Comparecer à Festa
do Boi Roubado, no distante povoado. Visualizar dali as luzes que
piscam de outros e outros agrupamentos, todos de casas minúsculas,
como pequenos bairros pobres que tramam uma metrópole dentro da
caatinga. Sentir o cheiro da terra molhada pela chuva e de fumaça de
gasolina. Observar os meninos bêbados que voam de roça a roça,
três por motocicleta, cortando o escuro de caminhos enlameados,
rentes às cercas de arame farpado. Saber dos crimes de tráfico e de
sangue no meio do mato e testemunhar a resignada mansidão das mães
pobres.
Ouvir os amigos
falando do sofrimento de um jabuti quando é esfolado vivo para ceder
sua carne mínima ao paladar humano. Ser informado de que o jabuti se
reproduz às pencas e, esperto, migra para outro mundo quando vêm as
tempestades.
Acordar numa
madrugada e ver os porcos e carneiros nus de pelos, postos sobre as
bancas do mercado da cidade antes que os açougueiros os retalhem.
Escutar no rádio uma música de 1970: “Nesta cidade todos têm
felicidade. Eu só quero é lhe ver para nunca mais chorar”. Tomar
café na Branca do mercado e ouvir também no rádio, mais uma vez e
todo dia, um locutor pedindo a volta da ditadura.
Desejar a tempestade
para todos os jabutis.
Lembrar do carro
velho que nos levou para a festa no povoado, os amigos em silêncio
singrando a pista de barro, a chuva no vidro. Dos jovens perto da
fogueira, dez por família, todos com apelido de Inho. Recordar das
corujas piscando assim que se fez estio.
Acordar de madrugada
novamente e ver a revoada dos veludos na praça, em bandos como
andorinhas. Cumprimentar o plantonista da funerária, que deixa a
loja quando o dia clareia. Aborrecer-me com a fachada cínica do
Banco do Aposentado. Ver a fila insone na sede da Assistência Social
e o retorno dos esmoleres na praça, e pobres com medo de que o mundo
mude. Encontrar já no sol da feira o velho João que xinga e ri,
nossa, como ele ri resmungando da saúde.
Falar, com as
lavradoras rurais no seu sindicato, contra os programas da TV
assassinos ao fim da tarde e o destempero machista dos homens
enciumados. Contar para a mãe que Machado, o melhor dos sanfoneiros,
teve alta do hospital. Rir com ela. Rir em profundas confidências
místicas com Almerinda, rezadeira nonagenária. Sobreviver aos anos
1970 de 2017.
Desejar a tempestade
para todos os jabutis.
*Abraços para
Mirian
Carvalho, que me levou para a festa do Boi Roubado, no povoado do
Pau de Rato, em Araci-BA, e para Gilma
Reis, que me convidou para a palestra sobre Saúde Mental, do
Coletivo de Mulheres no Sindicato dos Trabalhadores Rurais, na mesma
cidade.
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