Li
a Instrução da Noite (Editora Rocco, 2016,141 pg.), de Maurício de
Almeida, e fiquei admirado com a forma como o autor constitui a malha
desse novo labirinto. É ainda o ambiente onírico que ele evocou
em Beijando Dentes, seu primeiro livro, com referências ao cinema
surreal de Luís Buñuel, mas agora revela-se mais claustrofóbico,
no grau do Anjo Exterminador, do mesmo diretor.
A
história pode ser descrita muito rapidamente: o
protagonista/narrador recebe a visita do pai que havia abandonado o
lar, fica chocado com um novo embate e lamenta-se,
endereçando sua mágoa à irmã Teresa, outra que já não mora com
ele, que se casou primeiro e conseguiu fugir da família sempre
periclitante. Há ainda um porre solitário deste narrador num
boteco, sua visita a ambientes da infância e a tentativa de
dividir a mágoa com duas mulheres que residem com ele sob o mesmo teto, a
mãe e a esposa – tudo isso numa só noite, uma sucessão de
fracassos.
A
narrativa dilui-se então líquida como a chuva ininterrupta, ou como
a bebida alcoólica, e também gasosa, como os muitos cigarros que o
protagonista e seu pai fumam. Até as andorinhas fincadas na calçada, aquelas alegorias de pedras portuguesas, levantam voos e invadem as cenas. Mesmo sendo do mais concreto material escapam e fogem intangíveis e escandalosas (e me recordam a gravura de Escher que posto junto a esta resenha). E a tudo assiste Teresa, a invisível
(pareceu-me inevitável comparar essa musa tão apelada ao vidente
Tiresias da tragédia grega, que suportou as lamúrias
de Édipo Rei).
A
orelha do livro, escrita por José Castello já resume a tônica de
uma linguagem “sincopada, brutal e delicada” usada pelo autor.
Realmente, se “A Instrução” parece a princípio juntar-se a
Lavoura Arcaica e a Um Copo de Cólera de Raduan Nassar pelo tom confessional e
exacerbado, seu martelo é próprio, vocalizado a partir de um
personagem inédito, encurralado na sua própria violência e preocupado em articular um
mundo minimalista.
São recorrentes as imagens de demolição de uma
casa antiga onde os personagens moraram, e junto com o prédio físico
ameaçam desabar as suas referências e afetos. O próprio narrador se mostra
reduzido a escombros e, numa condição cíclica, habita outra casa
que também desmoronará - outra casa assassinada. Nessa situação, resta-lhe compor mosaicos poéticos como quem cola ladrilhos: “Uma
amanhã amena como amena deveria ser e nunca é” (p.22), “Afeito
a nervosismos que agravam meu vacilo” (p.29), “Delicado rumor das
árvores chovendo depois da chuva” (p.113) e “escombros e
entulhos entre os quais padeci ajoelhado” (p.116).
Nessa obra sobre a não-comunicação em família chama a
atenção justamente a forma como os diálogos são encaixados. Eles
são fragmentados, reconstituídos, novamente fragmentados,
esquecidos, repetidos, abandonados. E há uma hierarquia da fala do
qual o protagonista não consegue escapar, ele mesmo silenciado,
minúsculo, esmagado pela sombra de todos os parentes. Sua
palavra é castrada e infértil, inclusive na relação com a esposa.
Somente a mãe, alienada mental, transtornada e silenciosa, se
equivale nessa escala de impotência.
A
Instrução da noite é singular justamente por retratar a mudez e evidenciar que muitas vezes estamos nessa mesma condição,
suspensos, almejando um diálogo inalcançável.
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