Quando eu decidi pesquisar a morte como tema para um
mestrado em Antropologia, um das minhas primeiras ideias foi procurar um pai de
santo conhecido, pedir uma previsão sobre o sucesso da empreitada e um
salvo-conduto, enfim, um trabalho de abrir caminhos e de proteção contra as
forças (e os medos) relacionados aos cemitérios.
Talvez esse impulso tenha partido do fato de que eu já estava
visitando cemitérios, em busca de uma ideia para abordagem da questão da morte
(hoje, penso que a morte está muito além dos cemitérios e, às vezes, não está
neles).
Até então, eu lia as lápides buscando alguma coisa que
pudesse me inspirar, até o dia em que, em Serrinha, topei com uma cova no chão
coberta de flores novas, como se ali houvesse acontecido um sepultamento recente.
Lembro que fiquei desconcertado porque, naquele momento, a morte não era uma
questão teórica, distante, mas uma experiência dolorosa, que já tinha vivido na
perda de amigos e parentes, e que voltava quando imaginava o sepultamento de
outras pessoas. Ali, naquele túmulo, poderia haver um homem, ou mulher, com
seus laços de parentesco e afinidade, cujo falecimento provavelmente tinha
deixado uma lacuna e uma sensação no mínimo desconfortável entre os seus.
De repente, percebi que, para tratar do assunto, não bastariam os livros que já estava lendo, mas precisaria me deparar, e conviver, com situações que causavam terror e mesmo repugnância às pessoas, eu incluído. Também, estaria diante de desafios éticos, religiosos, de método e mesmo de recursos, e que levaria muito tempo para, ao menos, constituir minimamente um objeto que encarnasse um ponto válido de questionamento a respeito da compreensão humana da morte. O medo, que era a grande demanda então, e os desafios outros o exigiam, e de certa forma tiveram que ser respondidos de imediato.
No tocante à questão ética, tive muito claro que deveria
evitar as cores folclóricas ou religiosas, e mesmo o glamour com que a arte e a
indústria cultural recobrem o assunto.
Não estava muito claro, a princípio, mas depois de
fotografar alguns cemitérios, percebi que não havia na arte cemiterial nem em
qualquer outra expressão objetiva o ponto de partida para captar a visão humana
sobre o assunto. Ainda a respeito da abordagem artística, refutei logo de saída
o apelo gótico e outros constituídos na modernidade, como forma de trato dos
sentimentos fúnebres.
Já os desafios religiosos, que são os meus desafios
religiosos, eram muito maiores. Sou filho de família católica de cidade do
interior da Bahia, mas a minha mãe, mestiça, acabou visitando “casas de curador”, como assim eram denominadas, principalmente nos piores momentos
de doença de meu pai (depressão, que culminou em suicídio).
Se para mim, que a acompanhei ainda criança a estas casas,
além de seguir com ela e meus tios para missas na Igreja Católica, as
experiências religiosas eram muitas vezes tranquilas e agradáveis festas de
cores, o fato de não terem evitado uma morte provocou, em minha família, uma preocupação permanente. Temia-se o feitiço da rua, dos
outros, dos inimigos, que provocara o falecimento do pai – e que não tinha sido
consertado nem com feitiço “a favor”. Temia-se que o feitiço e entidades
desgovernadas, responsáveis pelos problemas cotidianos, causassem estragos ainda maiores.
Ao mesmo tempo em que se buscava reduzir os traumas dessa
experiência cumprindo as obrigações católicas, era preciso não descrer dos
espíritos, como ninguém na vizinhança, na cidade, ousava descrer. De certa
forma, em menor ou menor grau e salvo raras exceções, todos estavam
prontos para recorrer ao espiritismo, ao curandeirismo e mesmo às igrejas
pentecostais, que já começavam a aparecer na figura de missionários, de acordo
com as conveniências utilitárias.
Para completar, como leitor, e acompanhado de outros
leitores, meus primos também crianças, tinha o hábito de absorver conteúdo
religioso através dos livros católicos, e muito antigos, de minhas tias. Ainda,
uma pequena biblioteca de livros das testemunhas de Jeová, que minha mãe
adquiriu de pregadores visitadores, me dizia o contrário do que a rua ensinava:
era preciso abster-se de todos os contatos com os mortos, entender a
necromancia como prática demoníaca e sentir-se seguro contra qualquer moléstia
que, por ventura, imaginemos que os falecidos possam impingir.
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