Tuesday, May 06, 2014

Transumanismo – Por que tão longe da política?



Transumanismo é uma proposição científica que visa a usar as tecnologias (principalmente robótica, neurociência, nanotecnologia, genética e inteligência artificial) para aumentar as capacidades humanas, retardar o envelhecimento, eliminar as doenças e, inclusive, suprimir a morte. O transumanismo, como o próprio nome sugere, é considerado o estágio transitório para o posumanismo, onde homem e máquina, se tudo der certo, estariam perfeitamente fundidos.
*Todos os links mencionados neste resumo são sites mantidos por instituições científicas

Projetos em andamento ou na agenda transumanista:
- Aumento da interface homem-máquina. Comunicação direta cérebro-máquina pelo mapeamento dos impulsos elétricos mentais (projeto já em andamento – ver https://www.humanbrainproject.eu/pt)
- Aperfeiçoamento do corpo e do cérebro com próteses, não só para deficientes físicos (contexto atual de desenvolvimento industrial de próteses)
- Melhoramento genético da reprodução para evitar filhos com problemas ou para ampliar suas capacidades (projeto de mapeamento do genoma humano - http://www.genome.gov/)
- Singularidade tecnológica (a tecnologia ultrapassa a inteligência humana e passa a se desenvolver exponencialmente. A data estimada pelos cientistas para isso é 2045 - ver http://2045.com)
- Interface do homem com a realidade virtual (transferência de ideias do cérebro ou para o cérebro a longas distancias, experimentação de sensações, viagens virtuais ao invés de deslocamentos físicos).
- Presentificação do homem por meio de máquinas (por exemplo, uma sonda enviada a outro planeta pode ser controlada remotamente, como um corpo virtual - avatar - e devolver sensações ao seu usuário, não sendo necessário expor pessoas a longas viagens. O mesmo vale para as guerras. Criação de clones e androides - ver http://2045.com)

Questões conexas:
- Discriminação e segregação social dos não-melhorados
- Direitos humanos – direito de optar ou não de optar pela “melhora”, direito de melhorar ou não a sua descendência
- Empoderamento das máquinas pela Inteligência Artificial (a máquina pode se aperfeiçoar automaticamente e até se autorreproduzir).
- Estirilização, abortos forçados e genocídio devido à eugenia
- Possibilidade de uso da tecnologia para ainda maiores registro, investigação ou espionagem do pensamento individual e social
- Necessidade de controle de natalidade (uma vez que diminuirá a taxa de mortalidade)
- Previdência social (em função do aumento da longevidade)
- Governo único (nova política)
- Novas formas de produção, “turbinação” do capitalismo. Revolução no mercado de trabalho, eliminação de profissões
- Embates filosóficos e teológicos. Oposição/negação da religião (A Igreja Católica é contra o Transumanismo – ver Pontifícia Universidade de Roma:http://www.zenit.org. O Dalai Lama e os mórmons - http://rationalfaiths.com - se manifestaram favoráveis)

Aspectos críticos
- O Transumanismo ocorre em condição desfavorável ao ser humano, em contexto de desequilíbrio ecológico
- Desigualdade brutal no acesso à tecnologia, devido aos desequilíbrios econômicos e políticos. Algumas comunidades também podem recusar a transição por questões culturais. Seriam esmagadas?
- Transição é realizada por corporações capitalistas gigantescas (google, facebook, microssoft e pelo bilionário russo Dmitry Itskov, este último responsável pelo projeto Avatar, ou Iniciativa 2045 – ver http://2045.com) e por instituições militares (DARPA – The Pentagon’s Research Arm e governo da China)
- Falta de transparência. O processo ocorre à margem das instituições políticas e sociais atuais (governo, religião etc), que são consideradas defasadas no contexto transumanista e, por isso mesmo, deslocadas do debate
- Histórico de tecnocracia que é marcado pela junção entre alienação política dos cientistas somada aos interesses do capital, com prejuízo ao bem-estar social

Participação
- A transição é inevitável, segundo  Diego Caleiro, diretor do Instituto Ética, Racionalidade e Futuro da Humanidade (www.ierfh.org). Para este filósofo especializado em biologia e psicologia, a singularidade tecnológica é o maior desafio da história da humanidade. Ainda de acordo com Caleiro, a única solução é tornar a Inteligência Artificial amigável (o homem terá sempre acesso ao código-fonte das máquinas, sendo senhor do desenvolvimento delas, ou seja, a máquina não poderá “esconder o que pensa” – expressão nossa). 
- O Transumanismo deve ser vinculado a valores humanos, à distributividade e à participação política. Caso isso não ocorra, será apenas mais uma ferramenta do capitalismo ou outro sistema econômico para aumentar o poderio econômico e policial de uma minoria. Se descontrolado, num contexto ambiental favorável à extinção da raça humana, pode significar um mundo de máquinas, que, afinal de contas, só precisam de energia para habitarem o planeta.
- Notícia da AFP (https://br.noticias.yahoo.com/transumanismo-melhorar-homem-substitu%C3%AD-lo-ciborgues-200659875.html): “O cientista americano Ray Kurzweil, apóstolo do transumanismo, prevê que, a partir de 2029, a inteligência artificial vai igualar a do homem. Para Kurzweil, autor do livro "When Humans Transcend Biology ou The Age of Spiritual Machines", entre outros, a partir de 2045, o homem deverá estar ligado a uma inteligência artificial, o que permitirá a ele aumentar sua capacidade intelectual um bilhão de vezes, um destino de ciborgue.
No extremo, Hugo de Garis, especialista australiano em inteligência artificial, promete um futuro mais negro. Antes do final do século, uma "guerra exterminadora" deverá opor os "seres humanos" às máquinas inteligentes e aos "grupos que querem construir esses deuses", alertou, durante uma conferência realizada domingo passado em Paris pela Associação francesa transumanista (AFT Technoprog)”.


- Recomenda-se a palestra de Diego Caleiro (Diego Caleiro - Inteligência Artificial e Transhumanismo - IME- USP) no link seguinte: 
https://www.youtube.com/watch?v=LV-PG2Cw0V4



Semana Santa em Araci – Momentos de perfeição estética

A tradição da Semana Santa em Araci (BA) inclui duas cerimônias que se destacam pelos seus significados, beleza e emoção ímpares, mesmo numa região, o semi-árido baiano, onde a devoção é manifestada de forma marcante. A primeira destas cerimônias, a Procissão do Fogaréu, pode ser reconhecida à distância, pelas fotografias que registram centenas de fiéis iluminando a noite da quinta-feira portando velas, subindo e descendo o morro do Bonfim. O segundo evento exige o comparecimento, certa dose de dedicação e mesmo de sacrifício. É o conjunto definido pela procissão e pela vigília da Paixão, ambas na sexta-feira, iniciando por volta das 18 horas e prosseguindo, num crescente de sentimento, até a meia-noite.
 
Da quinta-feira, pouco se necessita falar, já que as fotografias são reveladoras e estão hoje em vários sítios na internet e nas redes sociais. Resta anotar que a própria Igreja tem providenciado nos últimos anos copos de papel cada vez mais decorados que são entregues aos fiéis para protegerem as velas dos ventos. É um produto artesanal, vendido à porta do templo momentos antes da procissão do fogaréu por um preço simbólico.
 
Quanto à Paixão, é preciso integrar-se à procissão que percorre as ruas do centro para entender o coro comovido de homens e mulheres dos mais distantes cantos do município,  inclusive da zona rural, idosos, jovens e crianças que perpetuam uma solenidade antiquíssima, reiterando as canções que marcaram a história da cidade. De fato, é indispensável estar cercado pelas gentes, principalmente nos momentos em que o cortejo dobra as esquinas, para ver subir o lamento até o tom uníssono. Os “puxadores” das rezas recitam as estrofes, mas é na hora do refrão que se percebe o sentimento coletivo da massa sempre contrita, em perfeita sintonia, revelando seus valores e sua cultura.
 
É como um momento de transe geral, que só quem viveu pode descrevê-lo, e que dura muito pouco, tanto quanto a brevidade do percurso. Ao mesmo tempo profundo e envolvente, a cerimônia toma cada participante de tal forma que é inevitável se integrar. Seria como estar numa onda e não singrá-la, ou ver as festas mais modernas e elaboradas, cada vez mais cheias de recursos audiovisuais, sem se contagiar. Soma-se a tudo isso a marcante interpretação de Verônica – sim, o termo é interpretação, já que é realizada com toda a dignidade do teatro – feita por uma moça do povo que pronuncia a cada esquina: “Ouvi todos que passais a caminho do labor, atendei vede se há dor igual à minha dor”. Não há outro momento de tão completa significação artística na cidade.
 
Encerrada a procissão, as imagens são postas dentro da igreja para serem veneradas e aí já começa a vigília, com os fiéis beijando o manto de Nossa Senhora das Dores e o Cristo Morto. Paralelamente, o Grupo de Canto da igreja continua os hinos de lamento, mas de forma ainda mais encorpada, aproveitando a acústica do templo. Isso vai prosseguir por horas, e lá estará de novo a população respondendo com o refrão, até o cansaço desarmar a todos. Quanto mais a hora avança, maior o desgaste, mas a resistência é surpreendente. Já pela metade da cerimônia, as vozes esgotadas se aproximam umas das outras, o langor é comovente, as pessoas fecham os olhos com sono e já não precisam lembrar-se do que ocorre lá fora. Estão realizando os mesmos gestos dos antepassados, numa ação que é sim dolorosa, mas sublime, e que, por isso mesmo, lhes resgata de outras dores do cotidiano. Para completar, as luzes da igreja são diminuídas e começa o Ofício da Paixão, que segue entoado, com o mesmo sentimento de melancolia, por mais uma hora até o fim da celebração.
 
 
O registro de todas estas coisas, além de buscar descrever o mínimo da tradição, pretende servir de introdução para um debate que a cidade de Araci precisa urgentemente realizar. Listo abaixo algumas das críticas que ouvi com relação à manifestação cultural da Semana Santa e o ponto de vista de alguém que participa dela há décadas, seja fotografando, escrevendo e também como devoto.
 
- A tradição está esvaziada e desorganizada – O público da Semana Santa tem se mantido basicamente o mesmo. Não cresceu, comparada ao aumento da população, mas não perdeu a participação, salvo em anos de notável dificuldade para acesso das comunidades mais pobres, como foi a seca de 2013. Quanto à organização, é preciso lembrar que a população simples tem um jeito despojado de agir. Algumas correntes dentro da igreja sempre tentaram e tentam uma uniformização, com razoável sucesso, mas a naturalidade dos homens e mulheres locais muitas vezes recusa a formação de filas nos cortejos, o que não chega a comprometer os eventos. Sempre foi assim, a despeito de quem pretenda um espetáculo militarmente “organizado”, para turista ver. Por outro lado, o poder público, quando tenta interferir com guardas, carros de controle e outras regras, mais atropela do que ajuda.
 
- A Semana Santa exalta a dor e é deprimente – A dor é uma expressão humana tão válida quanto qualquer outra, e inspirou belíssimas obras de arte em várias sociedades. Somente para tomar alguns exemplos, é responsável pela ópera, pelo tango, pela tragédia grega e diversas outras formas artísticas, até mesmo o samba (“Pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza”). Por outro lado, se nos acovardamos perante a dor, podemos recair no outro extremo, o oba-oba e a diluição, que resulta em produções fáceis, baratas e varejeiras que abundam na mediocridade dos meios de comunicação social.
 
- A Semana Santa é uma manifestação exclusivamente católica, dispensável para o município – Araci foi totalmente desfigurada nos últimos anos com a destruição de todas as casas mais antigas, e restam somente poucas coisas conservadas desde os primeiros anos da cidade como a capela do Bonfim, o cemitério velho e a tradição da Semana Santa. Somente quem visualiza estes elementos pode entender a história da cidade. Se são todos eles católicos, isso se deve ao perfil – passado e presente - da comunidade. É também este perfil que explica porque esses monumentos materiais e imateriais ainda estão de pé. Varrer estes símbolos seria como destruir as estátuas mitológicas da Grécia, as pirâmides do Egito e grande parte da arte do mundo somente porque tem origem religiosa. Em tempo: destaque-se ainda como símbolos de resistência cultural araciense o reisado, as canções de lavoura, banda de pífanos e outras manifestações festivas.
 
 - A religião é inútil, significa atraso cultural – Nada assegura que pessoas não-religiosas sejam mais cultas, menos preconceituosas, mais solidárias ou que estejam mais preparadas para os desafios do futuro. Pelo contrário, a religião pode ser um poderoso instrumento de organização social e a Semana Santa é o coroamento de campanhas da Fraternidade que, nos últimos anos, levou a debate temas como a Ecologia (“A Terra Pede Socorro”), o Tráfico de Pessoas etc. Além do mais, diante de um cenário em que a tecnologia dispersa as pessoas e o próprio sentimento humano, além das inseguranças do transumanismo, é cada vez mais relevante ter esta referência comunitária para enfrentar o embrutecimento. Além do mais, o sentimento religioso, por si só não compromete o senso crítico, que se pronuncia dentro e fora das congregações.
 
 
Por último, há outros fatores que precisam ser considerados: esta tradição funciona independente de grandes aparatos, como um sistema perfeito. Os participantes já a têm integrado no seu calendário anual, sabem de cor o que devem fazer e não precisam desembolsar além das suas capacidades – ao contrário, a adesão é gratuita. Ressalte-se também que novas gerações vão aderindo e assumindo posições-chaves na realização dos eventos.  Deve-se ainda reiterar que as manifestações dispensam influências exteriores, das cidades vizinhas, sendo que cada município da região encaminha sua própria forma de manifestação no período. Assim como Araci, somente Araci. E os cantantes da igreja – Grupo de Canto e população –, com a sua simplicidade, protagonizam momentos de encantadora excelência estética no sertão da Bahia.