Recebi hoje de Lisboa um exemplar da Sigila, "Revista transdisciplinar luso-francesa sobre o segredo", com uma resenha sobre o meu romance Céus e Terra feita pela escritora e pianista Gilda Oswaldo Cruz, artista fantástica, brasileira, que reside em Portugal. Ela me enviou também, por e-mail, o texto, publicado em francês, e a tradução (abaixo). O link para a Sigila na internet (site ainda sem a nova edição) é http://www.sigila.msh-paris.fr/
Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages
Quem viu os filmes de Glauber Rocha se lembrará das fisionomias castigadas dos protagonistas, sertanejos expostos à rudeza da existência no interior do Nordeste brasileiro, com a sua galeria de rostos cujos traços parecem expressar uma irredutível individualidade.
É com um semelhante olhar, tão de antropólogo como de poeta, que Franklin Carvalho nos leva neste seu primeiro romance a assistir a cenas de vida e de morte entre os habitantes de Araci, pequeníssima vila do interior da Bahia, terra natal do autor.
O leitor é logo confrontado com uma frase inicial de rara contundência: “Quando eu tinha doze anos, fui ajudar a tirar um homem da cruz. Encontrei-o morto e acabei morrendo também.” E explica, mais adiante: “Cortaram-me no ano de 1974, nos fundos da fazenda Guarani, de uma lapada só de facão. Que eu servisse de exemplo a quem anda desavisado no mato. A cabeça rolou para bem perto, sem grandes invenções, uma criança miúda, mestiço de índio, na beira seca do rio do Sangue” (p.9/10)
Apesar da violência dos acontecimentos - dois assassinatos, um suicídio apenas insinuado e a enigmática desaparição de uma personagem - tudo é narrado por Galego, o menino decapitado, com uma assombrosa ausência de ênfase. Tudo ele conta uma leveza inebriante, como que denotando o seu amor fati de cunho religioso ou filosófico, o que confere ao romance uma altura inusitada nas letras brasileiras de hoje. As injustiças na vida do sertão são enunciadas pelo narrador menino com uma naturalidade não enfática que lhes presta ainda maior dramatismo.
Ceifaram-lhe a cabeça, diz o menino, “por susto”, mas o assassino arrependido terá o perdão dos seus concidadãos. Sem resquício de autopiedade, Galego relembra a sua existência de menino dado pelos pais pobres “a criar” por uma família de poderosos – trato comum no vasto interior brasileiro– que o converte numa espécie de escravo encarregado na fazenda dos trabalhos mais ásperos, e onde lhe é negado por vezes até o alimento.
A grande vantagem ficcional de ver o mundo pelo lado dos mortos, Galego logo descobre– além de “ficar sem nome, sem fome, sem horas” (p.189) –, é ver sem ser visto.
Há também a sua nova faculdade de deslocar-se velozmente pelo espaço. Com seu olhar curioso e empático, o menino sem cabeça descreve a vida e os costumes dos cidadãos de Araci, oferecendo-nos um panorama sinóptico dos seus modos de trabalhar, amar, morar, matar, comer e beber, ajudar o próximo, reeerguer a vida, suportar os males da vida, deslumbrar-se com a fugaz passagem de um circo e, com grande destaque, acreditar fortemente no sagrado com o sincretismo religioso dos sertanejos brasileiros, e não só deles. São tão efusivamente católicos na celebração da Semana Santa como devotos dos terreiros de candomblé, dos orixás e dos curadores (o autor evita o termo judicativo de curandeiro), a quem recorrem sempre em caso de necessidade.
Fresca a sua decapitação, ainda assim o menino morto precisa comer, mas só quando os vivos o fazem, sendo seu único alimento as pipocas, e também beber água, ainda pela boca dos vivos. Sua existência post-mortem obedece a um período de gestação ao invés, ao longo dos nove meses que dão título aos capítulos, e à medida que passa o tempo em contagem regressiva para a sua fusão final com o todo, ele observa o que lhe acontece:
“aí me ocorreu pela primeira vez a sensação de estar cercado de terra úmida. (…) Poderia ser mesmo que eu estivesse sendo devorado pela terra, e aquilo não me assustava em nada, nem me ameaçava. Poderia ser que o caixão barato em que me puseram, forrado apenas por um filó, tivesse se desmanchado e a minha pele fosse penetrada pela sombra debaixo de sete palmos” (p.108 e 109). “Por isso, fui me deixando sentir o toque da terra, e não era mais eu quem estava sendo absorvido por ela, mas me expandia, numa sensação deliciosa de dominar a terra que me invadia. Era como se nos uníssemos, desfazendo-nos em húmus, inumando. Então eu aumentava para ser toda a terra em cima do meu corpo. Tão satisfeito como alguém que se espreguiça dentro da maciez da polpa de um pêssego, ou de um cupuaçu, ou de uma manga, ou quem rompe o hímen das águas para pôr-se de pé num lago. “ (p.109)
Não seria apropriado aproximar ao realismo mágico este relato passado em terra sertaneja tão fértil em crenças no sobrenatural. Lá a vida é cotidianamente vivida como tendo parte contígua com o sagrado. Celebremos, sobretudo, a reinvenção poética da linguagem neste livro de Franklin Carvalho, que lhe valeu no Brasil em 2017 dois prêmios literários importantes, o do SESC e o São Paulo, na categoria romance de estreia.
Gilda Oswaldo Cruz
Franklin Carvalho, Céus e terra, Rio de Janeiro, Record, 2016, 205 pages
Ceux qui ont vu les films de Glauber Rocha se souviendront des physionomies malmenées des protagonistes, ces paysans exposés à une rude existence à l’intérieur du Nord-Est brésilien, avec une suite de visages donts les traits semblent exprimer une irréductible individualité. C’est d’un regard semblable, si anthropologique que poétique, que Franklin Carvalho nous présente tout au long de ce roman des scènes de vie et mort parmi les habitants d’Araci, une petite bourgade, qui est la ville d’origine de l’auteur, à l’intérieur de Bahia.
Le lecteur est confronté d’emblée à une phrase initiale d’un grand impact: «Quand j’avais douze ans j’ai aidé à libérer de la croix un tel homme. Je l’ai trouvé mort et j’ai fini par mourir moi-même.» Et il poursuit: «On m’a tranché en l’an 1974, au fond de la fazenda Guarani, d’un seul coup de couteau. Pour que je servisse d’exemple à quiconque marcherait insouciant dans la brousse. Ma tête roula jusqu’à tout près de là sans grandes inventions, un enfant chétif, métis d’indien, sur la rive sèche du fleuve du Sang.»(p.9/10)
Malgré la violence des événements – deux meurtres, un suicide déguisé et une disparition – tout est rapporté par Galego, l’enfant décapité, avec une surprenante absence d’emphase. Il raconte tout cela d’une griserie flottante, comme en reflétant son amor fati à empreinte religieuse ou philosophique, ce qui accorde au roman sa haute portée parmi les lettres brésilienes d’aujourd’hui. Les injustices systématiques du pays sont enoncées par l’enfant narrateur, d’un naturel non appuyé qui leur prête un fort dramatisme.
On lui a tranché la tête «dans l’effroi», mais l’assassin repenti sera pardonné par ses concitoyens. Sans un brin de commisération, Galego évoque son existence d’enfant livré par ses parents pauvres à une famille de puissants afin d’y être élevé – un règlement assez fréquent dans le vaste Brésil profond – ce qui le change en une sorte d’esclave chargé des travaux les plus ardus de la fazenda, où on lui refuse jusqu’à la nourriture.
Le grand avantage fictionnel de regarder le monde du côté des morts, Galego s’en rend compte – au delà de «demeurer sans nom, sans faim, sans horaire» (p.189) – est de voir sans être vu. Il y gagne aussi sa nouvelle faculté de se déplacer à toute vitesse dans l’espace. De son regard curieux et empathique, l’enfant sans tête décrit la vie et les moeurs des citoyens d’Araci, en nous offrant un panorama synoptique de leur façon de travailler, d’habiter, manger et boire, d’aider leur prochain, redresser leur vie, supporter les maux du quotidien, se laisser éblouir lors du passage fugace d’un cirque et, avec assez de relief, de croire vivement au sacré, dans cet esprit de syncrétisme religieux caractéristique des paysans – et pas seulement eux! – brésiliens. Ils sont si chaleureusement catholiques lors de la célébration de la Semaine Sainte que dévots des arènes de candomblé, des orixás et des guérisseurs (l’auteur esquive le terme judiciaire de sorciers).
Si sa décapitation est encore fraîche, l’enfant a toujours besoin de manger, mais uniquement quand les vivants le font, son seul aliment étant le pop-corn, et de boire de l’eau, toujours par la bouche des vivants. Son existence post-mortem obéit à une période de gestation à l’envers, au long des neuf mois qui donnent titre aux chapitres – et, à mesure que le temps s’écoule à rebours vers sa fusion finale avec le tout, il observe ce qui lui arrive: «là, la sensation m’est venue pour la première fois d’être entouré de terre humide. (…) Peut-être même que j’étais en train d’être dévoré par la terre, pourtant ça ne m’effrayait pas du tout, ni ne me menaçait. Il se peut que le cercueil bon marché où l’on m’a fourré, uniquement doublé de tulle, se soit fragmenté, et que ma peau ait été pénetrée par l’ombre, au dessous des sept empans.»(pp.108-9). «À cause de ça je me suis laissé faire juqu’à éprouver le contact de la terre, et ce n’était plus moi qui étais en train d’en être absorbé, tout en me gonflant, dans une sensation délicieuse de dominer la terre qui m’envahissait. C’était comme si on fusionnait, pour se défaire en humus, en inhumant. Alors je gonflais, pour répondre à toute la terre au-dessus de mon corps. J’étais aussi satisfait que quelqu’un qui s’étire à l’intérieur de la pulpe d’une pêche, d’un cupuaçu, ou d’une mangue, ou de quiconque rompt l’hymen des eaux pour se tenir debout dans un lac.» (p.109)
Il ne serait pas adéquat de rapprocher ce récit du réalisme magique, puisqu’il concerne la terre du sertão, si fertile en croyances au surnaturel: la réalité est déjà assez magique pour qu’elle ait besoin de dispositifs littéraires exquis. Célébrons donc surtout la réinvention poétique du langage dans ce livre de Franklin Carvalho, signalée au Brésil en 2017 par deux prix importants qui lui ont été décernés – celui du SESC, et le prix São Paulo dans la catégorie du roman débutant.
Gilda OSWALDO CRUZ
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