Wednesday, June 17, 2009




Liberdade, morte e consumismo
Franklin Carvalho
“Não sei pra que tanta agonia, depois morre e deixa tudo aí!”
Esse falar baiano, que o preconceito poderia atribuir injustamente à preguiça na Boa Terra, é, segundo o sociólogo suíço Jean Ziegler, o fundamento de uma verdadeira revolução libertadora do indivíduo. Em outras palavras, compreender que se vai morrer, usar essa crença para o desapego e triunfar sobre as exigências fúteis do consumismo e do estresse não é uma atitude deprimente, mas, ao contrário, amplamente emancipadora.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, ao contrário de nós, que crescemos temendo a simples pronúncia da palavra morte, Ziegler nunca se furtou a encarar o assunto. E podemos dizer “encarar” mesmo, já que, nos anos de 1960, viveu no Congo perturbado pela guerra civil e pela fome. Depois, veio ao Maranhão, à Bahia e ao Rio de Janeiro estudar a idéia de morte em religiões de matriz africana.
Pois bem, esse homem que foi professor da Universidade de Genebra e deputado pelo parlamento suíço, esteve no Convento de São Francisco, aqui em Salvador, e registrou uma frase que se encontra no relógio de sol: feriant omnes – ultima necat, ou seja, cada hora que passa fere, a derradeira mata. Nada mais simples, assustador e confortador; tudo é passageiro, tudo é efêmero, não há mal que dure para sempre nem bem que nunca acabe.
Mas Ziegler foi mais além, e no livro Os vivos e a Morte (Zahar, 1977) registrou que não existe igualdade diante da morte, mas grandes diferenças, a começar da expectativa de vida, que varia de acordo com a classe social, a raça ou a nacionalidade da pessoa. Outras diversidades surgem a depender das culturas, dos ritos funerários, ou seja, cada comunidade tem sua experiência de morte. A padronização desses ritos, o silêncio sobre o medo e a dor, que são sentimentos perfeitamente humanos, e a completa profissionalização dos funerais teriam razões políticas.
O livro merece ser resenhado mais de 30 anos depois da sua publicação, primeiro porque nos mostra que o conflito entre ciência e religião é uma armadilha, e que uma ideologia laica pode ser tão manipuladora e opressiva quanto um estado fundamentalista. Em segundo lugar, porque é atualíssimo na crítica à sociedade, citando Roger Bastide para condenar “a indiferença afetiva e o isolamento nas grandes metrópoles, a sexualidade reduzida à fornicação, a fragmentação de nosso comportamento cotidiano em consequência de pertencermos a grupos múltiplos, que nos impõem com frequência papéis contraditórios, a perda de sentimento de nossa participação no mundo social...”. Há algo mais parecido com o mundo da internet?
O sociólogo garante que quando as religiões convocam a uma reflexão sobre o tema da morte fazem o “combate e reivindicação de vida contra a ignorância organizada da sociedade mercantil triunfante”. Essa sociedade, ou melhor, o capitalismo, aliena o homem da sua consciência de finitude, aprisionando-o a ânsias e coisas efêmeras que antes possuem o consumidor do que são possuídas por ele.
Na Idade Média, explica, a morte encerrava a vida terrestre, mas prenunciava o início da aventura final do destino. Na Renascença, artistas e intelectuais assumiram a tarefa de produzir imagens que legitimassem o poder político e econômico, enfim, o capitalismo ascendente, e não reconheciam outras regras senão a tradição artística e intelectual. Até hoje essas categorias continuam exercendo o mesmo papel, mantendo essa legitimação nas universidades e em todos os ambientes de reprodução do capitalismo. Pior, querem fazer crer que a sua ideologia, a ciência, é uma lei universal da natureza humana, “quando se trata apenas de uma regra do cosmos cultural que o produz”.
Do alto de sua experiência na África, Ziegler discorre sobre a importância das religiões afro-brasileiras, e da visão nagô a respeito da morte, no enfrentamento dos horrores da escravidão. Ele também relata como, no candomblé, a crença num outro plano de existência faz parte do combate diário: “A linguagem branca se impõe pela repressão policial, a pressão social e o sistema escolar. A linguagem nagô vinga-se clandestinamente quando os brancos, torturados pela angústia da morte, vão consultar as grandes ialorixás do candomblé, à noite, em geral”.
E conclui: “Nenhuma teoria de desigualdade humana, nenhuma perversão racista ou imperialista, por mais sutil que seja, resiste diante da evidência e da angústia da morte... É preciso reintroduzir a morte na linguagem para com ela fazer o fundamento dinâmico do nosso combate igualitário”.
Eis uma proposição inegavelmente válida para questionar o desequilíbrio ético da humanidade. Serve também para quem deseja saber “pra que tanta agonia”. Devemos sempre ponderar diante dos desafios da vida, mas com a consciência de que já sabemos o final do filme, ou uma boa parte dele: O filme terá um fim. Aliás, os filmes terão fim, curtas ou longas metragens. Menos resmungo com o estacionamento do cinema, por favor!