Tuesday, July 23, 2019

De como Romeu Raizeiro deixou de ser curandeiro



Eu vi aqueles três elementos aparecerem ao meu lado, eu deitado no meu quarto, na cama. Pareciam cachorros, dois pretos e um vermelho. As presas eram como facas afiadas, as bocas compridas de jacaré. 
Eles roeram todo o meu corpo do pescoço para baixo e levaram o resto pelo sertão adentro, atravessaram o Rio São Francisco até chegar em Sergipe. Esse caminho demorou muito no mato de noite. 
Então me jogaram no centro do terreiro de um pai de santo que eu não conhecia, e já estava tudo pronto. No chão tinha velas e duas galinhas mortas. O pai de santo mandou eu comer uma galinha, que assim eu ia ganhar todo o dinheiro aqui da cidade, dessas roças aí afora. Ia ficar rico, só teria que perder tudo três dias antes de morrer. 
Eu desconfiei daquela ideia. Disse a ele que só a Deus eu sirvo, e não comeria galinha nenhuma. O sujeito me chamou de teimoso e ordenou aos tais cachorros que me trouxessem para casa e, quando chegassem, acabassem de me matar. 
Novamente voltamos, atravessamos o rio e a mata e paramos aqui, mas não era o mesmo dia que saímos. Era a época de anos atrás, velhas estradas de barro que nunca conheci, casas antigas de palha, plantas altas que já não existem e um velhinho no meio delas, um sujeito magro, de costas, com as mãos levantadas ao céu. 
Os cachorros se diziam: “Vamos desviar do Atrapalha”. O velho ordenou que o chão se abrisse e os cães descessem pela fenda. Falou isso outra vez e a fenda abriu, mas os bichos quiseram voar, e voando mesmo estouraram como foguetes.
O santo, que era esse “Atrapalha”, me disse que eu queimasse todas as minhas coisas de curandeiro conforme me lembrasse delas. “O resto o dono virá buscar”. 
Assim aconteceu. Acordei na minha casa e, de duas vestes que encontrava, tirava só uma para queimar. De ferramentas e velas não foi tudo para o fogo, nem todas as folhas, nem todas as fitas. Dava-me pena, compreende? 
Mas no dia seguinte recebi a visita de um homem a quem eu devia, curandeiro ele também, e lhe entreguei o resto das coisas da casa, menos as imagens intocadas da devoção, de simples reza… Na mesma hora esqueci tudo. 
Eu, que sacudia das pessoas os maus ventos, tanto invocado como não, esqueci todo o preparo, esqueci os banhos, os fundamentos. De uma hora para a outra. Assim que eu parei pararam também os meus filhos de santo, e nem por pilhéria me meto hoje a curar na linha branca. 
Larguei a Linha Branca das Almas, porque havia invejosos da mão esquerda, e eles estavam de olho em mim, querendo me dominar. 
O que eu tenho hoje é isso: essas raízes, essas garrafadas que eu vendo, esse litro de mel e três livros de remédios de plantas. E a simples devoção, simples reza. Meu nome é só Romeu, não é mais “Pai”, não tem nada disso. E se precisar eu mudo de nome de novo, a qualquer hora, nem registro de nascimento vale. Porque nasci sem registro, sou antes um homem, só isso. Ou tudo isso...

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