nele?
d) A culpa é minha?
e) Se a culpa for minha, ele vai se vingar de mim?
f) O que ele deixa/entrega/quer para/de mim?
g) Ele ainda quer o seu corpo? (ele ainda lhe serve?)
h) O que fazemos com o seu corpo?

3) No tocante à projeção do morto para a as gerações futuras, observo os epitáfios dando conta das “saudades eternas da esposa, filhos, netos...” como uma tentativa de socializar o morto na memória coletiva. A família o trouxe até ali e ele continua integrado a ela, para quem, vivo ou morto, pretenda sabê-lo. O simples fato de se identificar os túmulos diz respeito a conferir uma permanência do falecido na sociedade. Mas, então, o que se pretende é não deixar o morto sozinho. Não para que ele não perca o corpo, ou a alma, mas para que não perca a identidade. O pavor da morte não é, então,a perca desses dois vetores que se supõe na existência religiosa, o corpo e a alma, mas de um elemento mais subjacente e necessário, o ego, o eu, com suas idiossincrasias. O temor da morte é o temor da dissolução máxima, que ultrapassaria corpo, alma ou qualquer outra configuração, é o temor da dissolução do eu.

4) Então contrapõe-se: a Vida é o território do ego, da sua personalidade, da sua mesquinhez, da sua glória, da sua violência e da sua beleza. A morte é a negação do ego. O indivíduo deve ser enterrado pela sua família e passa a integrar as legiões do Céu (crianças como anjos na legião de São Miguel) – diluindo-se nessas identidades coletivas. Pergunta: Como se diferencia nesse caso a morte de indivíduos que tiveram vidas extremamente individualistas? Quanto à herança, se os bens materiais se dividem, o morto é também dividido?

Tuesday, January 22, 2008

A morte líquida


Eu fiz o ritual e dormi dentro do terreiro, porque o pai de santo achava que não seria bom que eu voltasse para casa no mesmo dia. Lembro que, quando fomos despachar algumas comidas no mato, dois homens me levaram num carro e disseram que deveríamos nos afastar sem olhar para trás, para não vermos as entidades se apropriando da oferta. O ritual, com os filhos de santo, foi feito só para mim, para as entidades que se relacionavam com os mortos.

Dormi serenamente naquela noite, embora num colchão muito fino, no chão de um quarto fechado. Acordei cedo e bem disposto no dia seguinte e fui me sentar numa cadeira na sala, onde fiquei observando algumas mulheres adormecidas. Uma delas despertou, porém, e se assombrou. Ela respirou fundo e disse:

- Meu Deus do céu, pensei que fosse uma pessoa morta.

Eu dei risada. Pensava que ela havia falado aquilo porque eu estava totalmente vestido de branco, mas a filha de santo e as outras que foram acordando em seguida me contaram que, durante a noite, tinham visto muito movimento de entidades dentro e fora do quarto onde eu estava. Parece que avistaram vultos também e tiveram dificuldades para dormir, e passaram bastante tempo rezando. Elas eram umas donas muito gentis, e todo o povo daquela casa também, e embora eu tenha ido trabalhar no dia seguinte, mais tarde, de noite, nos reunimos para um segundo ritual que completou o da noite anterior.

Depois, eu comecei a ir ao cemitério do Campo Santo, que era próximo à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (UFBA, campus São Lázaro), onde estava cursando a matéria Antropologia da Morte. Naquela época, a Santa Casa de Misericórdia, entidade gestora do cemitério, mantinha um circuito de visitas guiadas e tinha uma loja de souvenires no local, e eu gostava de conversar com a funcionária que tomava conta de tudo.

Certa tarde, vi passar um enterro e descobri que era da mãe do padre Lázaro, capelão do cemitério. Fiquei intrigado, tentando entender como aquele homem estava fazendo o funeral de sua própria mãe. Conheci algumas histórias interessantes, como a de um homem (apenas ouvi falar) que desmanchava caixões usados e aproveitava a madeira para fazer barracos e alugá-los. Havia também uma mulher com seus sessenta anos que me contava que fora criada no Campo Santo, sendo que a sua mãe, muito pobre, dormia dentro do templo. Ela relatou que a comunidade ia ao local para comer frutas das árvores, bem como retirar água de uma fonte ali existente.

Passei a frequentar o Apostolado das Almas, que se reunia para rezar o Ofício das Almas todas as segundas-feiras, no Campo Santo. Me aproximei da comunidade da igreja e ajudei em muitas missas, com muitos padres diferentes, que sempre me trataram bem. Travei contato com os diáconos da Pastoral da Esperança, que fazem encomendações (últimas celebrações antes do sepultamento) e ajudei alguns deles, e também alguns padres em alguns velórios. Em alguns casos, lia um trecho da bíblia que o celebrante pedia e puxava, com ele, cantos mais conhecidos. Depois, em casa, tomava nota das coisas que tinha observado.

Havia velórios mais vazios, geralmente de idosos, e outros mais cheios, como foi o caso de um operário vítima de acidente de trabalho, quando o sindicato fretou um ônibus. Eu não vi, mas os funcionários do cemitério narravam que o ambiente ficava muito tumultuado no sepultamento de policiais e marginais envolvidos na guerra do tráfico que acontecia nos bairros do entorno do Campo Santo. A responsável pelo circuito de visitas guiadas me contava curiosidades sobre os jovens, religiosos de diversas matizes, e outros tipos que andavam por ali, além de falar das diferenças entre eles.

Não voltei depois ao terreiro de candomblé, mas, por meio de uma colega de trabalho, recebi um convite para conhecer o terreiro de Babá Egun, culto aos mortos na praia de Ponta d’Areia, na Ilha de Itaparica. No ritual, entidades (eguns) dançam dentro de roupas vazias, que têm o formato humano, mas que são indevassáveis (espécie de bata com calça, máscara de tecido, luvas e calçados). Para os fiéis, o conjunto é movido somente pela entidade, que incorpora as vestes num quarto à parte e entra na sala do público dançando, até sentar-se em um trono. São várias entidades conduzidas por sacerdotes (ojés) que usam uma vara sagrada. É interditado a pessoas comuns tocar nas roupas em movimento, por risco de morte iminente.

Viajei de noite, assisti metade do ritual e voltei quando o dia ainda raiava, impressionado com a diferença nos procedimentos e na conduta agradável da comunidade. Antes dessa experiência, já tinha lido sobre aquele ritual (Jean Ziegler e Juana Elbéin dos Santos). Na hora de ir embora, o motorista que nos conduziu até a praia onde tomaríamos o barco contou histórias de assombração na vila, com moradores topando à noite com eguns. O mais importante, naquele momento, foi ter achado uma pista para uma ligação entre as entidades e o Mandú, elemento que circula mais abundantemente na cultura, principalmente no carnaval. Dias depois, achei um vídeo que fazia justamente essa relação, falando dos mandus das festas de Cachoeira (BA).