Wednesday, July 04, 2018

Artérias cheias de fuligem e de poesia

Evanilton Gonçalves, em seu Pensamentos supérfluos Coisas que desaprendi com o mundo (Boto-cor-de-Rosa/Paralelo 13S - 2017), nos oferece dois livros instigantes. O primeiro é feito, como o nome indica, de pensamentos, anotações daquelas que algumas pessoas lançam sobre cadernos - neste caso, inquietações sobre o cotidiano de Salvador, as violências e o escândalo diário das tragédias urbanas, pequenas e grandes, individuais e coletivas, não respectivamente.
Ao tempo que aguça o seu olhar nativo,  o autor acentua o estranhamento nas 50 micro-crônicas que, com alguma frequência, citam o Livro do Desassossego, de Fernando Pessoa. A referência não é em vão posto que Pessoa, naquela obra, também filtrava os altos e baixos de Lisboa e de si próprio na interação com a cidade.
Com uma entonação bastante poética, Evanilton explora conceitos (a palavra “pão” e suas implicações linguísticas e políticas, no Pensamento 7), formas (a cidade que parece uma roda gigante, Pensamento 9) e emoções (a solidão inescapável, a companhia intangível, Pensamento 24). E escapa do óbvio, das simplificações. Num dos pontos mais altos (Pensamento 28), enquanto adivinha os sentimentos de um garçom que o aborda: “Sofri por não sofrer o suficiente para sacudi-lo” descreve a parte mais aguda do drama, mas nos sugere adivinhar o contexto “Renunciei ao fatídico prólogo”.
Já em Coisas que desaprendi com o mundo estão 13 pequenos contos que carregam uma ironia mordaz, rascante, mas aqui o narrador está mais exposto a receber tiros e ser atropelado (“O fim da linha”), perder conhecidos (“Direitos humanos”) e ser engolido pela miséria, como habitante de uma cidade-monturo (“Estamira” e “Deus-Dará”). Nessa segunda parte do livro a máquina urbana avança, range os seus dentes, o convoca e o ameaça. Às vezes ele luta como um leão, às vezes dança como escorpião, mas sempre aceita o desafio. E nos avisa: ninguém é inocente, ninguém está a salvo.

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