Wednesday, October 04, 2017

Em paz, Albert





Cheguei ontem em casa e encontrei todos os móveis cobertos com uma lona preta, numa situação que sugeriria uma instalação artística, uma mudança de móveis ou uma residência desabitada. Nada disso, apenas uma reforma, uma pintura que se arrasta, deixando os cômodos em luto. Nada teria tanto peso não tivesse eu vindo de um hospital, na verdade o necrotério de um hospital onde fui ver a saída do corpo de um amigo, o doce Albert. Ele esteve internado por quatro meses com infecção óssea, num quadro de anemia falciforme, dependendo de atendimento na rede pública, e finalmente capitulou, depois de sofrer toda espécie de dor física, delonga, desleixo, depois também de contar com a abnegação da mãe e das irmãs, e de alguma ajuda de seus amigos que, infelizmente, não suplantaram as carências dos hospitais do estado.
Passei a noite no apartamento em caos, reduzido à minha cama empoeirada no quarto em que a reforma ainda não chegara. A cabeça girava enquanto tentava esquecer o sofrimento do meu amigo de 21 anos, que conheci há cerca de onze meses, e que só me solicitava livros nas vezes em que nos falávamos. Hoje, quando acordei e me dirigi ao cemitério para o seu funeral, fui lembrando desse convívio ensolarado e pensando em dizer algumas palavras antes do sepultamento, mas demonstrei a mesma confusão que exprimo nessas linhas. O velório estava cheio de colegas de escola do rapaz negro, dono de uma simpatia e de uma beleza radiantes. Os próprios jovens e seus professores improvisaram alguns discursos emocionados e tudo era cabível, e então entendi que a morte é um happening.
Digo isso porque de fato ocorre tudo e nada, é caos mesmo: não consegui chorar nem falar, não soube explicar com todas as palavras porque eu estava ali, o que me unira a ele, o quanto esperei, em segredo, que melhorasse e viesse estar comigo, e sonhei tanta beleza em um delírio descabido. Nem ele me autorizaria propor alguma fórmula tão clara, embora falássemos em viajar, em ficar juntos no meu apartamento por alguns dias, mais do que ficamos no passado.
Deixei o choro imerso naquela mistura de sentimentos e fiquei zanzando na área do velório, aproximando-me e afastando-me, enquanto as muitas pessoas se chegavam ao falecido. Na hora do cerramento do caixão, a irmã mais nova, quase uma criança, colocou na urna funerária alguns muitos doces, barra de chocolate, pacote de amendoins, leite em pó e outras comidas que Albert quis ter na sua vida de alimentação regrada, tanto pela limitação que a anemia lhe impunha quanto por falta de recursos financeiros.
Fechou-se a tampa, o professor de karatê e seus alunos robustos, ex-colegas do morto, fizeram questão de carregar o caixão ao ombro, como sinal de honra: Albert tinha aguentado bravamente a dor, resignado e calmo, era um rapaz sereno e bom, merecia. Selou-se a gaveta de alvenaria com cimento e voltamos para a nossa vida, tentando encontrá-la onde a deixamos.
E são as coisas boas, mais do que as más, que me lembram daquele que me chamava tão ternamente de “amigo”, quando o encontrava sorrindo no leito desaparelhado do hospital. É a boa música que toca no rádio e sugere romance ou diversão (sim, espero que ele esteja se divertindo em algum lugar, surfando como nunca o soube fazer aqui, ou imerso em imensa biblioteca, cheio de doces e de risos), ou mesmo que remete a alguma melancolia. Quando falo do livro que escrevi, recordo de como ele me ajudou no lançamento, e como era entusiasta deste tímido escritor.
Não o esqueço, não posso. Apenas dilato o lamento em horas esparsas, acompanhado das melhores memórias. Assim procuro preencher este luto que terá que acabar, para que eu prossiga, para que prossigamos todos. Meus móveis ainda estão enlutados, mas espero a qualquer hora descortinar as novas tintas, ver a luz que ainda me chega miúda. E desejo a esse meu caro, meu anjo, a paz que merece uma pessoa tão ensolarada. Siga com Deus, meu companheiro Albert.

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