Tuesday, December 06, 2011

A morte líquida





Eu fiz aquele ritual e dormi dentro do terreiro, porque o pai de santo achava que não seria bom que eu voltasse para casa no mesmo dia. Lembro que, quando fomos despachar algumas comidas no mato, dois homens me levaram num carro até a Avenida Garibaldi e deixamos alguns bocapios perto do monumento a Clériston Andrade. Eles então disseram que deveríamos nos afastar sem olhar para trás, para não vermos as entidades se apropriando da oferta.
Participei também de outro ritual com música e dancei com os filhos de santo, não lembro se antes ou depois do despacho, e toda aquele movimentação foi feita só para mim, para as entidades que se relacionavam com os mortos. Com certeza, tinha Obaluaê entre eles, e creio que Xangô também.
Dormi serenamente naquela noite, embora num colchão muito fino, no chão de um quarto fechado. Acordei disposto no dia seguinte e fui me sentar numa cadeira na sala, onde fiquei observando algumas mulheres adormecidas. Uma delas acordou, porém, e se assombrou. Ela respirou fundo e disse:
- Meu Deus do céu, pensei que fosse uma pessoa morta.
Eu dei risada. Pensava que ela havia falado aquilo porque eu estava totalmente vestido de branco, mas a filha-de-santo, e as outras que foram acordando em seguida, me contaram que, durante a noite, tinham visto muito movimento de entidades dentro e fora do quarto onde eu dormia. Parece que avistaram vultos também e tiveram dificuldades para dormir, e passaram bastante tempo rezando credos e outras orações. Elas eram umas donas muito gentis, e todo o povo daquela casa também, e embora eu tenha ido trabalhar no dia seguinte, mais tarde, de noite, nos reunimos para um segundo ritual que completou aquele trabalho.
Depois, eu me senti mais seguro para pesquisar e comecei a ir ao cemitério do Campo Santo, que era próximo da faculdade de São Lázaro (UFBA), onde estava fazendo a matéria Antropologia da Morte. Naquela época, a Santa Casa de Misericórdia, entidade gestora do cemitério, mantinha um circuito de visitas guiadas e tinha uma loja de souvenires no local, e eu gostava de conversar com a funcionária que tomava conta de tudo. Certa tarde, vi passar um enterro e descobri que era da mãe do padre Lázaro, que rezava as missas na capela do cemitério. Fiquei intrigado, tentando entender como aquele homem estava fazendo o funeral de sua própria mãe.
Passei a freqüentar o Apostolado das Almas, que se reunia para rezar o Ofício das Almas todas as segundas-feiras, no Campo Santo. Me aproximei da comunidade da igreja e ajudei em muitas missas, com muitos padres diferentes, que sempre me trataram bem. Travei contato com os diáconos da Pastoral da Esperança, que fazem encomendações (últimas celebrações antes do sepultamento) e ajudei alguns deles, e também alguns padres em alguns velórios. Em alguns casos, lia um trecho da bíblia que o celebrante pedia e puxava, com ele, cantos mais conhecidos. Depois, em casa, tomava nota das coisas que tinha observado.
Havia velórios mais vazios, geralmente de idosos, e outros mais cheios, como foi o caso de um operário vítima de acidente de trabalho, quando o sindicato fretou um ônibus. Eu não vi, mas os funcionários do cemitério contavam que o ambiente ficava muito tumultuado no sepultamento de policiais e marginais envolvidos na guerra do tráfico que acontecia nos bairros do entorno do Campo Santo. A responsável pelo circuito de visitas guiadas me contava curiosidades sobre os jovens, religiosos de diversas matizes, e outros tipos que andavam por ali, além de falar das diferenças entre eles.
Não voltei depois ao terreiro de candomblé, mas, por meio de uma colega de trabalho, recebi um convite para conhecer o terreiro de Babá Egun, culto aos mortos na praia de Ponta d’Areia, na Ilha de Itaparica. Viajei de noite, assisti metade do ritual e voltei quando o dia ainda raiava, impressionado com a diferença nos procedimentos e na conduta agradável da comunidade. Antes dessa experiência, já tinha lido sobre aquele ritual (Jean Ziegler e Juana Elbéin dos Santos) e, na hora de ir embora, o motorista que nos conduziu até a praia onde tomaríamos o barco  contou histórias de assombração na vila. O mais importante, naquele momento, foi ter achado uma pista para uma ligação entre as entidades e o Mandú, elemento que circulava mais abundantemente na cultura, principalmente no carnaval. Não deu outra. Dias depois, achei um vídeo que fazia justamente essa relação, falando dos mandus das festas de Cachoeira (BA).



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