Thursday, June 13, 2024

O homem que não sabia escrever

O homem que não sabia escrever

(Para Antônio Torres*) 


Naquele dia o homem não sabia escrever, jamais soubera.

Ele andava deserto pelas ruas de sua pequena cidade, iletrado igual nasceu, e a luz daquele dia o tornava também míope, com grave grau de embaçamento. Desistira, afinal, da palavra escrita.

Seguia sozinho, esquecido de suas antigas leituras e dos títulos oferecidos nas prateleiras das distinções. Não era mesmo, na sua memória, um nome de Letras e, talvez desejasse que os nomes e as letras o esquecessem.

Acabou indo parar na feira livre, o lugar mais seguro para quem evita as armadilhas domésticas que a morte urde.

Transitou pelos corredores tortos de barracas rústicas e parou no canto mais sinistro e escuro da feira. Sentou-se, enfim, num tamborete entre boxes que vendiam bebida, cercado de homens e mulheres embriagados e felizes.

Aquilo já era metade da tarde e o homem, ainda mais analfabeto que as pessoas à sua volta, baqueou por não saber se divertir daquele jeito. Notou que as mulheres, suadas e bêbadas de aguardente, tinham um pudor exagerado na defesa de uma beleza ausente, com um recato quase beato. Os homens, corroídos por suas rotinas precárias no trabalho ao sol, viam honra em ostentar qualquer delicadeza, um anel, um talismã, um chapéu, um relógio de pulso que os salvasse de serem totalmente pobres e rudes.

O homem recém-chegado lembrou-se de quando era criança e andava por ali mesmo, no meio de gente igual àquela, vendendo picolé ou mercando verduras ou tecidos, e que a tarde sempre era a hora de as vendas decaírem, principalmente se chovesse. Só quem tinha bar, e ele, quando menino, também atendera balcão de bar, via tarde e noite com bons olhos.

E agora, que vantagem grande! Agora que tinha desaprendido dos livros que prometeram salvá-lo, podia finalmente viver diferente.

E se fosse aquele estranho ali ao lado, de olhos vermelhos e rosto inchado? Essa era também uma forma de viver, não? E aquele outro, todo solícito, que bajula o cidadão que passa a troco de uns centavos para cigarros? E se fosse aquela mulher de vestido gasto, que apregoa mangas, as frutas murchas como seus seios, derramando mel dentro de uma bacia de alumínio, mamas vazando? Ou aquele outro, encardido, que nem os cães vadios toleram? Vida também, não? Se fosse neto e bisneto de pessoas de mínima herança e renovasse da sua própria forma erros e votos familiares de insuficiência?

Teria menos luz nos olhos? Isso é vida?

E se acreditaria amado e protegido pelos donos e patrões? E se sentiria mais pátria, igreja? Teria fé verdadeira em autoridades e documentos, em pessoas diplomadas?

O homem estava louco, ou bêbado sem uma gota de álcool, como o mais desconjuntado daqueles à sua volta, como um roto e mudo acocorado ao seu lado.

A única e grande diferença, e o homem não sabia descrevê-la porque não era, nunca fôra bom com as palavras, é que o seu coração continha ainda uma mágoa, uma lágrima, uma inquietação sem nome que era o seu amuleto, sua medalha, seu patuá.

Só por aquela condição não era totalmente cego, e tinha também alguma elegância.

Só por isso buscava naquela hora, na memória, alguma linha para formar letras, apenas um anúncio de traço que fosse, porque era o que lhe valia, por toda a vida: aprender, de novo e cada vez mais, a falar daquela gente que tanto o assombrava.

*Compartilhado por e-mail com o escritor em 10.6.2024




No comments: