Wednesday, October 04, 2017

Em paz, Albert





Cheguei ontem em casa e encontrei todos os móveis cobertos com uma lona preta, numa situação que sugeriria uma instalação artística, uma mudança de móveis ou uma residência desabitada. Nada disso, apenas uma reforma, uma pintura que se arrasta, deixando os cômodos em luto. Nada teria tanto peso não tivesse eu vindo de um hospital, na verdade o necrotério de um hospital onde fui ver a saída do corpo de um amigo, o doce Albert. Ele esteve internado por quatro meses com infecção óssea, num quadro de anemia falciforme, dependendo de atendimento na rede pública, e finalmente capitulou, depois de sofrer toda espécie de dor física, delonga, desleixo, depois também de contar com a abnegação da mãe e das irmãs, e de alguma ajuda de seus amigos que, infelizmente, não suplantaram as carências dos hospitais do estado.
Passei a noite no apartamento em caos, reduzido à minha cama empoeirada no quarto em que a reforma ainda não chegara. A cabeça girava enquanto tentava esquecer o sofrimento do meu amigo de 21 anos, que conheci há cerca de onze meses, e que só me solicitava livros nas vezes em que nos falávamos. Hoje, quando acordei e me dirigi ao cemitério para o seu funeral, fui lembrando desse convívio ensolarado e pensando em dizer algumas palavras antes do sepultamento, mas demonstrei a mesma confusão que exprimo nessas linhas. O velório estava cheio de colegas de escola do rapaz negro, dono de uma simpatia e de uma beleza radiantes. Os próprios jovens e seus professores improvisaram alguns discursos emocionados e tudo era cabível, e então entendi que a morte é um happening.
Digo isso porque de fato ocorre tudo e nada, é caos mesmo: não consegui chorar nem falar, não soube explicar com todas as palavras porque eu estava ali, o que me unira a ele, o quanto esperei, em segredo, que melhorasse e viesse estar comigo, e sonhei tanta beleza em um delírio descabido. Nem ele me autorizaria propor alguma fórmula tão clara, embora falássemos em viajar, em ficar juntos no meu apartamento por alguns dias, mais do que ficamos no passado.
Deixei o choro imerso naquela mistura de sentimentos e fiquei zanzando na área do velório, aproximando-me e afastando-me, enquanto as muitas pessoas se chegavam ao falecido. Na hora do cerramento do caixão, a irmã mais nova, quase uma criança, colocou na urna funerária alguns muitos doces, barra de chocolate, pacote de amendoins, leite em pó e outras comidas que Albert quis ter na sua vida de alimentação regrada, tanto pela limitação que a anemia lhe impunha quanto por falta de recursos financeiros.
Fechou-se a tampa, o professor de karatê e seus alunos robustos, ex-colegas do morto, fizeram questão de carregar o caixão ao ombro, como sinal de honra: Albert tinha aguentado bravamente a dor, resignado e calmo, era um rapaz sereno e bom, merecia. Selou-se a gaveta de alvenaria com cimento e voltamos para a nossa vida, tentando encontrá-la onde a deixamos.
E são as coisas boas, mais do que as más, que me lembram daquele que me chamava tão ternamente de “amigo”, quando o encontrava sorrindo no leito desaparelhado do hospital. É a boa música que toca no rádio e sugere romance ou diversão (sim, espero que ele esteja se divertindo em algum lugar, surfando como nunca o soube fazer aqui, ou imerso em imensa biblioteca, cheio de doces e de risos), ou mesmo que remete a alguma melancolia. Quando falo do livro que escrevi, recordo de como ele me ajudou no lançamento, e como era entusiasta deste tímido escritor.
Não o esqueço, não posso. Apenas dilato o lamento em horas esparsas, acompanhado das melhores memórias. Assim procuro preencher este luto que terá que acabar, para que eu prossiga, para que prossigamos todos. Meus móveis ainda estão enlutados, mas espero a qualquer hora descortinar as novas tintas, ver a luz que ainda me chega miúda. E desejo a esse meu caro, meu anjo, a paz que merece uma pessoa tão ensolarada. Siga com Deus, meu companheiro Albert.

Friday, September 29, 2017

Integralismo no sertão: a marcha mais insana



 


O texto abaixo contém o depoimento do farmacêutico Fábio Carvalho, morador da Vila do Raso nos anos 1930, no sertão da Bahia, ao professor Anatólio Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, enfocando as tensões cotidianas surgidas com a presença do movimento integralista na localidade. A Vila se tornou autônoma como Município de Araci em 1959 e Fábio e Anatólio, ambos naturais da cidade, já são falecidos. O documento manuscrito foi obtido pela professora Ana Nery Carvalho, autora do livro Memórias de Araci, e sua redação data de janeiro de 1994.  A transcrição aqui publicada respeitou ao máximo o original, mesmo quando se nota a falta de pontuação, mas a legibilidade é possível em seu inteiro teor. O trecho ao final "Missa ou após a missa...", que integra também o documento recuperado, foi mantido, embora enfoque outro assunto. A intenção em deixá-lo aqui é revelar outros aspectos da cidade.

Integralismo em Araci (Bahia)
Depoimento do farmacêutico Fábio Carvalho ao professor Anatólio Oliveira
Em 5 de janeiro de 1994

1-Quando foi fundado o integralismo em Araci?

Se recorda que em 1935 já havia o grupo se organizando, sendo a sede na fachada oeste da Praça da Conceição, em casa atual da viúva Inácia Pereira (João Barraca)

2-Métodos de aliciamento

Os adeptos do movimento eram conseguidos por intermédio dos discursos proferidos nas sessões dominicais, na sede citada, formando um verdadeiro comício interno. Muitos curiosos enchiam as calçadas da sede e casas vizinhas e se espalhavam na praça, nas adjacências do prédio. No salão entravam apenas os integralistas envergando suas calças brancas e a camisa verde com o Sigma em um dos braços. Muitas pessoas se entusiasmavam com a doutrinação ideológica do movimento e pediam sua inscrição que, se aprovada, a pessoa obtinha a sua entrada nas hostes, recebendo logo o seu cartão de protocolo.
Havia também outro tipo de aliciamento de caráter individual. Um exemplo: o Sr. Isidoro Ferreira dos Santos, conhecido por Isídio de Libânio, na área do Junco, Bom Sucesso e Roça de Baixo. Ele conversava com as pessoas ali residentes, convencendo algumas a fazerem parte do grupo depois de uma ou mais visitas.
No caldeirão, Já ao norte de Araci, tínhamos como catequista Firmina Ferreira da Mota. Na região da Serra (a oeste da vila), áreas do Boi Morto, Inácio... (de Lúcio), encarregava-se da doutrinação, assim acontecendo em outras áreas rurais do então Distrito, como aldeias e povoados

3-Como eram realizados as sessões?

Eram abertas com a entoação do Hino Nacional e logo em seguida começavam ou discursos, tendo como orador oficial o jovem Erasmo de Oliveira Carvalho. O comando do movimento estava nas mãos do Sr. José Justiniano Mota. Após terminado o primeiro discurso a palavra era franqueada aos companheiros. Havia alguns algo coerente e a maioria consistia em disparates, frases comuns que denotavam apenas fanatismo. O início das sessões tinha lugar às duas horas da tarde, prolongando-se até as 21 horas, sendo que, após o transcorrer de determinado tempo, era interrompida para uma longa marcha pelas ruas da vila cantando o hino oficial Mocidade Brasileira, e ao retornar à sede, antes do encerramento, novos discursos de agradecimentos aos companheiros, finalizando a sessão com o canto do hino, ou seja ''Mocidade Brasileira'', já citado.

4-Havia intercâmbio com grupos de outras cidades vizinhas?

Havia visitas individuais. A mais frequente era a de um senhor conhecido como Lisboa Fabiano que, embora de família araciense, residia em Serrinha, sendo um dos lideres da Ação Integralista Brasileira naquele município. Visita de grupo organizado houve apenas a do Núcleo de Pedras (atual Teofilândia) que será relatado em detalhes a seguir no item ''Episódios”.
O único jornal que divulgava o movimento na região era ''O Serrinhense'', que por ser quinzenal e de tiragem reduzida era pouco difundido, devido talvez ao preço do exemplar. O proprietário desse jornal era Jovino Franco tendo como redator seu filho Bráulio de Lima Franco. Tal jornal tinha como opositor ferrenho em Serrinha o “Jornal de Serrinha”, de propriedade de Jonas Hortelio.

5-qual a temática dos discursos proferidos

Dominava os discursos a ideia de que o integralismo era a salvação do Brasil, o único ajuntamento político capaz de combater o comunismo ateu da Rússia, visto que nos outros partidos havia uma infiltração de comunistas, não passando todos eles de lobos vestidos de cordeiro. O comunismo era a principal temática dos discursos apontando-o como um verdadeiro “bicho papão” capaz de destruir a pátria e a família com seus pretensos crimes e horrores. Na maioria das vezes os discursos eram xingamentos ao comunismo do princípio ao fim.

6-Nomes dos dirigentes, e dos principais propagandistas

O chefe, como já foi dito, era o Sr. José Justiniano Mota, cuja família estava completamente engajada. Entre seus parentes mais chegados, contavam-se Torquato Moreira, Álvaro Ferreira, Vigílio Bacelar Vital Ferreira, Maria Lídia Dominicano Oliveira e sua esposa Maria de São Pedro.
Outras pessoas se destacavam pelo entusiasmo como Dona Maria Campos (Sinhá Bia), Cesário Paulo, Felipe Soldado, Antônio de Joaninha (do Ichu), Acelino Carvalho, Zulmira Jacó e outros.
Vimos já os propagandistas encarregados da divulgação da Ação Integralista em áreas e regiões do Distrito.

7-Insinuação de imunidade

Uma senhora, moradora no Ichu, próximo à Fazenda Remanso, tinha alguns filhos que frequentemente estavam na cadeia por roubo de bode. Quando ingressou no integralismo com o marido, apregoava aos quatro ventos: “- Graças a Deus, nós lá em casa samo tudo tegalista, agora quero vê o Nicolau metê meus fio na cadeia.” Convém lembrar que o Sr. Nicolau Carvalho desempenhava a função de delegado.
Foi difundida a ideia de que um integralista não poderia ser preso, principalmente envergando sua camisa verde.
Isso trouxe uma série de complicações, havia um integralista de prenome Alvino, natural das bandas do Tapuio, casado com Sebastiana, filha de Melquiades filha de Juliano [???], que por motivos fúteis se desentendeu com a mulher. Então deu-lhe uma sova violenta, deixando-a prostrada. Nicolau mandou recolhê-lo à prisão. Isso alvoroçou os dirigentes integralistas que imediatamente enviaram um mensageiro a Serrinha para certificar do fato ao chefe regional Sr. Lisboa, o qual incontinente veio para Araci, decidido a reagir e tomar providência porque ''fora preso um integralista''. Convém lembrar que o mesmo não foi informado das causas da prisão. Aqui chegando, discutiu acirradamente com o delegado sendo posto a par do ocorrido, chegou a conclusão de que a autoridade teve assaz razões para agir daquele modo e, simplesmente limitou-se a queimar a ficha de inscrição e a camisa verde em plena praça, exclamando: - Para nós integralistas morreu o nosso companheiro Alvino!

8- Episódios

Foi promovido um baile, no salão principal da extinta prefeitura, por pessoas da sociedade que não tinham simpatias pelo movimento ou não estavam nas fileiras por isso eram consideradas comunistas. Todavia a festividade não possuía nenhuma conotação política, estando à frente o cabo polícia Artur de Tal, comandante do destacamento. No entanto, os promotores cometeram um erro fatal: colocaram algumas fitas de papel vermelho, usadas como decoração, em meio às demais cores. Foi então levada às autoridades estaduais a denúncia de que o baile não passava de uma festa comunista, promovida por comunistas e a cor utilizada como enfeite era unicamente vermelha, quando, na verdade, existiam miríades de cores. Aberta uma sindicância por oficiais da polícia (isto porque constava o nome do cabo Artur) de Salvador, foi comprovado que a denúncia era improcedente, ficando desmascarados os denunciantes. O cabo pegou uma pequena punição sob o pretexto de que não devia se envolver com festas.

Manoel Adanco de Carvalho negociava com secos e molhados no início da Rua Barão de Geremoabo. Apesar da rixa existente entre os camisas verde e a polícia, vendeu fiado a um soldado 4$000 de gêneros no meio da semana. Na segunda-feira logo cedo mandou seu irmão Inocêncio (Cicinho) cobrar a este soldado a referida dívida. O soldado respondeu que o comandante estava viajando e que aguardasse até que esposa do mesmo fornecesse o dinheiro. Uma hora depois mandou cobrar novamente obtendo a mesma resposta, acrescentando que até o momento a referida senhora não fizera o pagamento. Algum tempo depois repetiu-se a cobrança. O soldado não deu resposta. Deu as costas ao portador, rumou para o quartel (onde hoje está a Lanchonete Pinho), apanhou um fuzil, chegou até a frente do estabelecimento comercial e deu alguns tiros na direção das prateleiras, fazendo o proprietário pular o muro para a casa vizinha escondendo-se em local intimo, na camarinha, com a porta trancada por fora pela pela proprietária Gertrudes que entregou a chave.
Nesse ínterim, um grupo de integralistas que se encontrava na sede da entidade foi notificado e partiram armados de cacetes adquiridos nas armações de proteção às árvores novas. Ao penetrarem na Rua Barão de Geremoabo foram barrados pelos cidadãos Nicolau Carvalho, Joaquim Rodrigues Dantas e José Pinheiro que os advertiram de que voltassem porquanto o soldado, em desespero, continuava armado e atirando podendo, sem dúvida, ferir, matar e até exterminar o grupo. Embora os três cidadãos não pertencessem às fileiras do Sigma, foram atendidos, evitando-se piores consequências. Quando o comandante chegou deu cobertura ao soldado e ainda disse: - Foi muito bom eu não estar aqui. Se estivesse não ficaria um integralista vivo.

O caso de Torquato e o Soldado Cordeiro

Num dia de feira, Torquato, de camisa verde, encontrou um soldado conhecido por Cordeiro [que] comia doces numa banca em frente ao cartório de Pequeno. Ao vê-lo, começou a provocá-lo de longe dizendo: - Soldado só tem valor no interior, na Bahia (nome usual como era denominada a capital do Estado) soldado é considerado pano de pegar panela, pinico e outras frases depreciativas. O soldado ouvindo tais insultos enfureceu-se, desembainhou o sabre e passou a desferir golpes no dorso do insultante. Pequeno saiu do cartório e veio em socorro do cunhado, apanhando também bonitos golpes. Observando a briga estava um integralista bastante conhecido de alcunha João Miolo. Torquato gritava: - Me acudam companheiros!. Em vez de acorrer em seu socorro João Miolo saiu em disparada pelo Beco de Dominiciano refugiando-se na casa de Vestina, sua mãe, com as portas trancadas.

A nomeação do delegado

Quando Getúlio Vargas deu asas ao integralismo, os chefes regionais nomearam arbitrariamente pessoas de suas hostes sem que os titulares legais houvessem sidos exonerado. Para Araci foi nomeado o cidadão Manoel Adarico de Carvalho (Maninho) que em apenas uma semana de glória praticou verdadeiras atrocidades, depois de armar elementos de sua gente num corpo paramilitar clandestino. Mandou prender em [povoado] João Vieira o jovem Temístocles de Góis que havia militado nas fileiras verdes e por uma razão qualquer desistiu, entregando a camisa verde, a qual foi queimada em praça pública. Tal perseguição foi ativada devido ao referido jovem, após desertar do movimento, ficar criticando a ideologia e deste modo impedindo novas filiações. Tal intento não foi concretizado porque uma vez avisado, o rapaz embrenhou-se nas caatingas do Guerra, fazenda de propriedade do seu tio Ambrósio Góis, tornando impossível a captura pelo fato de ser local de difícil acesso para os perseguidores.
Getúlio, passada esta semana, implantou o Estado Novo [1937], retirou o apoio que dera ao integralismo e moveu-lhes tenaz perseguição, mantendo os titulares que na verdade eram as autoridades legais.

O caso de Gorda

Noite de São João de 1936. O pessoal estava em reunião na sede, presididos pelo senhor José Justiniano Mota. De repente chegou a notícia. Desabou uma parede da casa de Gorda, ficando a velha sob os escombros. José Mota, imediatamente arregimentou a verdinhagem e em marcha acelerada dirigiram-se para o local do desabamento. Lá chegando, retiraram a taiparia, os torrões de barro, até retirarem a velha que ainda com vida foi salva a tempo.
José Mota, o chefe, colocou-os em forma e bradou: - O papel do integralista é esse!

Os Ismos

Depois do golpe de 1937 [Estado Novo], o Padre Carlos Olímpio Ribeiro que anteriormente cultivava alguma simpatia pelo integralismo, por convivência, no sermão da missa dominical, com a igreja matriz lotada, passou a vociferar contra as correntes políticas surgidas naqueles últimos anos, mais ou menos nestes termos:
- Nazismo, fascismo, comunismo, integralismo é tudo podridão, meus irmãos, vamos nos esquecer dessas coisas, desses ismos.
Assim que pronunciou a última palavra “ismos”, o Sr. Torquanto Moreira, integralista de quatro costados que assistia à missa na outra extremidade da igreja, debaixo do coro, em sinal de protesto, bradou às quatro paredes, acrescentando: -Cristianismo, deixando o padre e os oficiais quedarem-se atônitos, sem nenhuma ação imediata.

A visita do Núcleo de Pedras ao de Araci – 1937

No dia em que estava marcado a visita, o delegado Nicolau Carvalho pela manhã recebeu por intermédio de André Matos, empreiteiro construtor de estradas, um telegrama enviado pelo Chefe Secretário da segurança, Dr. João Facó, com o seguinte teor: - Deveis proibir o uso da camisa verde. Ante isso, o delegado dirigiu-se à residência do seu cunhado e chefe da seção local da AIB Sr. José J. Mota e mostrou-lhe a mensagem. Este ficou preocupado, sem saber o que fazer. Estava aguardando a chegada de um grupo de visitantes do Núcleo de Pedras e o pessoal, sem dúvida, chegaria com fome e com sede, extenuados pela marcha contínua de 18 Km, feita evidentemente a pé, sem direito de usar montaria. Todos envergando o uniforme integralista, calça branca e camisa verde.
O delegado para minorar a situação aconselhou-o a mandar alguns prepostos ao local denominado Tiracó, próximo à entrada sul da cidade [Vila], para avisar aos visitantes o que estava ocorrendo e como solução guiá-los pela periferia oeste da Vila e outros pelo fundo da residência do chefe local, e ainda que não permitisse que nenhum deles ultrapassasse o limiar da porta da frente vestido de camisa verde para não provocar atrito com a polícia que estava alertada com o objetivo de reprimir os radicais, que ousassem sair à ruas uniformizadas.
Um elemento recalcitrante foi comprar doces em um tabuleiro na feira livre. Um soldado, vendo-o, (conhecido com Manoel João) aproximou-se e deu-lhe um pontapé no traseiro berrando palavrões. O elemento então saiu em disparada em direção à concentração dos companheiros, os quais, depois de um merecido descanso e saciarem a fome e a sede, tocaram em retirada, encerrando-se o incidente.

Missa ou após a missa ou na maior parte das vezes, o término das rezas

Quando Rufino terminava o culto ou seja as orações e cânticos da novena, o samba campeava no terreiro da Areia Branca, às vezes iluminado pelo luar do sertão, temperado com a boa cachaça de Laranjeiras, Sergipe, não faltando também jogos de azar, notadamente o baralho, interrompido de vez em quando por divergências que causavam bastantes brigas, até o amanhecer. 

Thursday, August 31, 2017

Sobre as vozes em A Oração do Carrasco




Não são poucos os elogios que A Oração do Carrasco (Editora Mondrongo, 164 páginas), o mais novo livro de contos de Itamar Vieira Junior vem recebendo, e quem lê a obra entende, desde a primeira das sete narrativas que a compõem, o porquê dessa recepção. São histórias contundentes sobre personagens socialmente invisíveis mas fortes, contadas por um autor que tem o domínio dos menores detalhes, o que lhe permite emular diferentes vozes, todas em situações extremas e ao mesmo tempo – e talvez por isso – eloquentes.

Com esses recursos, Itamar se dispõe a cambiar, num mesmo conto, o foco narrativo para integrar novos pontos de vista. Ao contrário de certos experimentalismos que usam essa estratégia apenas como mais uma alternativa formal, a mudança aqui constitui enquadramentos autônomos e suficientes, com resultado convincente.

Por falar em eloquência, a dicção é enfática principalmente nos contos Alma, que trata da fuga de uma escravizada, A Oração do Carrasco, descrevendo o árido coração de um verdugo, e Manto da Apresentação, no qual acessa a alma do artista/interno de hospício Bispo do Rosário. Neste último, aproxima-se do ritualístico, de um tom mágico.

É uma carga tamanha de poesia que às vezes tememos chegar a uma fruição puramente abstrata. No entanto, o movimento do autor é outro, para uma concretude muitas vezes cruel, para fora de casa, quase sempre falando de gente que foge de casa. Esse é o caso da empregada doméstica de Doramar e a Odisseia, que perambula pelas ruas tentando esquecer difíceis vivências que teve entre quatro paredes (o que é uma odisseia senão abandonar a segurança, para o bem e para o mal, de um lar?). No conto Meu Mar, uma senegalesa migra para o Brasil escondida num contêiner de navio e aqui continuará para sempre desterrada. Em Alma, como já dito, é uma mulher que foge do cativeiro com todas as ânsias por mínimas realizações. Até mesmo o carrasco do conto-título tem uma vida que não se conecta, não pode se conectar com a sua família, a não ser na violência – a crueldade contra galinhas – no quintal da residência que ela habita.

Em A Floresta do Adeus, a voz reverbera entre vários narradores, homens e mulheres separados por uma fronteira policiada por guardas armados. Sentimos o que passa pela cabeça de todos, a vontade de avançar para o outro lado do marco divisório, mas também para o corpo da pessoa amada, para a juventude e a vitalidade que o outro expressa, para a liberdade que, afinal, também é potência de cada indivíduo. No Manto da Apresentação, que traz outra situação de encarceramento, a voz na cabeça de Bispo do Rosário projeta nova forma de expansão, no espaço, no tempo e na redenção, e seria somente voz, no risco abstrato que mencionei, não se constituísse num roteiro para a elaboração das peças místicas que o artista fez com linha, agulha e tecido.

As opções feitas por Itamar, ao tempo em que lançam luz sobre personagens que desafiam o alijamento, também nos permitem encontros com o comum do mundo, com pessoas que poderiam ser considerados ainda mais irrelevantes na estratificação social. A empregada doméstica Doramar recorda-se de uma velhinha, vizinha de infância “...dona Santa, pequenina e encurvada, cabeça branca e pele negra, vestida de branco e a morar numa casinha no outro lado da rua…. Não lembrava ao certo de quando partiu… de quando viu sua casa fechar para nunca mais abrir. Casa sem eira nem beira, o telhado de limo velho e o pé fino de carambola a resistir em seu quintal” (p.130/131). Em Meu Mar, a imigrante senegalesa encontra vida e solidariedade numa camelô haitiana e num pescador que é quase paisagem de tão anônimo.

É interessante ainda a capacidade do escritor de interpretar – o autor como ator de diversos monólogos – os personagens femininos com as nuances de suas transformações físicas, gravidezes e velhices. Também o poder de encadear todos os elementos para conduzir ao clímax, como no A Oração do Carrasco, em que os fantasmas das vítimas do personagem principal lhe aparecem e “uns seguram o candeeiro para que ele tivesse as mãos livres para afastar a madeira queimada… Outros o alimentavam com matéria morta…” (p.86) e a voz do prisioneiro rompe “o som da madeira que queimava ao redor da prisão” (p.89). Ainda em relação ao carrasco, o desconforto é explícito no seu quintal, onde “Dois cães raquíticos disputam a cabeça da galinha abandonada ao chão” (p. 72) e a poesia atravessa a cena na forma de um filho já é falecido, apenas alma, como dito na trama, mas que reage aos diversos fatos.

Este é A Oração do Carrasco, de Itamar Vieira Júnior, autor de Dias (Caramurê, 2012), que na sua segunda obra obteve apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia. Alvíssaras, alafia! Comemoremos este mestre griô de prosa abundante e promissora.


Tuesday, August 15, 2017

As sombras no caminho


O caminhante que passa pelas estradas seguindo os rumos do sertão tem hoje a velocidade do automóvel e a companhia do telefone ao bolso. No entanto, já houve tempos de imenso pavor, quando nossos avós andavam a pé e as estradas davam susto em quem passava só.
Meu compadre Lula Desdentado jura ter visto o diabo num galho de árvore, e era meio-dia apenas. “O que ele lhe disse, Lula?” Eu perguntei. “Nada. Piou, virou pássaro, voou”
E sempre havia as almas nas trilhas das fontes, dos lagos, das águas, algumas delas já conhecidas das mulheres. Bastava uma dona se desgarrar e esquecer as orações e elas vinham atalhá-la. Nos caminhos das inúmeras capelas era também comum o cristão ser apelado, indo ou vindo da oração. Parecia sede o que as almas sentiam, ao que se dizia, que se lhes dedicassem prece.
Dia desses, era de tarde, eu vinha da Barragem e me lembrei dessas histórias. Eu senti uma friagem, um medo de ser roubado ou de bicho e amarelei, um papel velho. Sim, eu vinha só e sem reza, e o sol sumia nublado. Porém, devoto do Pobre Lázaro, confiei. Surgiu um cachorro enorme, que não sei de onde veio, e calado e manso me seguiu até a cidade, e sumiu no mesmo mistério. Meia légua durou aquilo, eu crendo que o cão queria um osso mas o carente era eu.
E houve sustos piores. Uma moça que conheci, Vera, hoje falecida, contava que em hora escura, passando por casa antiga, viu a porta de duas folhas fechada e uma cabeça aparecendo onde as folhas se juntavam. Ela, muito corajosa, enfrentou a assombração, morto dela aparentado: “Esconjuro, Adroaldo, deixe de patacoada!”
Já o avô de Ubirajara, que mora no João Vieira, certa vez teve visagem de gelar. Seguia ele madrugada, pela estrada estreita que o levava a uma urgência, quando assomou à distância um homem todo de preto, de pé, abraçado a um caixão. O avô, me falou Ubirajara, orou o credo dentro de si e, passando pelo danado, deu boa noite como se um vivo visse. Recebeu igual resposta assim educada, e ninguém morreu de medo.
Porém aqui o que mais assusta, a qualquer hora, é o silêncio, as picadas e os estalos da caatinga, o pio de ave agourenta, os leitos de cascalho seco sem vida. Não tanto as cruzes na estrada, os cemitérios de um só muro, os casebres em ruínas, as peças de roupas, as canecas e panelas amassadas e esquecidas por famílias que partiram, embora isso também.
Outras vezes, se foram assombrações nem saberemos de fato. Aquela baraúna, árvore imensa que nunca foi derrubada, mesmo com a estrada alargada à volta dela, aquela em frente à fazenda Guarani, é à noite assustadora. Tudo por quê?
Sempre foi passagem de funerais, de saimentos, de irmãos que carregavam outros para sepultamentos e ali paravam para repousar os ossos. Naquele instante, enrolados, os defuntos se alongavam também na grama. Por esse tanto a baraúna ficou falada, como toda árvore já é dita sombra de miasmas, mas aquela ainda mais.
Ali perto, uma vez o velho Nizo e o Zuza seu compadre passavam à noite e cruzaram com mulher toda de branco. Parecia ela viva, e levava um bebê embalado. Mais à frente, os camaradas comentaram:
— Você viu, compadre?
— Vi. Acho que o marido vem aí de frente.
Até hoje não apareceu marido, e se sabe que mulher não saía só àquela hora. Mulher era não.
Por último, o Oliveira irmão de Nizo viveu outra presepada, pois da baraúna até a cidade lhe acompanhou o som de um pandeiro tum-tum-tum. Digam-me se não foi merecido, sabem quando ele andou desprevenido? Noite alta, Sexta-Feira da Paixão.
Por que não dorme a gente da nossa terra? Por que nunca se aquieta?

Franklin Carvalho, com gravura de Marcelo Grassman

Friday, July 21, 2017

Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais


Pronunciamento durante o VIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais - ABEC - Florianópolis, 19 de julho de 2017 – 16h50 min







Prezados,

Minha intenção aqui é resumir a trajetória da composição do meu livro Céus e Terra, que foi lançado em novembro de 2016 e que foi editado justamente por ter ganho o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço Nacional do Comércio daquele ano na categoria Romance.

O Prêmio SESC recebe para análise originais que estão cobertos por pseudônimos, ou seja, os candidatos à premiação não são conhecidos da comissão julgadora até a divulgação do resultado. Na edição de 2016 foram recebidas 794 candidaturas somente na categoria Romance e isso é muito relevante porque atesta mais uma vez a validade do certame. Além disso o fato é significativo para nós por ser vencedor uma obra cuja temática está enredada na pauta do presente encontro.

Para ser mais claro, devo apresentar-lhes o que chamo de “A carne do livro”, ou seja, a história que ele narra. Céus e Terra fala de um menino pobre do sertão baiano apelidado de Galego, órfão, pobre, sem instrução e mesmo sem educação religiosa, serviçal de uma fazenda, que é convocado para ajudar a salvar um homem crucificado. Os dois acabam morrendo logo na primeira página. Galego sequer seria enterrado num cemitério (teria sepultura na fazenda em que tombou) não fosse o fato de ter morrido junto com um adulto. Após a inumação, e sem ter noção do lugar para onde deve ir, o garoto de 12 anos vaga como uma espécie de fantasma, sem sentir dor por seu próprio falecimento, e passa a acompanhar a rotina da pequena cidade onde vivia. Aos poucos, ele passa a compreender os símbolos, medos e tradições locais em torno da morte, enquanto procura montar um roteiro de transcendência.

Para mim, o Prêmio Sesc trouxe dupla felicidade, tanto por contemplar a literatura ficcional quanto por, de certa forma, reconhecer a pesquisa que eu vinha realizando, e que mais à frente devo detalhar.

Não é mistério que os mais criativos escritores podem elaborar suas obras a partir de episódios reais. De fato, algumas mortes, como a de meu pai e de amigos na infância influenciaram toda a minha biografia. De fato, passei a minha juventude intrigado com a temática da morte e seus símbolos, caixões e cemitérios, às vezes com algum susto, às vezes somente com estranhamento, mas também com alumbramento estético.

Em certa etapa eu, que sou jornalista, resolvi encetar o projeto de fazer um mestrado em Antropologia e me meti a estudar o assunto que mais me amedrontava e fascinava, a morte. Antes mesmo da seleção e para propor um projeto de estudo consistente, comecei a bater-me com a literatura citada comumente como referência, como é o caso de Phillippe Ariés, de certa forma contestado entre os antropólogos. Também segui por Kubler-Ross, Jean Ziegler, Juana Elbéin dos Santos (Os Iorubás e a Morte), Edgar Morin, João José Reis, Roberto da Matta e Maria Aparecida Vilaça (Fazendo corpos, a morte entre os índios, inclusive a antropofagia), entre diversas fontes, além daquelas do instrumental teórico da disciplina antropológica.

Também, como referencial de campo, acompanhei durante meses o Apostolado das Almas, grupo de leigos, e a Pastoral da Esperança, equipe de diáconos católicos, que atuam em sessões de oração e celebrações (encomendações, no caso dos diáconos) no Cemitério do Campo Santo em Salvador.

Ao fim de 2008, no entanto, eu já tinha convertido o meu propósito para a redação de um romance que abrangesse o que eu capturei nas pesquisas, inclusive ouvindo fontes em diversas cidades e visitas a outros cemitérios, e também elementos de minha trajetória pessoal, embora não o quisesse autobiográfico. Busquei a partir daí uma solução poética, não mais científica, para os desafios que o tema da morte impõe. E para citar o tamanho do desafio, coloco aqui o que inferi a partir da leitura do livro Tabu da Morte, do sociólogo José Carlos Rodrigues: A morte é um evento tão sem sentido que ameaça o sentido de todos os outros eventos.

Foi de fato uma surpresa que este trabalho tenha superado os preconceitos que sabemos existir a respeito do assunto, que tenha conquistado o apreço dos leitores e seja hoje descrito como um livro “leve” e “suave” enquanto carrega no seu roteiro duas mortes violentas, a insinuação de um suicídio e um desaparecimento. Já no prefácio aviso que a obra foi feita para “enganar a morte”, e parece mesmo que logrei algum êxito, já que algumas resenhas críticas o consideraram uma abordagem não amargurada.

O meu objetivo, ao propor a apresentação neste encontro, é confirmar a sua filiação à temática órfica, e também dizer como a literatura ficcional pode contribuir para ampliar o debate sobre a dispersão, sobre vitória da entropia que a morte configura. Ainda, como a arte pode descrever os rituais religiosos e místicos em sua complexidade, além de falar sobre a ânsia de permanência que a certeza do fim nos traz.

Devo dizer que, ao relacionarmos história, cultura e cemitérios, nunca estamos fazendo o estudo de um passado diacrônico, mas a arqueologia de um passado que se impõe como permanência, na sincronia com nossa época. Não só os campos santos, mas costumes que tive a oportunidade de contemplar como a Festa de Muertos no México e a devoção às almas do purgatório, em Nápolis, dizem dessa vontade de superar a finitude.

Gostaria de concluir propondo dois pontos para a reflexão, que imagino relacionados ao propósito desse encontro, desejando que contemos mais e mais com pesquisadores que os enfrentem. O primeiro deles é o transumanismo, a tendência científica que trata justamente da permanência, um mundo em que a tecnologia se aproxima cada vez mais do registro total da consciência, inclusive usando vídeos, áudios, fotografias e inteligência artificial para presentificar os falecidos. O transumanismo, alías, tem outras proposições, inclusive suprimir a morte com manipulação biológica e genética, e carrega implicações éticas que já estão em debate pela forma como são manipuladas econômica e politicamente.

O outro ponto é a prática do Urban Exploration, ou Exploração Urbana, ou Urbex, que vem a ser uma espécie de hobby no qual grupos de amigos visitam lugares abandonados, casas antigas, hospitais, cidades que foram deixadas para trás, realizando uma arqueologia cemiterial fora dos cemitérios, observando traços materiais e colhendo sensações que ficaram retidas na cortina do tempo. Esses grupos têm deixado na internet um enorme volume de registros das suas incursões, revelando que é possível conviver com a morbidade e a melancolia e mesmo atravessá-las.

A tarefa é enorme e multifacetada, exigindo versatilidade de todos os colaboradores da ABEC. Mas este é o nosso desafio, que empresta algum sentido frente ao que parece ter sentido nenhum.

Muito obrigado.

Franklin Carvalho


VIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais – ABEC
Auditório da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), de 17 a 20/7/2017

Presidente da ABEC: Profª Clarissa Grassi
Presenças destacadas: Professoras Maria Elízia Borges, Cláudia Rodrigues, Elisiana Trilha Castro e Fabiana Fabiana Comerlato
Programação completa: http://estudoscemiteriais.com.br/index.php/viii-encontro-nacional-abec/

Monday, May 15, 2017

A Festa do Boi Roubado e o Século XXI da caatinga




Comparecer à Festa do Boi Roubado, no distante povoado. Visualizar dali as luzes que piscam de outros e outros agrupamentos, todos de casas minúsculas, como pequenos bairros pobres que tramam uma metrópole dentro da caatinga. Sentir o cheiro da terra molhada pela chuva e de fumaça de gasolina. Observar os meninos bêbados que voam de roça a roça, três por motocicleta, cortando o escuro de caminhos enlameados, rentes às cercas de arame farpado. Saber dos crimes de tráfico e de sangue no meio do mato e testemunhar a resignada mansidão das mães pobres.

Ouvir os amigos falando do sofrimento de um jabuti quando é esfolado vivo para ceder sua carne mínima ao paladar humano. Ser informado de que o jabuti se reproduz às pencas e, esperto, migra para outro mundo quando vêm as tempestades.

Acordar numa madrugada e ver os porcos e carneiros nus de pelos, postos sobre as bancas do mercado da cidade antes que os açougueiros os retalhem. Escutar no rádio uma música de 1970: “Nesta cidade todos têm felicidade. Eu só quero é lhe ver para nunca mais chorar”. Tomar café na Branca do mercado e ouvir também no rádio, mais uma vez e todo dia, um locutor pedindo a volta da ditadura.

Desejar a tempestade para todos os jabutis.

Lembrar do carro velho que nos levou para a festa no povoado, os amigos em silêncio singrando a pista de barro, a chuva no vidro. Dos jovens perto da fogueira, dez por família, todos com apelido de Inho. Recordar das corujas piscando assim que se fez estio.

Acordar de madrugada novamente e ver a revoada dos veludos na praça, em bandos como andorinhas. Cumprimentar o plantonista da funerária, que deixa a loja quando o dia clareia. Aborrecer-me com a fachada cínica do Banco do Aposentado. Ver a fila insone na sede da Assistência Social e o retorno dos esmoleres na praça, e pobres com medo de que o mundo mude. Encontrar já no sol da feira o velho João que xinga e ri, nossa, como ele ri resmungando da saúde.

Falar, com as lavradoras rurais no seu sindicato, contra os programas da TV assassinos ao fim da tarde e o destempero machista dos homens enciumados. Contar para a mãe que Machado, o melhor dos sanfoneiros, teve alta do hospital. Rir com ela. Rir em profundas confidências místicas com Almerinda, rezadeira nonagenária. Sobreviver aos anos 1970 de 2017.

Desejar a tempestade para todos os jabutis.


*Abraços para Mirian Carvalho, que me levou para a festa do Boi Roubado, no povoado do Pau de Rato, em Araci-BA, e para Gilma Reis, que me convidou para a palestra sobre Saúde Mental, do Coletivo de Mulheres no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na mesma cidade.