Sunday, February 24, 2008

Morte Líquida 3 - O homem transcendental ainda é homem?

O que me parece ser uma linha de investigação urgente é aquela que diz respeito à morte como identidade final versus a morte como fim das representações. Sim, porque essa idéia de que justamente no momento em que o homem encontrara Deus se faz a negação do homem? D’Assumpção fala em perecimento de um “eu exterior”, que representa o individuo em suas relações com o mundo material e – é bom destacá-lo – com o mundo social. Em seu lugar sobreviria um eu interior, trinitário como o primeiro (formado por espírito, mente e corpo,) mas com total consciência espiritual e corpo e mente reconfigurados fora do contexto espaço-temporal. Ali, onde não haveria nem espaço nem tempo, também não haveria futuro, nem envelhecimento nem morte. Eis a eternidade, mas o autor fala de um homem reconfigurado ligado a Deus, caminhando para Deus, e explica:
Quando o homem morre, ocorre o momento mais importante de sua existência seu Homem Exterior desaba, deixando emergir totalmente o seu Homem Interior. Todas as máscaras usadas durante a vida física se desfazem e o Homem Interior, com todas as marcas do Home Exterior, assume plenamente... Será este Homem Interior que, em função de tudo o que viveu em seu tempo de vida física, de todos os seus atos e decisões, palavras e pensamentos, assumidos com o pleno uso do livre-arbítrio, irá tomar a sua decisão final e definitiva: com Deus ou sem Deus” (D’Assumpção, Evaldo Alves, Os que partem Osque ficam, Ed. Vozes, 7ª edição, Petrópolis, 1990, Pgs. 85-86).
Mais à frente: “A maneira como vivemos na unidade Homem Exterior – Homem Interior será o parâmetro utilizado pelo Homem Interior para tomar a sua decisão. E Deus irá, não como juiz mas como Pai, receber esta decisão e respeitá-la inteiramente... Mesmo desejando ardentemente que a decisão seja por Ele, acatará a decisão “sem Ele”. E esta decisão, repetimos, será por toda a eternidade, por não haver um futuro para mudança. Onde inexiste o tempo, inexiste o futuro. A decisão, “para Deus”, corresponderá ao alcance da plena e perfeita felicidade: é o céu de nossa infância” (idem, pg. 86)
Observemos mais uma vez aqui que a expectativa da reaização pós-mortem é a expectativa de um novo eu, ou de uma reforma na representação de si mesmo, consoante com a idéia de imperfeição do humano, mas também de um ego que, individualmente e sozinho, não pode sobreviver eternamente, que não se sustenta – ou que não se suporta, ou, ainda, que não suporta a vida – eternamente.
2) Gostaria de localizar em diversas correntes religiosas do espectro umbanda-espírita-católica, essa reafirmação do “mundo” – plano existencial dos vivos, em contraposição com o plano transcendental dos mortos – como um lugar sujo, inverso de um “além” puro e ideal. Mais importante ainda, as perguntas são: por que Deus é identificado no segundo plano, da negação do ego, e por que a religião e a prática religiosa representam a diluição do ego (Lévi-Straus, O Feiticeiro e o seu feitiço”). O problema é que a oposição ego X Deus, que parece tão cara à psicologia, no instrumental teórico da antropologia só pode ser apreendido na forma representações X representações do divino. Começo a compreender, então, que as representações relativas à morte podem ser colocadas diante de outras situações limítrofes, mas ainda é precisso assenhorar-se de uma ferramenta teórica que enquadre essas crises que passo a chamar de “pequenas mortes” (sem trocadilho com a expressão francesa para designação do orgasmo): A catarse na renúncia ao alcoolismo, as conversões, as curas xamânicas e outros processos que, auxiliados e mediados religiosamente, renegam a autonomia do indivíduo diante do coletivo religioso e/ou do coletivo espiritual.

Memorando Morte Líquida 4

1) “-Por que você não se deixa morrer, Bingo?”.
“- Não sou infeliz o suficiente. Não sou feliz, mas também não sou infeliz o suficiente”
Esse diálogo, dito na Peça Rough for Theatre, de Samuel Becket, revela bem o que Norbert Elias critica no Teatro do Absurdo, a intenção de conceber a vida de cada um como um palco individual. Elias denuncia que esse tipo de visão se esgota no indivíduo buscando em si mesmo o sentido para a vida. E se frustrando, porque o sentido de nossas vidas está nos que nos cercam. De fato, Becket concebia persoagens isolados, incomunicáveis, muitas vezes deficientes físicos inacessíveis e arredios. Esta visão se radicaliza na trilogia Malone, em prosa, mas em todo campo becketiano não há função para a comunicação, nem para as ações, talvez somente para os pequenos objetos, erráticos . Acredito, no entanto, e aposto nisso o Nobel de Literatura concedido ao irlandês, que é essa defesa apaixonado e vigorosa do individualismo que torna a sua obra um marco na história da humanidade.

2) Algumas considerações que faço com relação à minha pesquisa sobre a morte:
a) Não pretende ser uma etnografia religiosa, a princípio, mas desde o começo se propõe questões abrigadas num locus social mais difuso. Se escolho como ambiente um cemitério ou uma igreja, ou determinado grupo social, o que devo observar não é a homogeneidade entre os atores, mas o choque entre eles ou o debate, principalmente;
b) De um ponto de vista pessoal, tive perdas marcantes na infância com o suicídio de meu pai e as mortes de meus melhores amigos em situações distintas. Esses eventos influenciaram um gosto literário pesado que, ao contrário do que acontece com outras pessoas, não se diluiu nos primeiros versos da minha juventude. Pelo contrário, o tema me perseguiu e me levou, por fim, ao encontro com o notável A morte é uma festa, de João José Reis, uma das motivações para converter em pesquisa as minhas inquietações.