Monday, July 29, 2024

A terra, o homem, a luta

Publicado no Jornal A Tarde de 2.7.2023


Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de neblina quando ele viu o prefeito inaugurar a Casa do Vaqueiro nas terras do Tabuleiro do Itapucuru. Ó, grande amor; Ó alegria; Ó Luz Celeste no peito!

Logo ele, Sinhô da Chã, agricultor de unhas duras, marcado por espinhos da caatinga, que tinha construído casa semelhante, mas rústica, com seus companheiros de vaqueirar, anos antes, no mesmo lugar. 

O Tabuleiro é aquela imensidão entre o agreste e a caatinga, e, quando chegava a seca no sertão era para lá, para as terras frescas, que homens e gado do semiárido fugiam. Porém o Tabuleiro é friíssimo no inverno. Melhor que houvesse abrigo para os nômades, que chegavam com seu parco farnel de charque e farinha. A casa velha de taipa caía, mas o prefeito entregou a nova de alvenaria.

Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de sangue quando o arame farpado cercou as rotas do Tabuleiro. Nunca se viu tanta cerca, tantos donos novos com documentos antigos, e houve mesmo um projeto do maior banco da Bahia que, nem apresentou papéis, abocanhou milhares de hectares. Não havia mais lugar para pasto, e a Casa do Vaqueiro também ficou espremida entre os gigantes, esmagada. A história do pastoreio dos encourados, de mais de cem anos, desmaiava. O governador, na Capital, assim havia determinado.

Eram os anos 1970 e logo a seca voltou a lançar seu alarido tétrico. Os sertanejos, como de costume, levaram os bois magros ao Tabuleiro, mas os bichos morreram de surpresa e de fome. O gado não podia vaguear no ar nem voltar da migração, tão enfraquecido estava. Dentro da fazenda do banco, a comida se perdia. Os vaqueiros de unhas duras se destemperaram e derrubaram rios de cerca, mas logo, logo, eles próprios se viram cercados por policiais. 

Era um tempo medonho aquele, parecido com o nosso, mas pior que o nosso. Os olhos de Sinhô da Chã se encheram de silêncio. O vaqueiro da casa de taipa morreu por aqueles dias, desgostoso.

Anos depois, o banco faliu e o Tabuleiro mudou de donos. Mas até hoje a terra é indomada: vastidão e descampado. Dias faz, um homem por lá se perdeu e só o acharam semanas depois, morto de andar sem ver comida, ou casa, ou alguém que o resgatasse.

Somente torres eólicas pontilham agora os morros e arrotam urros quando o vento corta o agreste. Muito triste o lamento das torres, lembra o gado que se perdia ao longe, nos muricizeiros. Nem ao antigo Cruzeiro do mais alto morro, nem na Semana Santa, se tem autorização para entrar.

Ouvi de Migdonio, neto de Sinhô, e de outros homens, estas histórias de vaqueiros. Quando eles as contam, salvam gado e homens do latifúndio do esquecimento. E quando eu as conto, salvo-me também do labiríntico descampado do silêncio.


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