Tuesday, October 18, 2016
Fantasmas muito presentes
Em seu livro Fantasmas Falados – Mitos e Mortos no Campo Religioso Brasileiro (Unicamp - 1996), o antropólogo Oscar Calavia Sáez resume uma arrojada pesquisa que realizou sobre os cultos populares dedicados a falecidos (um velho negro escravizado, uma prostituta, crianças etc) que tiveram vidas ou mortes trágicas, ou as duas. Após o sepultamento, estes personagens passaram a ser procurados pelos vivos, que continuamente lhes demandam milagres e lhes fazem promessas.
Estes e outros santos não oficiais e todas as histórias em torno deles permitiram ao autor criar um perfil da religiosidade brasileira, onde existem “santos” que podem ser cultuados no altar e, às vezes ao mesmo tempo, incorporados em transes mágicos – esse duplo desempenho das entidades já vale um debate à parte no livro.
Um segundo entendimento é de que há um panteão vasto reconhecido por todos os brasileiros (Deus, Nossa Senhora, orixás, almas, espíritos de luz, caboclos, pretos velhos, exus, pombas giras, erês etc) e que as pessoas escolhem aqueles que desejam venerar sem, enfatize-se, sem descrer dos outros: “...Vimos como se pode não crer em entidades – as pombas-gira e exus do cemitério, por exemplo – de cuja existência não se tem dúvidas... Trata-se na prática de entidades independentes, que o ser vivo não pode negar, mesmo quando pode manipulá-los ou afastar-se deles” (pg 155).
Nessa medida, as religiões são bastante elásticas, e mesmo que não o sejam, seus membros superam a teologia para alcançar os guias – e os favores - que quiserem. E um mesmo “santo” pode ser cultuado de formas “diametralmente opostas”, pelos grupos ou indivíduos que o acompanham.
No livro, que foi fruto de uma tese de mestrado pela Universidade Estadual de Campinas, Sáez reconhece também que o brasileiro tem uma relação “promíscua” (pg. 179) com o além, e usa uma figura de linguagem para descrevê-la: “o muro do cemitério caiu” - seja porque “os de ambos os lados se reconhecem como irmãos”, seja porque “todo mundo estava em cima” do muro (pg. 182).
Ora, é possível perceber a interação intensa entre vivos e o além por meio de sinais mais ou menos redundantes. Acreditamos em reencarnação de pessoas que não perderam a memória de outras vidas, e que estão por aí a executar dívidas, e também achamos que os desencarnados influenciam os acontecimentos, com suficientes objetivos e recursos. Também recorremos aos mortos (santos de todos os tipos, desnecessária a canonização) para deslindar nossos problemas. E, como já dito, não afastamos a existência de nenhuma – nenhuma – plausível entidade falecida.
Ter encontrado o Fantasmas Falados lavou minha alma (desculpem o trocadilho!) porque me remeteu a uma trajetória de pesquisa que fiz, e que Calavia Saez também percorreu, de estudo de religiões brasileiras e rituais pós-funerais. Particularmente, lembra um evento especial, quando conheci o culto a um menino sepultado no cemitério da Consolação, em São Paulo, que influenciou a redação do meu romance Céus e Terra. Neste livro, o personagem principal, o menino Galego, também se torna objeto de culto, como um santo não oficial.
Mas, mais do que isso, o autor, como outros pesquisadores brasileiros – em diversas áreas, Reginaldo Prandi, Roberto da Matta e João José Reis, para citar alguns – projeta, a partir da religiosidade, visões sobre a sociedade (violência, preconceito, estratificações) e o comportamento do cidadão médio. Esses dados muito podem trazer à literatura. Por isso, depois de ler o livro do professor Oscar, um espanhol, ficou mais fácil escrever um conto que há algumas semanas enredava, sobre o comportamento político numa cidade do interior da Brasil. Mais uma vez, olhando nossas relações com os mortos, aprendi algo sobre nossa relação entre vivos.
Para mais informações sobre Oscar Calavia Sáez, atualmente professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, pós-doutorado, com vínculo com diversas instituições de pesquisa, clique aqui (com dados conferidos da Plataforma Lattes).
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