O livro O Borbulhar do Gênio, de Saulo Dourado (Caramurê, 2018), que remonta à convivência do jurista Ruy Barbosa com o poeta Castro Alves ao longo do Século XIX, tem o esmero de uma pesquisa biográfica apurada, mas é sacudido o tempo inteiro pelos desmaios, tosses, calafrios, amargores, entusiasmos, espasmos, enfim, pelos hálitos desses personagens de saúde frágil.
Na obra, eles ainda
não são os imortais que os professores nos mostravam num pedestal. São jovens colegas de escola, revolucionários e ansiosos, imperfeitos e o tempo inteiro
quase-homens. O autor, aliás, destaca o contraste entre um Ruy
assoberbado pelos estudos e tímido e o poeta belo e sociável filiado à boemia. No entanto, há muito em comum entre os dois baianos:
ambos abraçam apaixonadamente a causa abolicionista, e suas
trajetórias se tangenciam ou se misturam em Salvador e no Recife e
em São Paulo, onde moraram, cercados por uma geração de
intelectuais célebres.
Surpreende saber que
a narrativa foi construída em apenas dois anos, com fontes de pesquisa
que incluem desde arquivos eletrônicos até autores consagrados
(Luiz Viana Filho, Pedro Calmon e Jorge Amado, entre outros) e a
produção legada por Ruy e por “Cecéu”. Não pelo volume de
informações, pois elas poderiam constituir um resultado
burocrático, como acontece em alguns livros de fundo histórico,
mesmo com robustos lastros. Pelo contrário, Saulo Dourado rege as
informações com um condão poético e afetivo que faz a História
saltar aos nossos olhos cheia de vida.
É a vida do Seculo
XIX, e o texto muitas vezes mimetiza a época, como quando diz
que Recife era “uma cidade que primava pela graça e louçania”.
Ao descrever uma viagem desastrada empreendida por Castro Alves, o
autor sai-se com essa tirada digna das musas “… e o mar
cuspira-lhe na altura de Valença . Teria caminhado até o centro da
cidade, trôpego do balanço das ondas e do nado náufrago”.
Está tudo no livro,
o amor entre Castro Alves e a atriz portuguesa Eugénia Câmara, a
convalescença do poeta, a relação dos dois personagens
com suas famílias, o prestígio de que dispunham, os atritos com as velhas gerações, as frustrações, as dificuldades
econômicas e os sentimentos vastos. E volta e meia aparecem no
horizonte o mar e as viagens náuticas (daí O Borbulhar de um Gênio,
imagino) dos dois intelectuais, inclusive a ida de Barbosa a Paris.
Saulo é um escritor
devotado ao amor. No livro de contos “O Mar e seus Descontentes”
(Via Litterarum, 2016 - Novamente o mar!) abraçou com sensibilidade
a história do casal Marie e Pierre Curie, cientistas dos primórdios
da radioatividade, laureados com o Nobel. Ali ele enxergou a cumplicidade do casal e
reescreveu suas biografias em uma curta história emocionada, sem
perder de vista os desafios do laboratório que improvisaram.
Este autor, que
também é conhecido por produzir histórias infantis, chega a esse
primeiro romance com muita tranquilidade e traduz a morbidade e a
violência dos 1800 com um olhar agudo, ao mesmo tempo transversal ao
tempo. Está lá e cá, e nós também, visitando o antigo até hoje presente.
Em conversa privada,
ameacei-o de indicá-lo para a cadeira de Josué Montello na
Academia, quando vier a vagar. Saulo desconversou. Passando eu ou passando ele, um dia, será inevitável comparar seu novo livro a Noite sobre
Alcântara e a Os Degraus do Paraíso. São criações que tratam de gente, de perdas, da
mobília dispersa, de laudas em branco e de algo que se derrama tinto
sobre elas.
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