A morte é a primeira regra, princípio de negação, gerador de
movimento. Dela derivam todas as outras condicionantes, sejam físicas, biológicas,
religiosas, legais etc. É o evento irreversível que assegura a
irreversibilidade de todos os outros eventos. É também o fato que recarrega o
mundo, ao mesmo tempo desorganizando e reorganizando as relações entre os seres[1].
Cada falecimento é também um evento de estremecimento na
fronteira que separa os vivos dos mortos, daí provocar o medo duplo de que mais
vivos morram ou que os mortos voltem. Medo de que a fronteira se rompa,
estabelecendo um desequilíbrio, reunindo o que está providencialmente separado.
Por mais que a sociedade, no limite, aspire ao convívio com seus falecidos, a
convenção geral é o tabu, que inclui não pronunciar o nome, não travar contato
com o corpo, destruir completamente e imediatamente o cadáver (cremação,
eliminação de pertences) e outras formas de interdição. Essas frágeis normas, que
variam de acordo com cada cultura, local etc, e sofrem mutações ao longo dos
anos, regulam todas as sociedades e explicam o mesmo estado de defesa.
Para se chegar a uma compreensão da morte no contexto geral
das forças da natureza, porém, é preciso reduzir o fato a seus tópicos
essenciais. Embora possamos falar em termos entrópicos gerais, inclusive nas
leis de conservação e perda de energia, a maneira mais clara de se entender a
morte do ponto de vista físico é a da decomposição, ou desfazimento de
identidades. Assim, se uma molécula se dissocia em suas formas elementares,
morre. Até as menores partículas, se se desagregam, perecem. Nesse passo,
podemos ir à relação mínima, formada por um item pontual (campo etc) e seu
tempo. Morte é, portanto, dissolução de relações, inclusive de relação com o
tempo.
Se observarmos bem, veremos que formas elementares não constituem
identidades. Não porque não existam de fato, mas porque só são perceptíveis em
associações, por contraposição ou interconexão. Identidades são atribuídas a
conjuntos simples ou complexos, a agrupamento de unidades de um mesmo elemento
ou de elementos diferentes.
Elemento 1 Elemento
1
Unir_____Viver (ter
identidade)_____ Morrer-----dispersar
Elemento 2
Elemento 2
De fato, não há vida nem movimento nem força, matéria ou
energia que se valha de uma única partícula fundamental. Todo movimento é
forjado por um conjunto. Não só os conjuntos participam dos movimentos como
geram movimentos expressos em choques, reações químicas, explosões etc.
Desse ponto de vista, os pontos de choque – união/vida e dispersão/morte
-, são locais críticos de reconfiguração dos objetos. A morte é um desatar
causado por um choque externo ou interno, uma ação qualquer, simples movimento
que seja. Mas é movimento, como se algo interceptasse a trajetória do conjunto (que
também se move, por isso tem uma trajetória). É um movimento transversal, ou
perpendicular, a outro, que ele acaba interrompendo.
A essa sucessão de movimentos descontinuados, chamamos
tempo. Nesse caldo, alguns seres são despedaçados, outros são originados com identidades
próprias e prosperam. Isso não acontece de forma excepcional, mas é regra tão
absoluta (e inescapável, mais do que suporia qualquer lei de probabilidades) no
jogo randômico do acaso, que só se pode supor duas coisas: todo equilíbrio é
precário e a precariedade é o equilíbrio.
Outro aspecto a ser observado é que as descontinuações
favorecem outros movimentos não só porque liberam formas para outros
rearranjos, mas também porque criam vácuo no tempo e no espaço para essas novas
combinações. É como uma bola de guizos que se choca com a parede e promove o
agrupamento dos pequenos objetos em seu interior.
Anterior a tudo isso está a constatação de que continuidade
e interrupção são essenciais ao movimento, ou formas de movimento intercomplementares.
O universo, assim como o conhecemos, só funciona porque é descontínuo. Como um
rio, só corre porque há desníveis no seu leito.
[1]
A morte é a reciclagem da
natureza. É interessante perceber que a morte também morre quando os cemitérios
desaparecem e as gerações que os cultivam perecem e os sentimentos de uma época
e as ideias e crenças sobre a morte sucumbem de uma geração para outra. Nada
resiste. E também a morte é plena de vida nos charcos metanosos que putrefazem
velhas cascas em novos fungos, em terra úmida, em insetos e pequenos pássaros.
Do lado dos pântanos, a vida sorri uma boca cheia de limo e vapor e está prenha novamente.
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