O texto abaixo
contém o depoimento do comerciante Fábio Carvalho, morador da
Vila do Raso nos anos 1930, no sertão da Bahia, ao professor
Anatólio Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, enfocando as
tensões cotidianas surgidas com a presença do movimento
integralista na localidade. A Vila se tornou autônoma como Município
de Araci em 1959. Fábio e Anatólio, ambos naturais da cidade, já
são falecidos. O documento manuscrito foi obtido pela professora Ana
Nery Carvalho, autora do livro Memórias de Araci, e sua redação
data de janeiro de 1994. A transcrição aqui publicada
respeitou ao máximo o original, mesmo quando se nota a falta de
pontuação, mas a legibilidade é possível em seu inteiro teor. O
trecho ao final ("Missa ou após a missa..."), que integra
também o documento recuperado, foi mantido, embora enfoque outro
assunto. A intenção em deixá-lo aqui é revelar outros aspectos da
cidade.
Integralismo em
Araci (Bahia)
Depoimento do
farmacêutico Fábio Carvalho ao professor Anatólio Oliveira
Em 5 de janeiro de
1994
1-Quando foi fundado
o integralismo em Araci?
Se recorda que em
1935 já havia o grupo se organizando, sendo a sede na fachada oeste
da Praça da Conceição, em casa atual da viúva Inácia Pereira
(João Barraca)
2-Métodos de
aliciamento
Os adeptos do
movimento eram conseguidos por intermédio dos discursos proferidos
nas sessões dominicais, na sede citada, formando um verdadeiro
comício interno. Muitos curiosos enchiam as calçadas da sede e
casas vizinhas e se espalhavam na praça, nas adjacências do prédio.
No salão entravam apenas os integralistas envergando suas calças
brancas e a camisa verde com o Sigma em um dos braços. Muitas
pessoas se entusiasmavam com a doutrinação ideológica do movimento
e pediam sua inscrição que, se aprovada, a pessoa obtinha a sua
entrada nas hostes, recebendo logo o seu cartão de protocolo.
Havia também outro
tipo de aliciamento de caráter individual. Um exemplo: o Sr. Isidoro
Ferreira dos Santos, conhecido por Isídio de Libânio, na área do
Junco, Bom Sucesso e Roça de Baixo. Ele conversava com as pessoas
ali residentes, convencendo algumas a fazerem parte do grupo depois
de uma ou mais visitas.
No caldeirão, Já
ao norte de Araci, tínhamos como catequista Firmina Ferreira da
Mota. Na região da Serra (a oeste da vila), áreas do Boi Morto,
Inácio... (de Lúcio), encarregava-se da doutrinação, assim
acontecendo em outras áreas rurais do então Distrito, como aldeias
e povoados
3-Como eram
realizados as sessões?
Eram abertas com a
entoação do Hino Nacional e logo em seguida começavam ou
discursos, tendo como orador oficial o jovem Erasmo de Oliveira
Carvalho. O comando do movimento estava nas mãos do Sr. José
Justiniano Mota. Após terminado o primeiro discurso a palavra era
franqueada aos companheiros. Havia alguns algo coerente e a maioria
consistia em disparates, frases comuns que denotavam apenas
fanatismo. O início das sessões tinha lugar às duas horas da
tarde, prolongando-se até as 21 horas, sendo que, após o
transcorrer de determinado tempo, era interrompida para uma longa
marcha pelas ruas da vila cantando o hino oficial Mocidade
Brasileira, e ao retornar à sede, antes do encerramento, novos
discursos de agradecimentos aos companheiros, finalizando a sessão
com o canto do hino, ou seja ''Mocidade Brasileira'', já citado.
4-Havia intercâmbio
com grupos de outras cidades vizinhas?
Havia visitas
individuais. A mais frequente era a de um senhor conhecido como
Lisboa Fabiano que, embora de família araciense, residia em
Serrinha, sendo um dos lideres da Ação Integralista Brasileira
naquele município. Visita de grupo organizado houve apenas a do
Núcleo de Pedras (atual Teofilândia) que será relatado em detalhes
a seguir no item ''Episódios”.
O único jornal que
divulgava o movimento na região era ''O Serrinhense'', que por ser
quinzenal e de tiragem reduzida era pouco difundido, devido talvez ao
preço do exemplar. O proprietário desse jornal era Jovino Franco
tendo como redator seu filho Bráulio de Lima Franco. Tal jornal
tinha como opositor ferrenho em Serrinha o “Jornal de Serrinha”,
de propriedade de Jonas Hortelio.
5-qual a temática
dos discursos proferidos
Dominava os
discursos a ideia de que o integralismo era a salvação do Brasil, o
único ajuntamento político capaz de combater o comunismo ateu da
Rússia, visto que nos outros partidos havia uma infiltração de
comunistas, não passando todos eles de lobos vestidos de cordeiro. O
comunismo era a principal temática dos discursos apontando-o como um
verdadeiro “bicho papão” capaz de destruir a pátria e a família
com seus pretensos crimes e horrores. Na maioria das vezes os
discursos eram xingamentos ao comunismo do princípio ao fim.
6-Nomes dos
dirigentes, e dos principais propagandistas
O chefe, como já
foi dito, era o Sr. José Justiniano Mota, cuja família estava
completamente engajada. Entre seus parentes mais chegados,
contavam-se Torquato Moreira, Álvaro Ferreira, Vigílio Bacelar
Vital Ferreira, Maria Lídia Dominicano Oliveira e sua esposa Maria
de São Pedro.
Outras pessoas se
destacavam pelo entusiasmo como Dona Maria Campos (Sinhá Bia),
Cesário Paulo, Felipe Soldado, Antônio de Joaninha (do Ichu),
Acelino Carvalho, Zulmira Jacó e outros.
Vimos já os
propagandistas encarregados da divulgação da Ação Integralista em
áreas e regiões do Distrito.
7-Insinuação de
imunidade
Uma senhora,
moradora no Ichu, próximo à Fazenda Remanso, tinha alguns filhos
que frequentemente estavam na cadeia por roubo de bode. Quando
ingressou no integralismo com o marido, apregoava aos quatro ventos:
“- Graças a Deus, nós lá em casa samo tudo tegalista, agora
quero vê o Nicolau metê meus fio na cadeia.” Convém lembrar que
o Sr. Nicolau Carvalho desempenhava a função de delegado.
Foi difundida a
ideia de que um integralista não poderia ser preso, principalmente
envergando sua camisa verde.
Isso trouxe uma
série de complicações, havia um integralista de prenome Alvino,
natural das bandas do Tapuio, casado com Sebastiana, filha de
Melquiades filha de Juliano [???], que por motivos fúteis se
desentendeu com a mulher. Então deu-lhe uma sova violenta,
deixando-a prostrada. Nicolau mandou recolhê-lo à prisão. Isso
alvoroçou os dirigentes integralistas que imediatamente enviaram um
mensageiro a Serrinha para certificar do fato ao chefe regional Sr.
Lisboa, o qual incontinente veio para Araci, decidido a reagir e
tomar providência porque ''fora preso um integralista''. Convém
lembrar que o mesmo não foi informado das causas da prisão. Aqui
chegando, discutiu acirradamente com o delegado sendo posto a par do
ocorrido, chegou a conclusão de que a autoridade teve assaz razões
para agir daquele modo e, simplesmente limitou-se a queimar a ficha
de inscrição e a camisa verde em plena praça, exclamando: - Para
nós integralistas morreu o nosso companheiro Alvino!
8- Episódios
Foi promovido um
baile, no salão principal da extinta prefeitura, por pessoas da
sociedade que não tinham simpatias pelo movimento ou não estavam
nas fileiras por isso eram consideradas comunistas. Todavia a
festividade não possuía nenhuma conotação política, estando à
frente o cabo polícia Artur de Tal, comandante do destacamento. No
entanto, os promotores cometeram um erro fatal: colocaram algumas
fitas de papel vermelho, usadas como decoração, em meio às demais
cores. Foi então levada às autoridades estaduais a denúncia de que
o baile não passava de uma festa comunista, promovida por comunistas
e a cor utilizada como enfeite era unicamente vermelha, quando, na
verdade, existiam miríades de cores. Aberta uma sindicância por
oficiais da polícia (isto porque constava o nome do cabo Artur) de
Salvador, foi comprovado que a denúncia era improcedente, ficando
desmascarados os denunciantes. O cabo pegou uma pequena punição sob
o pretexto de que não devia se envolver com festas.
Manoel Adanco de
Carvalho negociava com secos e molhados no início da Rua Barão de
Geremoabo. Apesar da rixa existente entre os camisas verde e a
polícia, vendeu fiado a um soldado 4$000 de gêneros no meio da
semana. Na segunda-feira logo cedo mandou seu irmão Inocêncio
(Cicinho) cobrar a este soldado a referida dívida. O soldado
respondeu que o comandante estava viajando e que aguardasse até que
esposa do mesmo fornecesse o dinheiro. Uma hora depois mandou cobrar
novamente obtendo a mesma resposta, acrescentando que até o momento
a referida senhora não fizera o pagamento. Algum tempo depois
repetiu-se a cobrança. O soldado não deu resposta. Deu as costas ao
portador, rumou para o quartel (onde hoje está a Lanchonete Pinho),
apanhou um fuzil, chegou até a frente do estabelecimento comercial e
deu alguns tiros na direção das prateleiras, fazendo o proprietário
pular o muro para a casa vizinha escondendo-se em local intimo, na
camarinha, com a porta trancada por fora pela pela proprietária
Gertrudes que entregou a chave.
Nesse ínterim, um
grupo de integralistas que se encontrava na sede da entidade foi
notificado e partiram armados de cacetes adquiridos nas armações de
proteção às árvores novas. Ao penetrarem na Rua Barão de
Geremoabo foram barrados pelos cidadãos Nicolau Carvalho, Joaquim
Rodrigues Dantas e José Pinheiro que os advertiram de que voltassem
porquanto o soldado, em desespero, continuava armado e atirando
podendo, sem dúvida, ferir, matar e até exterminar o grupo. Embora
os três cidadãos não pertencessem às fileiras do Sigma, foram
atendidos, evitando-se piores consequências. Quando o comandante
chegou deu cobertura ao soldado e ainda disse: - Foi muito bom eu não
estar aqui. Se estivesse não ficaria um integralista vivo.
O caso de Torquato e
o Soldado Cordeiro
Num dia de feira,
Torquato, de camisa verde, encontrou um soldado conhecido por
Cordeiro [que] comia doces numa banca em frente ao cartório de
Pequeno. Ao vê-lo, começou a provocá-lo de longe dizendo: -
Soldado só tem valor no interior, na Bahia (nome usual como era
denominada a capital do Estado) soldado é considerado pano de pegar
panela, pinico e outras frases depreciativas. O soldado ouvindo tais
insultos enfureceu-se, desembainhou o sabre e passou a desferir
golpes no dorso do insultante. Pequeno saiu do cartório e veio em
socorro do cunhado, apanhando também bonitos golpes. Observando a
briga estava um integralista bastante conhecido de alcunha João
Miolo. Torquato gritava: - Me acudam companheiros!. Em vez de acorrer
em seu socorro João Miolo saiu em disparada pelo Beco de Dominiciano
refugiando-se na casa de Vestina, sua mãe, com as portas trancadas.
A nomeação do
delegado
Quando Getúlio
Vargas deu asas ao integralismo, os chefes regionais nomearam
arbitrariamente pessoas de suas hostes sem que os titulares legais
houvessem sidos exonerado. Para Araci foi nomeado o cidadão Manoel
Adarico de Carvalho (Maninho) que em apenas uma semana de glória
praticou verdadeiras atrocidades, depois de armar elementos de sua
gente num corpo paramilitar clandestino. Mandou prender em [povoado]
João Vieira o jovem Temístocles de Góis que havia militado nas
fileiras verdes e por uma razão qualquer desistiu, entregando a
camisa verde, a qual foi queimada em praça pública. Tal perseguição
foi ativada devido ao referido jovem, após desertar do movimento,
ficar criticando a ideologia e deste modo impedindo novas filiações.
Tal intento não foi concretizado porque uma vez avisado, o rapaz
embrenhou-se nas caatingas do Guerra, fazenda de propriedade do seu
tio Ambrósio Góis, tornando impossível a captura pelo fato de ser
local de difícil acesso para os perseguidores.
Getúlio, passada
esta semana, implantou o Estado Novo [1937], retirou o apoio que dera
ao integralismo e moveu-lhes tenaz perseguição, mantendo os
titulares que na verdade eram as autoridades legais.
O caso de Gorda
Noite de São João
de 1936. O pessoal estava em reunião na sede, presididos pelo senhor
José Justiniano Mota. De repente chegou a notícia. Desabou uma
parede da casa de Gorda, ficando a velha sob os escombros. José
Mota, imediatamente arregimentou a verdinhagem e em marcha
acelerada dirigiram-se para o local do desabamento. Lá chegando,
retiraram a taiparia, os torrões de barro, até retirarem a velha
que ainda com vida foi salva a tempo.
José Mota, o chefe,
colocou-os em forma e bradou: - O papel do integralista é esse!
Os Ismos
Depois do golpe de
1937 [Estado Novo], o Padre Carlos Olímpio Ribeiro que anteriormente
cultivava alguma simpatia pelo integralismo, por convivência, no
sermão da missa dominical, com a igreja matriz lotada, passou a
vociferar contra as correntes políticas surgidas naqueles últimos
anos, mais ou menos nestes termos:
- Nazismo, fascismo,
comunismo, integralismo é tudo podridão, meus irmãos, vamos nos
esquecer dessas coisas, desses ismos.
Assim que pronunciou
a última palavra “ismos”, o Sr. Torquanto Moreira, integralista
de quatro costados que assistia à missa na outra extremidade da
igreja, debaixo do coro, em sinal de protesto, bradou às quatro
paredes, acrescentando: -Cristianismo, deixando o padre e os oficiais
quedarem-se atônitos, sem nenhuma ação imediata.
A visita do Núcleo
de Pedras ao de Araci – 1937
No dia em que estava
marcado a visita, o delegado Nicolau Carvalho pela manhã recebeu por
intermédio de André Matos, empreiteiro construtor de estradas, um
telegrama enviado pelo Chefe Secretário da segurança, Dr. João
Facó, com o seguinte teor: - Deveis proibir o uso da camisa verde.
Ante isso, o delegado dirigiu-se à residência do seu cunhado e
chefe da seção local da AIB Sr. José J. Mota e mostrou-lhe a
mensagem. Este ficou preocupado, sem saber o que fazer. Estava
aguardando a chegada de um grupo de visitantes do Núcleo de Pedras e
o pessoal, sem dúvida, chegaria com fome e com sede, extenuados pela
marcha contínua de 18 Km, feita evidentemente a pé, sem direito de
usar montaria. Todos envergando o uniforme integralista, calça
branca e camisa verde.
O delegado para
minorar a situação aconselhou-o a mandar alguns prepostos ao local
denominado Tiracó, próximo à entrada sul da cidade [Vila], para
avisar aos visitantes o que estava ocorrendo e como solução
guiá-los pela periferia oeste da Vila e outros pelo fundo da
residência do chefe local, e ainda que não permitisse que nenhum
deles ultrapassasse o limiar da porta da frente vestido de camisa
verde para não provocar atrito com a polícia que estava alertada
com o objetivo de reprimir os radicais, que ousassem sair à ruas
uniformizadas.
Um elemento
recalcitrante foi comprar doces em um tabuleiro na feira livre. Um
soldado, vendo-o, (conhecido com Manoel João) aproximou-se e deu-lhe
um pontapé no traseiro berrando palavrões. O elemento então saiu
em disparada em direção à concentração dos companheiros, os
quais, depois de um merecido descanso e saciarem a fome e a sede,
tocaram em retirada, encerrando-se o incidente.
Missa ou após a
missa ou na maior parte das vezes, o término das rezas
Quando Rufino
terminava o culto ou seja as orações e cânticos da novena, o samba
campeava no terreiro da Areia Branca, às vezes iluminado pelo luar
do sertão, temperado com a boa cachaça de Laranjeiras, Sergipe, não
faltando também jogos de azar, notadamente o baralho, interrompido
de vez em quando por divergências que causavam bastantes brigas, até
o amanhecer.
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