- Nosso povo é estranho, não? Essa mania de brincar com a
morte... – perguntou o taxista que me levou ao Aeroporto da Cidade do México
(Distrito Federal). Depois de duas semanas no país, onde fui conferir a festa
de Dia de Muertos, eu voltava para o Brasil.
- Pelo contrário, vocês é que são saudáveis. Vocês não têm
receio de expor os seus sentimentos nem a sua fé, é tudo muito claro, tudo
muito público. E também não vivem tremendo de medo de cemitério. Enquanto isso,
o resto do mundo finge que é insensível e está cada vez mais infeliz.
O homem ficou entusiasmado e sorriu, enquanto eu lembrava a
visita que fiz, na tarde de 1º de novembro, ao cemitério de Pátzcuaro, no
estado de Michoacan, a Noroeste do Distrito Federal.
Como acontece no Brasil nesta data, a proximidade do Dia de
Finados atrai desempregados e subempregados que recebem gorjetas para limpar as
sepulturas, lavar lápides, pintar grades ou ajudar na ornamentação. Lá, porém,
a afluência desses prestadores de serviço, é bem maior, com um contingente
também maior de crianças e adolescentes que se desdobram em trabalhos penosos
para obter alguns poucos pesos. E as famílias, mesmo pobres, investem uma
quantia significativa em adornos, principalmente em coroas de flores de
plástico, para honrar seus finados.
Surpreendente também a forma como meninos e meninas são
inseridos nas festas desse período. Quem caminha às noites pelas ruas muito
facilmente é abordado pelos pequenos que chegam com um vaso de plástico no
formato de caveira de abóbora, solicitando “Da mi calaveritas” (“Dá minhas
caveirinhas”), ou seja, moedas, que são transformadas em guloseimas. Em
todos os eventos nos cemitério, a meninada também está presente, inclusive
aqueles na faixa de três a sete anos de idade, correndo e inventando
brincadeiras com o material que encontra.
A festa dos mortos começa em alguns
lugares em 28 de outubro, data dedicada a todos que morreram por acidente. No
dia 30, são homenageadas as almas dos meninos que faleceram sem ser batizadas e
a noite de 31 de outubro para 1 de novembro é reservada para a homenagem às
almas dos ninõs muertos. De qualquer forma, no fim
deste mês, as famílias preparam em suas residências as ofrendas,
imitações de tumbas, cobertas de flores (principalmente a cempoaxochtil - que
se pronuncia sempazotchil), uma abundância de frutas, velas e recipientes com
água (para saciar a sede que o morto tem depois de sua larga viagem vindo do
além) e o tradicional pan de muerto (pão
de morto, que faz alusão ao corpo de cristo e pode ter diversos formatos, como
imitação do corpo de uma pessoa ou círculos com cruz traçada ao meio).
É comum ainda se incluir a fotografia
dos falecidos a quem se deseja homenagear. Também podem ser depositadas nas ofrendas tortilhas feitas de milho, muito apreciadas pelos
mexicanos, e doces de chocolate ou açúcar no formato de caveiras, conhecidos
como calacas. Nada impede que haja oferta de
cigarros e bebidas, para os mortos que tinham essa predileção. Pode ser
disposto ainda um caminho de pétalas, traçado até a porta, para guiar o
espírito do falecido em sua visita à sua antiga moradia.
Nos cemitérios (no México, são chamados de Panteons) são levantados arranjos
semelhantes, embora a quantidade de flores e de velas (geralmente velas
embutidas em copos de vidro ou grandes círios) predomine sobre a de alimentos.
A comida é depositada em cestos ou em tecidos estendidos sobre as sepulturas,
tanto nas carneiras de pedra quanto nas de vala comum. Neste espaço público, as famílias
comparecerão com esteiras e bancos para ficarem horas em estado meditativo ou
conversando sobre o cotidiano, como se o falecido estivesse escutando aquelas
novidades. Podem inclusive passar uma ou duas noites ali, com colchões e mantas
que permitam suportar o intenso frio da estação (em 2014, na casa dos 12 graus
centígrados), bem como montando fogueiras para se aquecerem.
É um momento de verdadeira reunião familiar, e os alimentos
(conhecidos como “mortitos”) estão à disposição tanto do muerto,
quanto dos circunstantes. No caso de sobrarem, serão repartidos nos dias
seguintes com os vizinhos e parentes. Já as velas que não queimarem totalmente
no cemitério serão levadas paras serem consumidas nos altares e ofrendas domésticos. Interessante notar que nestes eventos
também estão presentes mães recentes com suas crianças recém-nascidas, muito
diferentemente do que ocorre no Brasil, onde estas duas categorias de pessoas
são alijadas dos campos santos. No México, cães também são admitidos nestas datas,
com integrantes da família.
Vi num cemitério em Tzintzuntzan, povoado de Pátzcuaro que é
conhecido por seu sítio arqueológico pré-colombiano, uma imagem que pareceria
no mínimo insólita para os brasileiros. No dia 2 de novembro, depois de realizada
a missa campal, que ocorreu por volta do meio-dia, muitas famílias ainda
permaneceram no local, inclusive algumas que cuidavam de sepulturas de seus
parentes junto a um túmulo recém-aberto. Os operários ainda terminavam a
alvenaria erguida dentro do chão escavado e, ao lado, as pessoas comiam e uma
jovem mãe fornecia mamadeira para um bebê num carrinho. Em instantes, um pesado
caixão chegou carregado por alguns homens e, atrás dele, uma família de cor
muito alva, enlutada, que tentava conter o choro.
Na hora da despedida, uma mulher aparentando 60 anos de idade
e outra mais nova colaram seu rosto à tampa de vidro do esquife. Um homem
bastante idoso e dois rapazes, todos com aparência esgotada, tentavam
ampará-las. Ainda integrando o grupo, três músicos uniformizados e um cantor em
trajes comuns executavam músicas românticas do cancioneiro mexicano, como Amor Eterno. Não houve celebração de exéquias, e tão logo o
caixão baixou à sepultura, a senhora que antes se despedia do ente querido
convidou a todos para irem à sua casa comerem uns “taquitos” (espécie de
biscoitos feitos de milho).
Naquele mesmo dia, os músicos, tanto do grupo mencionado
quanto de outros, e mesmo um violonista solitário, estiveram
em outras sepulturas cantando a serviço de quem lhes oferecesse gorjetas.
FESTA PÚBLICA - Também aparecem ofrendas,
à guisa de enaltecer a festa, em espaços públicos como programas de TV, prédios
oficiais, mercados populares e supermercados, halls dos hotéis, e mesmo nas
escolas infantis. E os nativos passam tranquilamente diante delas, e posam
sorridentes para serem fotografados ali, ao lado.
Na Isla Janitzio, destacada em guias internacionais como
lugar ímpar de celebração do Dia de Muertos, é enorme a afluência de turistas
na noite do dia 1º para o dia 2, ocasionando a intensa comercialização de
vários produtos de artesanato, bem como comidas, ao longo de todas as ruas do
povoado (em formato de morro, a ilha é toda tomada de casas).
Além dessa movimentação, que tem seu ponto maior em uma festa
de músicas e danças folclóricas no cume do morro, o pequeno cemitério local,
incrustado em uma ribanceira, fica pequeno para o número de estrangeiros e
outros visitantes que disparam ininterruptamente suas máquinas fotográficas,
inclusive na capela cemiterial, onde também está posta uma ofrenda. Percebe-se uma certa incompatibilidade de
alguns nativos com esta presença, no que não deixam de serem gentis, mas tanto
em Pátzcuaro, a cidade que dá acesso a Janitzio, quanto na própria ilha,
verifica-se a divulgação e o interesse de autoridades, comerciantes e moradores
pela participação de gente de fora, devido ao retorno econômico.
Por outro lado, na meia-noite e em outros momentos de maior comparecimento,
é comum o “engarrafamento” de visitantes nos descontínuos corredores entre os
túmulos. O problema se torna ainda maior porque grande parte do espaço está
tomado pelas ofrendas e por famílias
instaladas, inclusive com pessoas já dormindo. Outros fatores que complicam o
fluxo humano são a escuridão, o espocar de flashes fotográficos e a
parafernália de equipamentos de fotografia e cinevídeo, que muitas vezes
necessitam ser afixados em tripés para obter o melhor rendimento, mas que, por
isso, travam ainda mais as passagens. Em
Tzintzuntzan o espaço é maior (são, na verdade, dois cemitérios separados por
uma autopista) e a presença de estranhos menor, inclusive porque o evento é
menos divulgado e menos "industrializado".
Alguns tradicionalistas já reclamam que, tanto em Pátzcuaro
quanto na Cidade do México, já existe alguma contaminação da cultura com traços
do halloween, a festa céltica difundida pelos americanos e que faz os jovens
procurarem boates nessas mesmas datas, vestidos de personagens de TV e cinema. De fato, é muito comum ver a disseminação das
fantasias entre os adolescentes, bem como a mobilização destes para festas mais
urbanas, mesmo no interior.
Em Valladolid, no coração da península de Yucatán (próximo a
Cancun e Mérida), onde o costume da Festa de Muertos
é restrito a pequenas “ofrendas” domésticas, o padre Gilberto Perez Ceh contou
que a igreja incentiva a montagem dos altares residenciais, estabelecendo um
concurso entre as famílias, aproveitando também a oportunidade como um momento
de catequese. Ainda conforme o sacerdote, é comum haver uma segunda oferta de
alimentos oito dias após a festa de finados.
Também em Valladolid, ouvi de um guia maia que descendentes
desta tribo preparam uma ceia familiar e reservam um prato para ser enterrado,
destinado a quem já se foi. Segundo ele, nestes casos, o alimento pesa por
poucas horas na barriga dos comensais.
COSTUMES FUNERÁRIOS – Não se usam pedras pretas no
revestimento dos túmulos, o que, segundo um coveiro em Tzintzuntzan, tem a ver
com a ideia de que as sepulturas de cor escura não trariam bom agouro aos
mortos. Ainda em Tzintzuntzan, no funeral observado, foi colocado um terço de
rosário aberto no fundo da cova, uma vela inserida na parede interna da
sepultura e, conforme o mesmo coveiro, ali seria depositada também água benta,
antes que se baixasse o caixão. Conforme ele, isso é feito em todos os
funerais, também como parte do costume local.
Segundo o livro “Novenário de Difuntos” (Ediciones Apóstoles
de La Palabra”,
México DF, 2014, pp 64-74); era costume antigo, para se preparar um moribundo
para a morte, colocar um lençol no chão,desenhar um cruz de cinzas sobre ele e
depois deitar o convalescente ali, depois da extrema-unção, até a sua morte, com os parentes realizando orações
em seu benefício.
Desse costume se derivou outro, o da cruz de cinza ou cal,
que é colocada sobre um lugar onde esteve estendido um cadáver antes de ser conduzido ao cemitério. Promove-se
uma novena e, ao final, se realiza a cerimônia de levantamento da cruz. Este
ritual consiste em cinco partes, em cada qual se apaga uma parte da cruz desenhada
(Nesta ordem: 1, cabeça, 2 e 3, braços, 4, coração, e 5, pés). Cada uma destas
quatro etapas é precedida de orações (que o “Novenário de Difuntos” publicou),
nas quais se solicita, entre outras coisas, que Deus apague todos os pecados
que o falecido cometeu.
Cronologia:
Em Pátzcuaro de 31/10/2014 a 4/11/2014
Em Janiztzio: das 17h30 do dia 1º às 00h30 do dia 2/11/2014
Em Tzintzuntzan das 12h00 às 17h15 do dia 2/11/2014
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