Thursday, August 31, 2017

Sobre as vozes em A Oração do Carrasco




Não são poucos os elogios que A Oração do Carrasco (Editora Mondrongo, 164 páginas), o mais novo livro de contos de Itamar Vieira Junior vem recebendo, e quem lê a obra entende, desde a primeira das sete narrativas que a compõem, o porquê dessa recepção. São histórias contundentes sobre personagens socialmente invisíveis mas fortes, contadas por um autor que tem o domínio dos menores detalhes, o que lhe permite emular diferentes vozes, todas em situações extremas e ao mesmo tempo – e talvez por isso – eloquentes.

Com esses recursos, Itamar se dispõe a cambiar, num mesmo conto, o foco narrativo para integrar novos pontos de vista. Ao contrário de certos experimentalismos que usam essa estratégia apenas como mais uma alternativa formal, a mudança aqui constitui enquadramentos autônomos e suficientes, com resultado convincente.

Por falar em eloquência, a dicção é enfática principalmente nos contos Alma, que trata da fuga de uma escravizada, A Oração do Carrasco, descrevendo o árido coração de um verdugo, e Manto da Apresentação, no qual acessa a alma do artista/interno de hospício Bispo do Rosário. Neste último, aproxima-se do ritualístico, de um tom mágico.

É uma carga tamanha de poesia que às vezes tememos chegar a uma fruição puramente abstrata. No entanto, o movimento do autor é outro, para uma concretude muitas vezes cruel, para fora de casa, quase sempre falando de gente que foge de casa. Esse é o caso da empregada doméstica de Doramar e a Odisseia, que perambula pelas ruas tentando esquecer difíceis vivências que teve entre quatro paredes (o que é uma odisseia senão abandonar a segurança, para o bem e para o mal, de um lar?). No conto Meu Mar, uma senegalesa migra para o Brasil escondida num contêiner de navio e aqui continuará para sempre desterrada. Em Alma, como já dito, é uma mulher que foge do cativeiro com todas as ânsias por mínimas realizações. Até mesmo o carrasco do conto-título tem uma vida que não se conecta, não pode se conectar com a sua família, a não ser na violência – a crueldade contra galinhas – no quintal da residência que ela habita.

Em A Floresta do Adeus, a voz reverbera entre vários narradores, homens e mulheres separados por uma fronteira policiada por guardas armados. Sentimos o que passa pela cabeça de todos, a vontade de avançar para o outro lado do marco divisório, mas também para o corpo da pessoa amada, para a juventude e a vitalidade que o outro expressa, para a liberdade que, afinal, também é potência de cada indivíduo. No Manto da Apresentação, que traz outra situação de encarceramento, a voz na cabeça de Bispo do Rosário projeta nova forma de expansão, no espaço, no tempo e na redenção, e seria somente voz, no risco abstrato que mencionei, não se constituísse num roteiro para a elaboração das peças místicas que o artista fez com linha, agulha e tecido.

As opções feitas por Itamar, ao tempo em que lançam luz sobre personagens que desafiam o alijamento, também nos permitem encontros com o comum do mundo, com pessoas que poderiam ser considerados ainda mais irrelevantes na estratificação social. A empregada doméstica Doramar recorda-se de uma velhinha, vizinha de infância “...dona Santa, pequenina e encurvada, cabeça branca e pele negra, vestida de branco e a morar numa casinha no outro lado da rua…. Não lembrava ao certo de quando partiu… de quando viu sua casa fechar para nunca mais abrir. Casa sem eira nem beira, o telhado de limo velho e o pé fino de carambola a resistir em seu quintal” (p.130/131). Em Meu Mar, a imigrante senegalesa encontra vida e solidariedade numa camelô haitiana e num pescador que é quase paisagem de tão anônimo.

É interessante ainda a capacidade do escritor de interpretar – o autor como ator de diversos monólogos – os personagens femininos com as nuances de suas transformações físicas, gravidezes e velhices. Também o poder de encadear todos os elementos para conduzir ao clímax, como no A Oração do Carrasco, em que os fantasmas das vítimas do personagem principal lhe aparecem e “uns seguram o candeeiro para que ele tivesse as mãos livres para afastar a madeira queimada… Outros o alimentavam com matéria morta…” (p.86) e a voz do prisioneiro rompe “o som da madeira que queimava ao redor da prisão” (p.89). Ainda em relação ao carrasco, o desconforto é explícito no seu quintal, onde “Dois cães raquíticos disputam a cabeça da galinha abandonada ao chão” (p. 72) e a poesia atravessa a cena na forma de um filho já é falecido, apenas alma, como dito na trama, mas que reage aos diversos fatos.

Este é A Oração do Carrasco, de Itamar Vieira Júnior, autor de Dias (Caramurê, 2012), que na sua segunda obra obteve apoio do Fundo de Cultura do Estado da Bahia. Alvíssaras, alafia! Comemoremos este mestre griô de prosa abundante e promissora.


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