Friday, May 18, 2018

Lincoln no limbo, um estado de espíritos



O escritor americano George Saunders, que só tinha livros de contos e um infantil, apostou em uma ideia arriscada para seu primeiro romance, Lincoln no limbo (Companhia das Letras, 407 pg.): tomou a figura do presidente Abraham Lincoln, o fato real da morte de seu filho Willie, no mês de fevereiro de 1862, no início da Guerra Civil, e a ficção de que o lamento do pai teria prendido a alma do menino em um limbo. O livro passa-se quase que inteiramente no cemitério – outra aposta ousada – de Oak Hill, em Georgetown, onde fantasmas contam suas razões para também estarem ali: apego a pessoas vivas, mágoas, dúvidas, e, no que toca ao pequeno Willie, o fato de seu pai ir vê-lo muitas vezes, abraçando o seu corpo embalsamado, visitas que de fato aconteceram.

Saunders aproveita o mito de um lugar místico, o limbo, que está em diversas religiões como uma condição que não é a terra nem a transcendência. É um conceito ele próprio indefinido e esvaziado, quase em desuso oficial, ele também no limbo, por assim dizer. Mas os seus supostos atributos, que o autor explora muito bem, ainda vagam no imaginário social de forma tão comum quanto as receitas de chás e de remédios caseiros.

O autor se fixa no cenário cemiterial, revelando uma grande familiaridade com o contexto arquitetônico do ambiente, as frases comuns nas lápides e a divisão de classes nos sepultamentos, inclusive as valas comuns dos escravos e párias do século XIX, em território separado daquele dos brancos.  Descreve regras do rito funerário e do estilo americano da época e é muito convincente quando introduz detalhes sobre a guerra e a rotina da Casa Branca, colocando a tese de que o episódio da perda do filho influenciou o arrojo de Lincoln à frente do governo: “Todos estavam sofrendo, tinham sofrido ou em breve sofreriam… Temos que derrotar nosso sofrimento”. trechos de jornais e livros, reais e ficcionais, também são inseridos, até contraditórios entre si nos pormenores, como costuma acontecer, ampliando o leque de informações para o julgamento do leitor. Acrescenta-se a isso os relatos de inúmeras vidas anônimas.

Lincoln no Limbo é uma obra onde todos os personagens, 166, são narradores e dialogam, às vezes com minúsculas participações, às vezes com mais frequência, segurando o fio condutor da história. Os fantasmas têm poderes e vulnerabilidades extremas, e habitam um microcosmo humano como qualquer outro, onde a rispidez e a lascívia também estão integrados. O limbo é até movimentado, e quem está lá parece mesmo equivocado, achando que seu corpo encontra-se numa “caixa de doente”, vendo seus restos mortais como “formas doentes”, com memórias do “lugar anterior”. Um dos personagens chega ao requinte de dizer “O menino [espírito do menino] continuou sentado, sem mover um músculo”.

O resto é poesia, principalmente na boca de um dos espectros, Roger Bevins III, que num momento de recordação da sua vida na terra, solta uma pérola como essa: “Abrindo mão de coisas como… quatro sombras lineares e paralelas projetadas por uma vezeniana se movendo lentamente através do flanco de um gato malhado que dorme ao meio-dia”.

Confesso que estanhei um escritor abordar de forma tão independente a memória de um falecido, inclusive projetando a sua trajetória no mundo espiritual. Alguém que tentasse fazê-lo no Brasil, imagino, ficaria dependente da autorização da família do personagem para publicar, coisa que dificilmente obteria, enfrentaria a classe política cheia de falsos pudores e recalques verdadeiros, e escandalizaria a indústria religiosa. Felizmente, o livro tem seguido uma trajetória mais tranquila, afinado com o líbelo de H. P. Lovercraft: “Sonho um mundo de mistério gigantesco e fascinante, de esplendor e de terror, no qual não haja outro limite a não ser aquele de nossa livre imaginação”.

Cheguei a Lincoln no Limbo por uma sugestão do escritor Bernardo Carvalho, que me falou da obra antes que ela saísse no Brasil. Assim que terminei de ler a edição da Companhia das Letras, procurei comentários dos youtubers brasileiros, mas o texto ainda não havia sido resenhado. Encontrei então o vídeo de Ilenia Zodiaco Zodiaco (https://youtu.be/tMofyyuUsjM), uma italiana que faz considerações muito pertinentes.

Para Ilena, trata-se de um livro em que são descritas sensações físicas, muito vivas, orgânicas. A história, com “um único narrador plural”, tem um caráter “grotesco, bufo, dantesco [no que se refere a Dante, literalmente]”. Morte e vida são, nessa perspectiva, experiências coletivas e solidárias, e Saunders “é um escritor gentil que crê na inocência”.

Da minha parte, fico muito feliz em ver outro livro que dá leveza ao tratamento do tema da morte, optando também por uma criança como protagonista, semelhante ao que procurei fazer em Céus e Terra. Bom saber também que essa obra tem sido bem acolhida pela imprensa e público, sagrando-se vencedora do Man Booker Prize.







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