Não são poucos os elogios que A Oração do Carrasco (Editora Mondrongo, 164 páginas), o mais novo livro de contos de Itamar Vieira Junior vem recebendo, e quem lê a obra entende, desde a primeira das sete narrativas que a compõem, o porquê dessa recepção. São histórias contundentes sobre personagens socialmente invisíveis mas fortes, contadas por um autor que tem o domínio dos menores detalhes, o que lhe permite emular diferentes vozes, todas em situações extremas e ao mesmo tempo – e talvez por isso – eloquentes.
Com esses recursos,
Itamar se dispõe a cambiar, num mesmo conto, o foco narrativo para
integrar novos pontos de vista. Ao contrário de certos
experimentalismos que usam essa estratégia apenas como mais uma
alternativa formal, a mudança aqui constitui enquadramentos
autônomos e suficientes, com resultado convincente.
Por falar em
eloquência, a dicção é enfática principalmente nos contos Alma,
que trata da fuga de uma escravizada, A Oração do Carrasco,
descrevendo o árido coração de um verdugo, e Manto da
Apresentação, no qual acessa a alma do artista/interno de hospício
Bispo do Rosário. Neste último, aproxima-se do ritualístico, de um
tom mágico.
É uma carga tamanha
de poesia que às vezes tememos chegar a uma fruição puramente
abstrata. No entanto, o movimento do autor é outro, para uma
concretude muitas vezes cruel, para fora de casa, quase sempre
falando de gente que foge de casa. Esse é o caso da empregada
doméstica de Doramar e a Odisseia, que perambula pelas ruas tentando
esquecer difíceis vivências que teve entre quatro paredes (o que é
uma odisseia senão abandonar a segurança, para o bem e para o mal,
de um lar?). No conto Meu Mar, uma senegalesa migra para o Brasil
escondida num contêiner de navio e aqui continuará para sempre
desterrada. Em Alma, como já dito, é uma mulher que foge do
cativeiro com todas as ânsias por mínimas realizações. Até mesmo
o carrasco do conto-título tem uma vida que não se conecta, não
pode se conectar com a sua família, a não ser na violência – a
crueldade contra galinhas – no quintal da residência que ela
habita.
Em A Floresta do
Adeus, a voz reverbera entre vários narradores, homens e mulheres
separados por uma fronteira policiada por guardas armados. Sentimos o
que passa pela cabeça de todos, a vontade de avançar para o outro
lado do marco divisório, mas também para o corpo da pessoa amada,
para a juventude e a vitalidade que o outro expressa, para a
liberdade que, afinal, também é potência de cada indivíduo. No
Manto da Apresentação, que traz outra situação de encarceramento,
a voz na cabeça de Bispo do Rosário projeta nova forma de expansão,
no espaço, no tempo e na redenção, e seria somente voz, no risco
abstrato que mencionei, não se constituísse num roteiro para a
elaboração das peças místicas que o artista fez com linha, agulha
e tecido.
As opções feitas
por Itamar, ao tempo em que lançam luz sobre personagens que
desafiam o alijamento, também nos permitem encontros com o comum do
mundo, com pessoas que poderiam ser considerados ainda mais
irrelevantes na estratificação social. A empregada doméstica
Doramar recorda-se de uma velhinha, vizinha de infância “...dona
Santa, pequenina e encurvada, cabeça branca e pele negra, vestida de
branco e a morar numa casinha no outro lado da rua…. Não lembrava
ao certo de quando partiu… de quando viu sua casa fechar para nunca
mais abrir. Casa sem eira nem beira, o telhado de limo velho e o pé
fino de carambola a resistir em seu quintal” (p.130/131). Em Meu
Mar, a imigrante senegalesa encontra vida e solidariedade numa camelô
haitiana e num pescador que é quase paisagem de tão anônimo.
É interessante
ainda a capacidade do escritor de interpretar – o autor como ator
de diversos monólogos – os personagens femininos com as nuances de
suas transformações físicas, gravidezes e velhices. Também o
poder de encadear todos os elementos para conduzir ao clímax, como
no A Oração do Carrasco, em que os fantasmas das vítimas do
personagem principal lhe aparecem e “uns seguram o candeeiro para
que ele tivesse as mãos livres para afastar a madeira queimada…
Outros o alimentavam com matéria morta…” (p.86) e a voz do
prisioneiro rompe “o som da madeira que queimava ao redor da
prisão” (p.89). Ainda em relação ao carrasco, o desconforto é
explícito no seu quintal, onde “Dois cães raquíticos disputam a
cabeça da galinha abandonada ao chão” (p. 72) e a poesia
atravessa a cena na forma de um filho já é falecido, apenas alma,
como dito na trama, mas que reage aos diversos fatos.
Este é A Oração
do Carrasco, de Itamar Vieira Júnior, autor de Dias (Caramurê,
2012), que na sua segunda obra obteve apoio do Fundo de Cultura do
Estado da Bahia. Alvíssaras, alafia! Comemoremos este mestre griô
de prosa abundante e promissora.
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