Todo corpo real deve ter extensão em quatro direções: deve
ter Comprimento, Largura, Espessura e – Duração. Mas por causa de uma
enfermidade natural da carne... Somos propensos a não notar esse fato.
H.G. wells
A morte é o colapso da personalidade humana a partir do
perecimento do corpo e seus vínculos (objetos). Ao mesmo tempo, é a eliminação
da autonomia frente à entropia universal - abertura à entropia -, a partir de um
choque com condicionantes naturais.
Primeiramente, o corpo parece
figurar como elemento central que agrega todos os objetos da personalidade,
inclusive os objetos simbólicos, os jeitos, as posturas, a entonação, a fleuma
e todo o temperamento, além de vincular a si próprio ferramentas como roupas,
adereços e outras posses que constituem o edifício da individualização. Em um
segundo momento, somos obrigados a relativizar este entendimento, percebendo
que o corpo, por mais que seja o ligame dos objetos da personalidade, é ele
mesmo mais um objeto perecível. Como consequência, a cultura humana busca,
muitas vezes, deslocar a personalidade para fora desta figura, principalmente
visualizando o duplo espiritual ou valorizando o legado na forma de registros
(fotos, documentos e outros objetos de
culto memorial).
A religião[2] - que tem autoridade para separar
mortos e vivos, principalmente através dos ritos funerários -, ao mesmo tempo
que afirma a sobrevivência da personalidade sem corpo, a alma sem corpo, como
uma condição especial, uma vida em paralelo, demonstra que o corpo é essencial
mesmo na manifestação dos falecidos, que para se pronunciarem utilizam-se de
cavalos, médiuns ou até, de um simulacro de corpo como é o caso do Baba-Egun[3].
O que a religião diz é: ter corpo é ter um veículo. A religião separa as almas que
possuem veículos daquelas que não os possuem, podendo administrar a cessão
temporária, ou possessão, entre vivos e mortos.
Ainda de volta aos objetos do
corpo, a morte é a perda da identidade comum a eles. As sandálias do falecido,
seu chapéu, suas calças folgadas serão dispersos ou desmanchados para compor
novas peças. As panelas que a amante de Zorba usava serão carregadas pelos
vizinhos, seu colchão acomodará sete crianças de um casebre na rua de baixo,
sua dentadura sairá correndo, levada na boca de algum cachorro. A dispersão é a
regra para todos os objetos, e, a partir desse fenômeno, também para a
personalidade. Esse processo só é amenizado quando sobrevive socialmente o
nome, que é o principal objeto simbólico da personalidade, e, em torno de sua
memória, são reunidos todos os bens remanescentes (medalhas, registros, etc).
Assim se comporão os memoriais que concorrerão com a dispersão histórica.
A partir do falecimento, espera-se que sejam eliminados
também os conflitos que o corpo encerra como local de violência, deleite,
produção, posse e pertencimento. Antes
de tudo, é preciso eliminar o cadáver para se adquirir a paz derradeira, paz
perpétua para os vivos. Infelizmente, o corpo é objeto contaminante da morte e
a morte é uma ação reprodutiva[4]. .
Mas o desaparecimento do corpo não ocorre sem a transferência dos seus
conflitos para o ente espiritual, ou duplo, que ele projetará.
Para começar, pode-se verificar que é o corpo que é
castigado no inferno. Os relatos artísticos do inferno (Dante, Bosch e outros)
revelam experiências cruéis de torturas físicas, mutilações, vícios,
sofrimentos e toda forma de consumição que redundam em castigos corporais[5]. Outras
narrações do inferno reputam que ali é, principalmente, o lugar de tortura do
corpo para quem encarnou, durante toda a vida, as demandas e respostas do
corpo. Quanto mais carnal – voluptuosa, gulosa, luxuriante, irada, preguiçosa
etc – uma existência, maior a tendência
a purgá-la no inferno.
Em contraste o desapego conduz ao céu assim como o céu é
lugar de desapego. As almas não carregam nada consigo. Aliás, o que são almas?
Pura ausência do corpo e dos conflitos do corpo. Para ir ao céu, é preciso ter
vivido toda uma vida sem corpo, é preciso ter sido alma (negação, morte) desde
o início. Estar no céu é poder usufruir uma vida sem as pressões do corpo e da
personalidade. A vida em sociedade nos oprime no sentido inverso, fortificando
os simbolismos e a idolatria em torno dessas duas prisões. O que temos ao
final? Inconscientemente, corpo e da personalidade são vistos como fardos e
livrar-se delas é ir para o céu.
A personalidade é reconhecida pelos objetos que manipula, da
forma específica que o faz e como é influenciada por eles. Essa visão, no
entanto, pode se apresentar problemática na medida em que se imagina um duplo
invisível indo para o céu ou para o inferno, após a morte, desprovido de todo o
tecido (material e simbólico) que sempre o abrigou. Persistirá o indivíduo sem
a rede de vínculos em que sempre esteve inserido?
[1] Entropia
é como se denomina o grau de desordem dos sistemas, principalmente dos
sistemas físico-químicos. Segundo as leis da Física, a natureza tem uma
tendência para a o maior grau de entropia justamente porque na desordem reside
uma maior estabilidade para todas as substâncias e organismos. Freud buscou
transferir (Além do Princípio de Prazer) este conceito para a psicologia,
explicando uma “pulsão” ou pressão sobre os homens no sentido da morte. Já
Morin (O Homem Diante da Morte) coloca a vida, em oposição á morte, como fato
extraordinário, uma vez que a existência de seres orgânicos autônomos
desafiaria a entropia. A princípio, este último entendimento me levou a crer
que teríamos uma curva de ordem-desordem crescente na direção da morte, com o
desmanche do organismo, mas reconsiderei essa visão ao perceber que o corpo não
converge para uma entropia total, mas se desfaz em novos elementos e
substâncias que possuem, por sua vez, formas próprias de organização, às vezes em graus mais
requintados.
[2] Refiro-me especialmente ao gradiente cristo-espiritualista
brasileiro, que inclui ainda candomblé, umbanda, Kardecismo, Baba-Egun, religiões ameríndias e outras
[3] Representado pelas roupas que encobrem toda uma silhueta onde o
espírito deve encarnar ou incorporar
[5] Ademais, não fizemos o inferno para
nós mesmos, mas para o outro. O inferno
é sempre para o vizinho, para o concorrente, para o inimigo e para quem nos
trai. E todos esses malditos devem ser castigados no corpo, já que o homem não
vê a alma de outro homem. Por isso que no inferno as torturas são de óleo
fervente e lâminas afiadas. Mata-se o corpo e acaba-se com o outro.
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