Pronunciamento durante o VIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais - ABEC - Florianópolis, 19 de julho de 2017 – 16h50 min
Prezados,
Minha
intenção aqui é resumir a trajetória da composição do meu livro
Céus e Terra, que foi lançado em novembro de 2016 e que foi editado
justamente por ter ganho o Prêmio Nacional de Literatura do Serviço
Nacional do Comércio daquele ano na categoria Romance.
O
Prêmio SESC recebe para análise originais que estão cobertos por
pseudônimos, ou seja, os candidatos à premiação não são
conhecidos da comissão julgadora até a divulgação do resultado.
Na edição de 2016 foram recebidas 794 candidaturas somente na
categoria Romance e isso é muito relevante porque atesta mais uma
vez a validade do certame. Além disso o fato é significativo para
nós por ser vencedor uma obra cuja temática está enredada na pauta
do presente encontro.
Para
ser mais claro, devo apresentar-lhes o que chamo de “A carne do
livro”, ou seja, a história que ele narra. Céus e Terra fala de
um menino pobre do sertão baiano apelidado de Galego, órfão,
pobre, sem instrução e mesmo sem educação religiosa, serviçal de
uma fazenda, que é convocado para ajudar a salvar um homem
crucificado. Os dois acabam morrendo logo na primeira página. Galego
sequer seria enterrado num cemitério (teria sepultura na fazenda em
que tombou) não fosse o fato de ter morrido junto com um adulto.
Após a inumação, e sem ter noção do lugar para onde deve ir, o
garoto de 12 anos vaga como uma espécie de fantasma, sem sentir dor
por seu próprio falecimento, e passa a acompanhar a rotina da
pequena cidade onde vivia. Aos poucos, ele passa a compreender os
símbolos, medos e tradições locais em torno da morte, enquanto
procura montar um roteiro de transcendência.
Para
mim, o Prêmio Sesc trouxe dupla felicidade, tanto por contemplar a
literatura ficcional quanto por, de certa forma, reconhecer a
pesquisa que eu vinha realizando, e que mais à frente devo detalhar.
Não
é mistério que os mais criativos escritores podem elaborar suas
obras a partir de episódios reais. De fato, algumas mortes, como a
de meu pai e de amigos na infância influenciaram toda a minha
biografia. De fato, passei a minha juventude intrigado com a temática
da morte e seus símbolos, caixões e cemitérios, às vezes com
algum susto, às vezes somente com estranhamento, mas também com
alumbramento estético.
Em
certa etapa eu, que sou jornalista, resolvi encetar o projeto de
fazer um mestrado em Antropologia e me meti a estudar o assunto que
mais me amedrontava e fascinava, a morte. Antes mesmo da seleção e
para propor um projeto de estudo consistente, comecei a bater-me com
a literatura citada comumente como referência, como é o caso de
Phillippe Ariés, de certa forma contestado entre os antropólogos.
Também segui por Kubler-Ross, Jean Ziegler, Juana Elbéin dos Santos
(Os Iorubás e a Morte), Edgar Morin, João José Reis, Roberto da
Matta e Maria Aparecida Vilaça (Fazendo corpos, a morte entre os
índios, inclusive a antropofagia), entre diversas fontes, além
daquelas do instrumental teórico da disciplina antropológica.
Também,
como referencial de campo, acompanhei durante meses o Apostolado das
Almas, grupo de leigos, e a Pastoral da Esperança, equipe de
diáconos católicos, que atuam em sessões de oração e celebrações
(encomendações, no caso dos diáconos) no Cemitério do Campo Santo
em Salvador.
Ao
fim de 2008, no entanto, eu já tinha convertido o meu propósito
para a redação de um romance que abrangesse o que eu capturei nas
pesquisas, inclusive ouvindo fontes em diversas cidades e visitas a
outros cemitérios, e também elementos de minha trajetória pessoal,
embora não o quisesse autobiográfico. Busquei a partir daí uma
solução poética, não mais científica, para os desafios que o
tema da morte impõe. E para citar o tamanho do desafio, coloco aqui
o que inferi a partir da leitura do livro Tabu da Morte, do sociólogo
José Carlos Rodrigues: A morte é um evento tão sem sentido que
ameaça o sentido de todos os outros eventos.
Foi
de fato uma surpresa que este trabalho tenha superado os preconceitos
que sabemos existir a respeito do assunto, que tenha conquistado o
apreço dos leitores e seja hoje descrito como um livro “leve” e
“suave” enquanto carrega no seu roteiro duas mortes violentas, a
insinuação de um suicídio e um desaparecimento. Já no prefácio
aviso que a obra foi feita para “enganar a morte”, e parece mesmo
que logrei algum êxito, já que algumas resenhas críticas o
consideraram uma abordagem não amargurada.
O
meu objetivo, ao propor a apresentação neste encontro, é confirmar
a sua filiação à temática órfica, e também dizer como a
literatura ficcional pode contribuir para ampliar o debate sobre a
dispersão, sobre vitória da entropia que a morte configura. Ainda,
como a arte pode descrever os rituais religiosos e místicos em sua
complexidade, além de falar sobre a ânsia de permanência que a
certeza do fim nos traz.
Devo
dizer que, ao relacionarmos história, cultura e cemitérios, nunca
estamos fazendo o estudo de um passado diacrônico, mas a arqueologia
de um passado que se impõe como permanência, na sincronia com nossa
época. Não só os campos santos, mas costumes que tive a
oportunidade de contemplar como a Festa de Muertos no México e a
devoção às almas do purgatório, em Nápolis, dizem dessa vontade
de superar a finitude.
Gostaria
de concluir propondo dois pontos para a reflexão, que imagino
relacionados ao propósito desse encontro, desejando que contemos
mais e mais com pesquisadores que os enfrentem. O primeiro deles é o
transumanismo, a tendência científica que trata justamente da
permanência, um mundo em que a tecnologia se aproxima cada vez mais
do registro total da consciência, inclusive usando vídeos, áudios,
fotografias e inteligência artificial para presentificar os
falecidos. O transumanismo, alías, tem outras proposições,
inclusive suprimir a morte com manipulação biológica e genética,
e carrega implicações éticas que já estão em debate pela forma
como são manipuladas econômica e politicamente.
O
outro ponto é a prática do Urban Exploration, ou Exploração
Urbana, ou Urbex, que vem a ser uma espécie de hobby no qual grupos
de amigos visitam lugares abandonados, casas antigas, hospitais,
cidades que foram deixadas para trás, realizando uma arqueologia
cemiterial fora dos cemitérios, observando traços materiais e
colhendo sensações que ficaram retidas na cortina do tempo. Esses
grupos têm deixado na internet um enorme volume de registros das
suas incursões, revelando que é possível conviver com a morbidade
e a melancolia e mesmo atravessá-las.
A
tarefa é enorme e multifacetada, exigindo versatilidade de todos os
colaboradores da ABEC. Mas este é o nosso desafio, que empresta
algum sentido frente ao que parece ter sentido nenhum.
Muito
obrigado.
Franklin Carvalho
Franklin Carvalho
VIII
Encontro da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais – ABEC
Auditório
da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), de 17 a 20/7/2017
Presidente
da ABEC: Profª Clarissa Grassi
Presenças
destacadas: Professoras Maria Elízia Borges, Cláudia
Rodrigues, Elisiana Trilha Castro e Fabiana Fabiana Comerlato
Programação completa: http://estudoscemiteriais.com.br/index.php/viii-encontro-nacional-abec/
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