Cheguei ontem em casa e encontrei todos os móveis cobertos com uma lona preta, numa situação que sugeriria uma instalação artística, uma mudança de móveis ou uma residência desabitada. Nada disso, apenas uma reforma, uma pintura que se arrasta, deixando os cômodos em luto. Nada teria tanto peso não tivesse eu vindo de um hospital, na verdade o necrotério de um hospital onde fui ver a saída do corpo de um amigo, o doce Albert. Ele esteve internado por quatro meses com infecção óssea, num quadro de anemia falciforme, dependendo de atendimento na rede pública, e finalmente capitulou, depois de sofrer toda espécie de dor física, delonga, desleixo, depois também de contar com a abnegação da mãe e das irmãs, e de alguma ajuda de seus amigos que, infelizmente, não suplantaram as carências dos hospitais do estado.
Passei a noite no
apartamento em caos, reduzido à minha cama empoeirada no quarto em
que a reforma ainda não chegara. A cabeça girava enquanto tentava
esquecer o sofrimento do meu amigo de 21 anos, que conheci há cerca
de onze meses, e que só me solicitava livros nas vezes em que nos
falávamos. Hoje, quando acordei e me dirigi ao cemitério para o seu
funeral, fui lembrando desse convívio ensolarado e pensando em dizer
algumas palavras antes do sepultamento, mas demonstrei a mesma
confusão que exprimo nessas linhas. O velório estava cheio de
colegas de escola do rapaz negro, dono de uma simpatia e de uma
beleza radiantes. Os próprios jovens e seus professores improvisaram
alguns discursos emocionados e tudo era cabível, e então entendi
que a morte é um happening.
Digo isso porque de
fato ocorre tudo e nada, é caos mesmo: não consegui chorar nem
falar, não soube explicar com todas as palavras porque eu estava
ali, o que me unira a ele, o quanto esperei, em segredo, que
melhorasse e viesse estar comigo, e sonhei tanta beleza em um delírio
descabido. Nem ele me autorizaria propor alguma fórmula tão clara,
embora falássemos em viajar, em ficar juntos no meu apartamento por
alguns dias, mais do que ficamos no passado.
Deixei o choro
imerso naquela mistura de sentimentos e fiquei zanzando na área do
velório, aproximando-me e afastando-me, enquanto as muitas pessoas
se chegavam ao falecido. Na hora do cerramento do caixão, a irmã
mais nova, quase uma criança, colocou na urna funerária alguns
muitos doces, barra de chocolate, pacote de amendoins, leite em pó e
outras comidas que Albert quis ter na sua vida de alimentação
regrada, tanto pela limitação que a anemia lhe impunha quanto por
falta de recursos financeiros.
Fechou-se a tampa, o
professor de karatê e seus alunos robustos, ex-colegas do morto,
fizeram questão de carregar o caixão ao ombro, como sinal de honra:
Albert tinha aguentado bravamente a dor, resignado e calmo, era um
rapaz sereno e bom, merecia. Selou-se a gaveta de alvenaria com
cimento e voltamos para a nossa vida, tentando encontrá-la onde a
deixamos.
E são as coisas
boas, mais do que as más, que me lembram daquele que me chamava tão
ternamente de “amigo”, quando o encontrava sorrindo no leito
desaparelhado do hospital. É a boa música que toca no rádio e
sugere romance ou diversão (sim, espero que ele esteja se divertindo
em algum lugar, surfando como nunca o soube fazer aqui, ou imerso em
imensa biblioteca, cheio de doces e de risos), ou mesmo que remete a
alguma melancolia. Quando falo do livro que escrevi, recordo de como
ele me ajudou no lançamento, e como era entusiasta deste tímido
escritor.
Não o esqueço, não
posso. Apenas dilato o lamento em horas esparsas, acompanhado das
melhores memórias. Assim procuro preencher este luto que terá que
acabar, para que eu prossiga, para que prossigamos todos. Meus móveis
ainda estão enlutados, mas espero a qualquer hora descortinar as
novas tintas, ver a luz que ainda me chega miúda. E desejo a esse
meu caro, meu anjo, a paz que merece uma pessoa tão ensolarada. Siga
com Deus, meu companheiro Albert.
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