Monday, March 05, 2018

A instrução da noite e seus escombros



Li a Instrução da Noite (Editora Rocco, 2016,141 pg.), de Maurício de Almeida, e fiquei admirado com a forma como o autor constitui a malha desse novo labirinto. É ainda o ambiente onírico que ele evocou em Beijando Dentes, seu primeiro livro, com referências ao cinema surreal de Luís Buñuel, mas agora revela-se mais claustrofóbico, no grau do Anjo Exterminador, do mesmo diretor.
A história pode ser descrita muito rapidamente: o protagonista/narrador recebe a visita do pai que havia abandonado o lar, fica chocado com um novo embate e lamenta-se, endereçando sua mágoa à irmã Teresa, outra que já não mora com ele, que se casou primeiro e conseguiu fugir da família sempre periclitante. Há ainda um porre solitário deste narrador num boteco, sua visita a ambientes da infância e a tentativa de dividir a mágoa com duas mulheres que residem com ele sob o mesmo teto, a mãe e a esposa – tudo isso numa só noite, uma sucessão de fracassos.
A narrativa dilui-se então líquida como a chuva ininterrupta, ou como a bebida alcoólica, e também gasosa, como os muitos cigarros que o protagonista e seu pai fumam. Até as andorinhas fincadas na calçada, aquelas alegorias de pedras portuguesas, levantam voos e invadem as cenas. Mesmo sendo do mais concreto material escapam e fogem intangíveis e escandalosas (e me recordam a gravura de Escher que posto junto a esta resenha). E a tudo assiste Teresa, a invisível (pareceu-me inevitável comparar essa musa tão apelada ao vidente Tiresias da tragédia grega, que suportou as lamúrias de Édipo Rei).
A orelha do livro, escrita por José Castello já resume a tônica de uma linguagem “sincopada, brutal e delicada” usada pelo autor. Realmente, se “A Instrução” parece a princípio juntar-se a Lavoura Arcaica e a Um Copo de Cólera de Raduan Nassar pelo tom confessional e exacerbado, seu martelo é próprio, vocalizado a partir de um personagem inédito, encurralado na sua própria violência e preocupado em articular um mundo minimalista.
São recorrentes as imagens de demolição de uma casa antiga onde os personagens moraram, e junto com o prédio físico ameaçam desabar as suas referências e afetos. O próprio narrador se mostra reduzido a escombros e, numa condição cíclica, habita outra casa que também desmoronará - outra casa assassinada. Nessa situação, resta-lhe compor mosaicos poéticos como quem cola ladrilhos: “Uma amanhã amena como amena deveria ser e nunca é” (p.22), “Afeito a nervosismos que agravam meu vacilo” (p.29), “Delicado rumor das árvores chovendo depois da chuva” (p.113) e “escombros e entulhos entre os quais padeci ajoelhado” (p.116).
Nessa obra sobre a não-comunicação em família chama a atenção justamente a forma como os diálogos são encaixados. Eles são fragmentados, reconstituídos, novamente fragmentados, esquecidos, repetidos, abandonados. E há uma hierarquia da fala do qual o protagonista não consegue escapar, ele mesmo silenciado, minúsculo, esmagado pela sombra de todos os parentes. Sua palavra é castrada e infértil, inclusive na relação com a esposa. Somente a mãe, alienada mental, transtornada e silenciosa, se equivale nessa escala de impotência.
A Instrução da noite é singular justamente por retratar a mudez e evidenciar que muitas vezes estamos nessa mesma condição, suspensos, almejando um diálogo inalcançável.

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