O caminhante que passa pelas estradas seguindo os rumos do sertão tem hoje a velocidade do automóvel e a companhia do telefone ao bolso. No entanto, já houve tempos de imenso pavor, quando nossos avós andavam a pé e as estradas davam susto em quem passava só.
Meu compadre Lula Desdentado jura ter visto o diabo num galho de árvore, e era meio-dia apenas. “O que ele lhe disse, Lula?” Eu perguntei. “Nada. Piou, virou pássaro, voou”
E sempre havia as
almas nas trilhas das fontes, dos lagos, das águas, algumas delas já
conhecidas das mulheres. Bastava uma dona se desgarrar e esquecer as
orações e elas vinham atalhá-la. Nos caminhos das inúmeras
capelas era também comum o cristão ser apelado, indo ou vindo da oração. Parecia sede o que as almas sentiam, ao que se dizia,
que se lhes dedicassem prece.
Dia desses, era
de tarde, eu vinha da Barragem e me lembrei dessas histórias. Eu
senti uma friagem, um medo de ser roubado ou de bicho e amarelei, um papel velho. Sim, eu vinha
só e sem reza, e o sol sumia nublado. Porém, devoto do Pobre Lázaro, confiei. Surgiu um cachorro enorme, que não sei de onde veio, e calado e manso me
seguiu até a cidade, e sumiu no mesmo mistério. Meia légua durou aquilo, eu
crendo que o cão queria um osso mas o carente era eu.
E houve sustos
piores. Uma moça que conheci, Vera, hoje falecida, contava que em
hora escura, passando por casa antiga, viu a porta de duas folhas
fechada e uma cabeça aparecendo onde as folhas se juntavam. Ela,
muito corajosa, enfrentou a assombração, morto dela aparentado:
“Esconjuro, Adroaldo, deixe de patacoada!”
Já o avô de
Ubirajara, que mora no João Vieira, certa vez teve visagem de gelar.
Seguia ele madrugada, pela estrada estreita que o levava a uma
urgência, quando assomou à distância um homem todo de preto, de
pé, abraçado a um caixão. O avô, me falou Ubirajara, orou o credo
dentro de si e, passando pelo danado, deu boa noite como se um vivo
visse. Recebeu igual resposta assim educada, e ninguém morreu de
medo.
Porém aqui o que
mais assusta, a qualquer hora, é o silêncio, as picadas e os estalos
da caatinga, o pio de ave agourenta, os leitos de cascalho seco sem
vida. Não tanto as cruzes na estrada, os cemitérios de um só muro,
os casebres em ruínas, as peças de roupas, as canecas e panelas
amassadas e esquecidas por famílias que partiram, embora isso
também.
Outras vezes, se
foram assombrações nem saberemos de fato. Aquela baraúna, árvore
imensa que nunca foi derrubada, mesmo com a estrada alargada à volta
dela, aquela em frente à fazenda Guarani, é à noite assustadora.
Tudo por quê?
Sempre foi
passagem de funerais, de saimentos, de irmãos que carregavam outros
para sepultamentos e ali paravam para repousar os ossos.
Naquele instante, enrolados, os defuntos se alongavam também na grama. Por
esse tanto a baraúna ficou falada, como toda árvore já é dita
sombra de miasmas, mas aquela ainda mais.
Ali perto, uma
vez o velho Nizo e o Zuza seu compadre passavam à noite e cruzaram
com mulher toda de branco. Parecia ela viva, e levava um bebê
embalado. Mais à frente, os camaradas comentaram:
— Você viu,
compadre?
— Vi. Acho que
o marido vem aí de frente.
Até hoje não
apareceu marido, e se sabe que mulher não saía só àquela hora.
Mulher era não.
Por último, o
Oliveira irmão de Nizo viveu outra presepada, pois da baraúna até
a cidade lhe acompanhou o som de um pandeiro tum-tum-tum. Digam-me se
não foi merecido, sabem quando ele andou desprevenido? Noite alta,
Sexta-Feira da Paixão.
Por que não
dorme a gente da nossa terra? Por que nunca se aquieta?
Franklin Carvalho, com gravura de Marcelo Grassman
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