Friday, June 27, 2008

Wednesday, June 25, 2008

2008.03.09 – Morte Líquida 7


1) A morte, para os vivos, é o triunfo da natureza. Mais ainda, é a humilhação inegociável, inescusável, inexorável que a natureza impõe ao homem. Como conceber, então que logo ali ele aponte para uma concepção da morte que seja a negação total da natureza, ou seja, o sobrenatural, o transcendental?


2) Por outro lado, reconhece-se que o corpo, sim, deverá ser entregue á natureza sem luta. Daquilo que vemos, nada se aproveitará. O enterro é humilhante, é agressivo, a sua visão é aterradora. Deve-se mesmo perguntar por que no século XXI, onde se poderia criar formas mais dignas de desfazimento de cadáveres, inclusive com a aceleração da sua decomposição para posterior guarda dos ossos, eles ainda são jogados num buraco.


3) No catolicismo popular brasileiro, para realizar o desfazimento, O corpo é alienado do defunto, e se torna a encarnação do paradoxo. Logo que a morte alcança o corpo, ele pertence exclusivamente à natureza. É a negação do ser social (Vinícius de Moraes: “E assim, quando mais tarde me procure / Quem sabe a morte, angústia de quem vive / Quem sabe a solidão, fim de quem ama” ), agora resumido ao indivíduo perante a natureza. Finalmente constituído como indivíduo, ou não-indivíduo, mas também não-sujeito social ou o silêncio dessas representações (Uma inscrição numa lápide em Serrinha é conclusiva: “Aqui jaz o corpo que Fulana desfrutou nesse plano astral”).


4) Também se usa dizer os restos mortais, mas a expressão “o corpo” ganha novo significado, despersonalizando o falecido, agora um objeto ao qual é necessário dar o devido encaminhamento. Essa despersonalização do corpo, ao negar a presença do finado na carne, prepara os vivos para o desfazimento, para a eliminação cadáver, desvalorizando (ou re-valorizando) o que será rejeitado (o corpo) e reafirmando a sua diferença em relação aos vivos e, por conseguinte, dos vivos em relação aos mortos. Os vivos têm nome, o morto é “o corpo”.


5) Observa-se aí, porém, também uma fragmentação do morto. O funeral pertence ao morto integral. Ele ali é trazido como vivo – o funeral como a sua festa, com seus convidados, todos os amigos e parentes, inclusive os inconciliáveis entre si – para a oração que encaminha o espírito e para o sepultamento do seu vazio e despersonalizado (Alphonsus de Guimarães: “Sua alma subiu ao céu / seu corpo desceu ao mar). Esse complexo nem sempre é assim configurado, e nem tanto pacificamente, principalmente quanto mais inesperadas e brutais as circunstâncias da morte no grupo familiar/comunitário. O que se suspeita é que esse é o modelo, o ideal.


6) Orfeu, deus da mitologia grega, tendo falecido a sua esposa Eurídice, vai ao inferno recamar que lhe seja devolvida a sua amada. Como forma de convencer Hades, rei dos mortos, Orfeu entoa uma canção de amor tão comovente que todas as almas do inferno choram e Hades consente em devolver-lhe Eurídice. O rei impõe, porém , como condição, que, até a saída do inferno, Orfeu não olhe para a sua esposa. Orfeu, porém, não resiste, olha para ela, perde –a para sempre e volta sozinho ao mundo dos vivos onde é devorado pelas bacantes.


Essa história sempre me intrigou pela questão que me impunha e que me parecia ser a mais natural de quem quer que a ouvisse: Porque Orfeu não resistiu e olhou para Eurídice antes de sair do inferno? Cheguei mesmo a duvidar do seu amor por ela, como se tivesse bastado ao deus provar e vencer a resistência de Hades. Passei anos com essa questão e segui crendo que se tratava de uma história de amor impossível, pois Orfeu não terá Eurídice nem na terra ( a sua morte aconteceu na noite de núpcias), nem no inferno, nem de volta à terra, nem se fala disso após a sua (dele) morte.


Busquei,no entanto, outra alternativa: Orfeu, promovido pelo rei Hades, não pode ceder à paixão por Eurídice, que representaria um tipo de amor subalterno, fútil, diante do valor maior, a arte. Esse era apenas um exercício de livre pensar – que parecia naufragar em si próprio, posto que Orfeu não finaliza a sua trajetória em hades, mas dele também se separa – mas que me abriu a consciência para o detalhe que fecha o raciocínio. Por fim, me ocorreu que o mito Orfeu-Eurídice-Hades, como todo mito, encerra uma sentença léxica, uma moral, e que antes de perguntarmos porque Orfeu transgrediu a norma, é preciso saber porque ele foi proibido de olhar a esposa.


A resposta que me pareceu óbvia é que Eurídice estava morta, portanto não podia ser desejada. Talvez, depois que regressasse do inferno, voltasse a viver, ela pudesse ser objeto de amor, de admiração, do “olhar” apaixonado. Enquanto morta, porém, não poderia squer ser considerada. Esse é um mito de interdição, portanto, da interdição do morto, que não pode ser desejado.


Talvez Eurídice voltasse á vida se Orfeu completasse o recomendado, mas como trazer da morte alguém amado, se é proibido amar (tanto) esse alguém morto?


Pode ser também interessante entender esse mito como representação de um tabu acerca do corpo e, por conseguinte, da sexualidade dos mortos.